Ciência não é feita por indivíduos isolados
Por Kleber Neves
Como organizar o modo de fazer pesquisa?
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Diz a história que o físico Richard Feyman adotava uma estratégia para sua pesquisa: enumerava uma lista de problemas importantes e não resolvidos, e toda vez que ouvia a respeito de um novo método ou achado, verificava se aquela novidade colaborava para o avanço de um desses tópicos.
Só que ele era físico teórico, e seguir essa estratégia em biologia experimental é mais difícil. Ainda que um resultado recente indique um caminho novo, ou que uma técnica nova pareça útil, os equipamentos são caros e adquirir competência nas técnicas, estabelecer protocolos e aprender os macetes leva meses ou anos de prática.
Disso decorre uma especialização maior, que estreita o leque de técnicas e modelos disponíveis para cada cientista experimental. Como consequência, as linhas de pesquisa não são tão orientadas por uma pergunta fundamental quanto poderiam, mas sim pelas técnicas e modelos já disponíveis, que não são necessariamente os melhores para responder a pergunta. Guiar-se exclusivamente pela pergunta exige uma variedade de abordagens maior do que cabe em um único grupo de pesquisa.
Nessa mesma lógica, é difícil para um laboratório típico descrever sozinho algum achado científico por completo. Antes que a comunidade científica tome como robustos os achados iniciais, eles devem ser confirmados com outras técnicas, modelos, populações e abordagens que, de novo, vão além do que um laboratório consegue acomodar. De um laboratório que testa tratamentos em linhagens celulares, não se espera que ele também confirme os achados em modelos animais ou organize ensaios clínicos com humanos –esse é o tema de um recente artigo que publicamos na revista Nature.
Se para responder a grandes perguntas ou obter resultados mais consistentes é preciso um esforço coletivo que ultrapassa os limites de um laboratório isolado, então precisamos de maneiras de facilitar a articulação de vários laboratórios em torno de um objetivo compartilhado. A biologia é cada vez mais colaborativa, mas essas colaborações tendem a ser pontuais, não se escoram num plano explícito e mais amplo que orquestre as atividades.
Ter um plano mais abrangente entre laboratórios requer a adoção de outros modelos de governança que não só podem aumentar a burocracia, como vão exigir um equilíbrio entre, de um lado, a missão comum, e, de outro, a autonomia dos grupos de pesquisa individuais. E essa é uma questão delicada: uma das razões que levam as pessoas a ser cientistas acadêmicas é exatamente a liberdade de conduzir uma linha de pesquisa própria.
De qualquer modo, “ciência grande” é um jeito cada vez mais comum de organizar a pesquisa. Exemplos como o Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN) ou o Projeto Genoma Humano mostram que é possível executar projetos científicos de grande porte, coordenando vários grupos de pesquisa em torno de objetivos comuns. A própria Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade, da qual faço parte, é um exemplo desse tipo de projeto, assim como outras iniciativas recentes —Many Primates, Many Babies, Psychological Science Accelerator— focadas em realizar experimentos multicêntricos.
Um modelo particular é o da Defense Advanced Research Projects Agency, a DARPA, dos EUA, conhecida pelas apostas arriscadas que originaram grandes avanços como a Internet e o GPS, que serve de inspiração a várias outras agências norte-americanas. A DARPA conta com diretores de programa, especialistas no tema da pesquisa, que não fazem a pesquisa em si: têm um papel executivo, coordenando e distribuindo fundos para pesquisa feita externamente, em diversas instituições.
É importante ressaltar que ciência “pequena”, financiada a partir de grupos de pesquisa individuais, e ciência “grande”, com projetos coordenados entre vários grupos, não são os únicos formatos possíveis e nem são exclusivos. Pelo contrário, a ciência como um todo se beneficia de uma variedade de modelos de fomento e organização. Uma questão importante e não respondida na “ciência do financiamento da ciência” é em que casos e para quais perguntas científicas esses modelos “grandes” funcionam na biologia.
Se quisermos encontrar maneiras melhores de organizar a ciência, precisamos de dados sobre esses diferentes modelos. Ainda que uma iniciativa num novo formato de fomento venha a falhar, aprenderemos com isso talvez até mais do que se tivesse dado certo. Alguma experimentação institucional já existe nesse sentido: recentemente, o Wellcome Trust lançou o Wellcome Leap, cuja objetivo é ser a “DARPA da saúde”. Cada programa é coordenado por uma pessoa que recruta os esforços de uma dezena de laboratórios pelo mundo. Os ambiciosos desafios desses programas passam por psiquiatria personalizada, desenvolvimento de órgãos em laboratório e uma plataforma para antecipar a transição de células para um estado cancerígeno.
Ciência não é feita por indivíduos isolados. Uma forma de organizar a produção de conhecimento científico que reconheça isso pode contribuir não só para lidar com problemas de reprodutibilidade, mas também para que sejamos realmente guiados pelas grandes perguntas e problemas, e para que a ciência responda a mais perguntas que precisam ser respondidas em vez de simplesmente se limitar a perguntas que conseguimos responder.
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Kleber Neves é biomédico, neurocientista e metacientista. Faz parte da equipe coordenadora da Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade, na UFRJ.
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