A idade da Terra e o abismo do tempo
Por Fabrício Caxito
Sem vestígio de um começo, sem perspectiva de um fim
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“A mente pareceu rodopiar ao olhar tão fundo no abismo do tempo…” Assim o cientista e matemático John Playfar resumiu sua perplexidade quando, em 1788, o amigo James Hutton o levou até Siccar Point, um penhasco na Escócia. O naturalista, químico, médico e geólogo Hutton ocuparia uma posição central no iluminismo escocês do século XVIII, ao lado de figuras como Joseph Black, Adam Smith, David Hume, James Watt e Benjamin Franklin.
O ser humano havia muito já se perguntava sobre a idade da Terra. Já Aristóteles, ao observar que trechos de terra acabaram se tornando mar e vice-versa, havia interpretado o fenômeno como prova de que mudanças observadas na superfície terrestre indicavam um enorme tempo geológico, talvez infinito. Esta ideia de um tempo cíclico e infinito, porém, logo começa a ser desafiada pelos epicuristas, contemporâneos de Aristóteles, que acreditavam num tempo linear, com começo, meio e fim.
Na Idade Média e no Renascimento foram feitas várias tentativas para estimar a data do começo da Terra. O arcebispo James Ussher foi o responsável pela mais famosa delas, de 1658 –partindo da contagem retroativa das gerações da Bíblia, ele concluiu que o mundo havia surgido no dia 23 de outubro de 4004 a.C.
Para aqueles que conheciam e estudavam o mundo natural, porém, esses números eram fantasiosos. Em 1666, Nicolau Steno, médico anatomista da corte de Fernando II de Médici, apresentou uma explicação para as chamadas glossopetrae, ou pedras-língua, rochas de formato triangular imersas no interior de outras rochas na natureza. A explicação para a ocorrência dessas pedras era controversa: Plínio, o Velho, achava que elas haviam caído do céu em noites de lua; Athanasius Kirchner, contemporâneo de Steno, falava de uma “virtude lapidificante”, que com o tempo transformaria todas as coisas naturais em pedra. Steno foi o primeiro a apresentar a interpretação correta: as glossopetrae são de fato dentes fósseis de tubarão solidificados em novas rochas. Com o avanço dos estudos de campo e o reconhecimento de diversas camadas com conteúdo fóssil distinto, os cientistas consideraram modestas as estimativas de Ussher e outros religiosos: para o desenvolvimento, e mesmo a extinção, de todas aquelas formas de vida, meros 6 mil anos eram uma idade equivocada.
E aqui entra em cena James Hutton. Em 1875, ele apresentou à Sociedade Real de Edimburgo suas ideias sobre o tempo necessário para a formação da superfície terrestre, mas a recepção de suas hipóteses não foi das mais calorosas. Em busca de provas, Hutton decide empreender uma série de viagens de campo na Escócia, durante as quais descobre diversas evidências.
Em Siccar Point, por exemplo, camadas de rochas com mergulhos diferentes são separadas por uma superfície que os geólogos chamam de “discordância”. Por mergulho, entende-se o ângulo com o qual que cada camada de rocha faz com a superfície da Terra. Hutton foi o primeiro a interpretar corretamente o significado disso. O conjunto de rochas inferior, abaixo da discordância, teria se depositado horizontalmente em um fundo de oceano, lago ou outro tipo de bacia sedimentar. Depois, este conjunto de rochas precisaria ter sido soerguido acima do nível do mar e sofrido uma inclinação de suas camadas devido à deformação no momento de soerguimento, como se fossem levantadas por uma retroescavadeira.
Hoje sabemos que isso ocorre sobretudo nas zonas em que duas placas tectônicas se encontram, formando as cadeias de montanhas. Após o soerguimento das rochas, estas começam a ser erodidas pela ação do vento, da chuva e outros agentes intempéricos. Uma vez que a montanha é erodida até a base, nova bacia sedimentar pode se formar por cima dela, e novos sedimentos podem se acumular horizontalmente sobre a superfície que marca a linha erosiva da cadeia de montanhas. Estes sedimentos que se depositam por cima da superfície podem, por sua vez, ser também soerguidos posteriormente e sofrer erosão, recomeçando assim o ciclo. Hutton reconheceu o enorme significado das discordâncias: o tempo geológico devia ser muito mais extenso do que se pensava, dados os diversos ciclos de deposição, soerguimento, erosão, deposição, soerguimento…
E qual é a resposta para a pergunta inicial de Aristóteles, dos epicuristas, de Ussher, Steno e tantos outros? Por métodos de datação utilizando o decaimento radioativo, hoje sabemos que a Terra tem na verdade cerca de 4,5 bilhões de anos. Você consegue imaginar o que significa este número, ou, assim como Playfar, sua mente parece também “rodopiar ao olhar tão fundo no abismo do tempo”?
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Fabrício Caxito é professor de geologia e aluno de filosofia na UFMG.
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