Como as memórias climáticas nos ajudam a prever o futuro
Por Renata Nagai
Que histórias os oceanos podem nos contar?
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“Viva o presente, planeje o futuro e esqueça o passado: o que passou, passou.” Quantas vezes não nos deparamos com esse tipo de conselho (sobretudo em anúncios publicitários)? Vivemos numa sociedade que vive o presente, olha para o futuro imediato e faz vista grossa para o passado. Mas quando topamos com uma situação nova, é a soma de nossas experiências que molda nossa reação e nos torna capazes de adaptação. Os cientistas climáticos aplicam essa mesma lógica para melhorar nossa capacidade de previsão, reação e adaptação às mudanças climáticas globais que devem ocorrer nos próximos oitenta anos: olhando para o clima no passado. Mas onde estão armazenadas essas informações e como é possível acessá-las?
Assim como nossas memórias pessoais não se situam em apenas uma parte do cérebro, os arquivos climáticos são armazenados em diferentes locais no registro geológico –estão nos anéis de crescimento de árvores, nas camadas de gelo, nas calotas polares e nas montanhas, nos sedimentos depositados no oceano profundo. Cada arquivo desses representa isoladamente um ponto no espaço, com latitude e longitude, e guarda informações de diferentes condições ambientais e em fatias de tempo distintas. Até pouco tempo atrás, a organização temporal e a obtenção de dados desses arquivos ainda representavam grandes desafios. Hoje os avanços tecnológicos e analíticos nos permitem determinar de forma confiável o momento de ocorrência de eventos climáticos e quão quente ou fria estava a temperatura do planeta.
Na última década, a comunidade científica procurou desenvolver ferramentas estatísticas aptas a unificar as memórias do clima recuperadas de diferentes fontes. Como se cada registro fosse uma célula piramidal, guardando partes específicas da memória do clima, e a conexão entre estes arquivos formasse uma espécie de rede neural, permitindo aos cientistas acessar em escala global a resposta do clima a mudanças naturais ou geradas pelo homem. Essas novas sínteses contemplam momentos específicos do passado: o passado recente, anterior à Revolução Industrial, e o passado pretérito, de milhões de anos atrás, quando a concentração de CO2 na atmosfera foi semelhante ao que é projetado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) para o ano de 2100.
Emergem das novas sínteses globais do passado recente, por exemplo, evidências de que eventos climáticos que ocorreram no passado e que eram reconhecidos como de impacto global, como a Pequena Idade do Gelo e o Período Quente Medieval, provavelmente foram regionais, com maior impacto no Hemisfério Norte. No entanto, a partir da Revolução Industrial, o aumento da temperatura média global é registrado em todos os arquivos climáticos, o que só reforça o papel do homem na mudança climática.
No entanto, é curioso observar que, se por um lado avançamos no entendimento do impacto das mudanças climáticas futuras em escala global, por outro percebemos que ainda não entendemos bem esse impacto em escalas espaciais menores, regionais e locais. Na última semana de fevereiro de 2021, por exemplo, um trabalho publicado na Nature Geoscience ganhou a mídia ao reportar que o aquecimento global está promovendo o enfraquecimento da circulação meridional do Atlântico de forma sem precedentes nos últimos mil anos, o que pode resultar em uma instabilidade de todo o sistema climático.
O que será que isso representa para a temperatura das águas do Atlântico que banham a margem continental brasileira? Se sabemos que a temperatura da superfície do mar influencia os padrões de precipitação no continente sul-americano e a própria diversidade de espécies de peixes de interesse comercial, quais serão as consequências dessas mudanças para nossa própria segurança alimentar? A resposta para essas perguntas pode estar nas memórias do clima armazenadas nos sedimentos marinhos. E assim como nossas memórias definem nossa compreensão do mundo e nos ajudam a prever o que está por vir, as memórias climáticas podem nos ajudar a compreender como o planeta respondeu a alterações no passado e, assim, nos auxiliam a enxergar de forma mais clara o futuro.
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Renata Nagai é oceanógrafa e professora na Universidade Federal do Paraná.
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