O paradoxo do baixo peso ao nascer

Ilustração: Vitor Rocha
Ciência Fundamental

Por Marcel Ribeiro-Dantas

Ajustes bem-intencionados podem nos levar a estimativas erradas

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A taxa de mortalidade em recém-nascidos é maior entre aqueles que nascem com baixo peso. Recém- nascidos de mães fumantes têm maior chance de nascer com baixo peso. Paradoxalmente, recém-nascidos com baixo peso cujas mães são fumantes têm uma taxa de mortalidade menor que recém-nascidos com baixo peso de mães não fumantes. Então fumar é bom?

O bioestatístico Jacob Yerushalmy, israelense naturalizado americano, apresentou esse argumento pela primeira vez em 1964, quando já havia o consenso de que o cigarro era prejudicial à saúde. Mas apenas em 2006 esse paradoxo foi satisfatoriamente explicado –Yerushalmy havia morrido mais de três décadas antes.

Os dados que o pesquisador havia recolhido não eram fruto de uma olhadinha superficial, já que ele foi responsável por um estudo com mais de 15 mil crianças em São Francisco, nos Estados Unidos. Vários estudos já mostravam que recém-nascidos de mães fumantes pesavam menos e, como o baixo peso estava associado a um maior risco de óbito, se esperava que isso implicasse uma mortalidade maior. O próprio Yerushalmy discutiu esse assunto com cautela, mal acreditando no que os números lhe diziam.

Cerca de duas décadas mais tarde, o americano David Sackett, um dos pais da medicina baseada em evidência, se deparou com um problema semelhante. Ao analisar 257 pacientes hospitalizados, ele detectou uma associação estatística forte entre aqueles com doenças locomotoras e doenças respiratórias, ou seja, era possível fazer predições sobre uma das condições ao saber se o paciente tinha tido a outra. Havia plausibilidade nesse achado, já que doenças locomotoras podiam levar a inatividade, o que poderia acarretar um quadro de doença respiratória. Sabemos, porém, que correlação não implica causalidade. Em um episódio nos Estados Unidos, por exemplo, foi observado que sempre que a venda de sorvete aumentava, havia mais ataques de tubarão. Estaria o consumo de sorvete provocando os tubarões!? Não! No verão as pessoas compram mais sorvete e vão mais à praia. Já no inverno, se ninguém entra na água, o tubarão fica a ver navios.

Foi por compreender a possibilidade de existência de vieses nos dados hospitalares que Sackett repetiu sua análise com 2783 indivíduos, incluindo pacientes não hospitalizados. Para sua surpresa, se antes havia uma correlação forte –centenas de pacientes acompanhados de perto, plausibilidade biológica–, agora as duas condições pareciam não ter nada a ver uma com a outra. (Lembre-se que o número de indivíduos na primeira análise não era desprezível: foram mais de 15 mil as crianças estudadas por Yerushalmy.)

O fenômeno que ocorreu nesses dois estudos é conhecido como viés de colisão. O termo colisão vem da representação gráfica das relações causais: A → B ← C. A e C causam B e as setas “colidem” em B. Em algumas análises de dados, existem razões para ajustarmos nossas medidas com base em certas condições –como por exemplo não misturar alhos com bugalhos, ou seja, não comparar laranjas com bananas. Esse tipo de intuição leva muitos pesquisadores a achar que devem ajustar suas variáveis de interesse por todas as demais variáveis medidas, como se mais sempre fosse melhor.

Hoje, no entanto, é sabido que algumas variáveis, chamadas colisoras, não precisam ser ajustadas, e que se forem irão causar o efeito contrário: enviesar a análise, em vez de remover viés. O que Sackett fez foi ajustar por uma variável colisora: hospitalização (doenças locomotoras → hospitalização ← doenças respiratórias). Em alguns casos pesquisadores não escolhem estudar apenas pacientes hospitalizados: investigam o que está ao seu alcance. Já Yerushalmy tomou a decisão de observar apenas crianças que nasceram com baixo peso (fumar durante gestação → baixo peso ← outras causas para baixo peso).

Um raciocínio que elucida o paradoxo do baixo peso ao nascer é que existem várias razões que podem causá-lo, como anomalias genéticas graves, com um efeito negativo mais forte que o provocado por mães fumantes durante a gestação. Digamos, hipoteticamente, que 10% dos bebês com baixo peso ao nascer, filhos de mães fumantes, irão a óbito, mas que outras causas para o baixo peso levam ao óbito em 50% dos casos. Nesse caso é melhor ter baixo peso porque a mãe fumou do que por outras causas mais graves (e cujas mães não fumavam). Isso não significa que é melhor fumar, mas que nesse caso específico (nascer com baixo peso) existem causas mais letais. Se considerarmos todos os bebês, com baixo peso ou não, a mortalidade é muito menor em bebês de mães que não fumaram. Já no caso de Sackett, pacientes graves eram hospitalizados. Ao observar não só pacientes hospitalizados, era possível ver o dado sem viés, isto é, que as duas condições tinham uma relação muito fraca entre elas, se é que existia.

Esse paradoxo por muito tempo nos intrigou e, mesmo solucionado, sua mensagem principal segue pouco conhecida:  ao contrário da crença de que quanto mais variáveis ajustadas melhor, existem aquelas cujo ajuste pode enviesar a análise.

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Marcel Ribeiro-Dantas é pesquisador no Institut Curie, parte da PSL Research University e doutorando na Universidade Sorbonne, onde pesquisa Inferência Causal em dados observacionais da área de saúde.

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