Quando o mundo congelou

Ilustração: Valentina Fraiz
Ciência Fundamental

Por Fabrício Caxito 

Da Bahia ao Mato Grosso, os registros de um período glacial de 635 milhões de anos atrás

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Imagens de hominídeos atravessando o estreito de Bering entre a Ásia e a América, mamutes gigantescos e extensões de gelo que iam do polo Norte até Nova York costumam nos vir à mente quando ouvimos falar em era do gelo. Este momento, porém, é apenas parte do último período glacial em que o planeta está vivendo, iniciado há cerca de 2,6 milhões de anos –sim, continuamos em uma era do gelo, só que estamos em um de seus períodos interglaciais. No entanto, em seus 4,5 bilhões de anos de história, a Terra passou por situações de variação climática muito mais extremas. Em pelo menos alguns desses episódios, as capas polares se espraiaram praticamente até o equador, congelando o planeta quase por completo. Estes momentos são chamados “Terra Bola de Neve”.

A Terra Bola de Neve mais bem caracterizada ocorreu há aproximadamente 635 milhões de anos, durante a glaciação Marinoana, marco do fim do período Criogeniano –que recebeu este nome (do grego “krýos”, “frio”) pela abundância de depósitos glaciais encontrados no mundo todo. O estudo destas rochas fornece pistas muito importantes para compreender a evolução climática do planeta.

Como reconhecer os registros de um período glacial antigo? Ao atravessar os continentes, as geleiras, capazes de se movimentar em velocidades de até um quilômetro por ano, arrancam pedaços de rochas. Tais fragmentos, envoltos no gelo, se destacam da massa principal, transformando-se em icebergs que, por sua vez, afastam-se milhares de quilômetros da terra firme. No oceano, à medida que os icebergs derretem, os pedaços de rocha entranhados no gelo (e coletados em terra firme) se libertam e caem diretamente no fundo do oceano. Uma das formas mais fáceis de identificar antigos eventos glaciais é procurar por estes “dropstones”, ou clastos pingados –fragmentos exóticos, diferentes de tudo que está a seu redor, enfiados no meio da lama fina de depósitos no fundo do mar.

Curiosamente, esse tipo de rocha desta mesma idade pode ser visto em diversas regiões do Brasil, como na Chapada Diamantina baiana, na Serra do Espinhaço mineira e na região serrana do Mato Grosso. O mais interessante, porém, são os depósitos encontrados logo acima das rochas marinhas contendo dropstones: tratam-se de carbonatos, típicos de clima quente, hoje presentes apenas nos mares próximos ao equador, como no banco das Bahamas. Como é possível a existência de rochas de clima quente diretamente em contato com aquelas de clima glacial?

Aí entra a teoria da Terra Bola de Neve, que ganhou força no final do século passado com o trabalho dos cientistas americanos Joseph  Kirchvink e Paul Hoffman, e da equipe liderada por este último. Uma de suas hipóteses é que, durante o período de glaciação, todo o planeta, incluindo a superfície dos mares, foi coberto por uma capa de gelo. Em condições normais, os gases gerados no interior da Terra e expelidos pelos vulcões são consumidos e reabsorvidos pelo oceano. Em uma situação do tipo Bola de Neve, porém, a troca de gases fica praticamente interrompida devido à capa de gelo interposta entre a atmosfera e os oceanos. A atmosfera se concentra cada vez mais em gases expelidos pelos vulcões, dentre os quais o CO2 e o metano, causadores de efeito estufa.

A Terra Bola de Neve traz, pois, em si, a semente de sua ruína, pois a acumulação dos gases na atmosfera acarreta um período de efeito estufa extremo que derrete as capas de gelo e faz com que as rochas carbonáticas de clima quente se depositem sobre as rochas glaciais.

O estudo de antigos episódios Bola de Neve pode nos dizer muito sobre períodos de variação climática intensa (tanto para o frio, quanto para o quente) pelos quais nosso planeta passou, e poderá novamente passar no futuro.

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Fabrício Caxito é professor de geologia e aluno de filosofia na UFMG.

Este texto é uma continuação do artigo “Quando o sertão foi mar”, do mesmo autor.

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