Como a Terra construiu a Amazônia?

Ilustração: Julia Jabur
Ciência Fundamental

Por Pedro Val

Uma conspiração geológica de 3 bilhões de anos

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A Amazônia ocupa 0.5% da superfície da Terra, mas abriga esmagadores 10% da biodiversidade mundial. Imensidão ecológica dessa grandeza não se constrói da noite para o dia. Como ela ocorreu?

Do limite costeiro atlântico ao limite andino, as rochas que sustentam o continente sob a Amazônia foram sendo amalgamadas de leste para oeste, como um engavetamento de carros. Ao longo de 3 bilhões de anos e até aproximados 900 milhões de anos atrás, cerca de seis pequenos continentes se tornaram o que hoje é a parte setentrional da América do Sul. Esse ambiente superestável (que as geociências chamam de cráton) é o primeiro “fator-Amazônia”. Com tanta estabilidade e rochas tão antigas expostas à superfície, os nutrientes que nelas existem vão se perdendo ao longo do tempo para a água da chuva e dos rios. Assim, a riqueza dos solos que recobrem estas rochas é muito maior a oeste da região, onde se encontram as rochas mais jovens. Desta configuração nasce um gradiente ecológico que se reflete em organismos com diferentes resistências ecológicas, forçando uma diversidade longitudinal.

No centro da Amazônia formou-se um corredor abaulado de oeste a leste, acumulando toneladas de sedimentos de origem fluvial e marinha de maneira alternada. Esta sequência se repetiu durante centenas de milhões de anos, preenchendo as depressões e dando origem às bacias sedimentares. Hoje estas rochas compõem o substrato da outra metade espacial da região, dos Andes ao Atlântico. O casamento desse substrato de rochas com o gigantesco volume de água e o clima local faz dos rios amazônicos verdadeiras serpentes a meandrar incessantes. Daí outro fator-Amazônia: condições propícias para separar e misturar populações de organismos aquáticos. Uma receita pronta para a biodiversidade.

Faltam, ainda, alguns elementos-chave, como a combinação do litoral atlântico e os Andes. Devido à tectônica de placas, o continente sulamericano encontrava-se grudado no continente africano há aproximados 250 milhões de anos. Como um zíper, a tectônica de placas iniciou o afastamento entre a América do Sul e a África no limite sul, que culminou na formação do oceano Atlântico. Há cerca de 110 milhões de anos, instalou-se um litoral na borda leste do que hoje é a Amazônia e, com isso, a foz do Amazonas. No entanto, ainda assim não havia um rio que atravessasse todo o continente. A Amazônia possuía duas grandes bacias hidrográficas, uma a leste, outra a oeste, fronteiriça ao atual estado do Amazonas, de norte a sul. Para juntá-las, outra conspiração geológica se urdiu. Em paralelo à lenta migração do continente rumo a oeste, toda a trama das placas tectônicas se rearranjava sob o Pacífico em função do fluxo mantélico no interior do planeta, a centenas de quilômetros de profundidade. Há aproximados 50 milhões de anos, formou-se a placa de Nazca, que desde então colide com o continente sulamericano. De tal colisão resultou o soerguimento dos Andes, fechando a lista de fatores-Amazônia. Os Andes começaram a soerguer na região da Bolívia e no sul do Peru nos últimos 20 a 30 milhões de anos, mas somente atingiram suas altitudes atuais nos últimos 10 milhões de anos.

Com seus majestosos quatro a seis quilômetros verticais, o peso das montanhas abaulou toda a região do sopé andino e até mesmo a região central da Amazônia. A depressão continental decorrente propiciou a entrada de águas marinhas pela Venezuela. O resultado foi um ambiente pantanoso que mistura água doce e água salgada, o “berço da vida”, segundo alguns pesquisadores. Cientificamente conhecido como lago Pebas, esta grande depressão continental perdurou aproximados 15 milhões de anos. A existência e as características desse lago são ainda fortemente debatidos por cientistas.

Os sedimentos oriundos dos Andes em franco soerguimento e erosão foram preenchendo o Pebas, empurrando-o cada vez mais para leste. Uma vez preenchida a depressão, rios conseguiram atravessar a Amazônia, de oeste a leste e, assim, em algum momento nos últimos 9 milhões de anos, formou-se a Amazônia como é hoje. Como sabemos disso? É nesse período que a pilha de sedimentos submersa no offshore logo a leste da foz do Amazonas começou a receber sedimentos tipicamente andinos e não mais das rochas antigas do cráton. E qual seria a idade da Amazônia? Além da proposta de 9 milhões de anos, há duas outras hipóteses principais: ela teria 6 milhões de anos ou 2.5 milhões de anos. Assim como o lago Pebas, o debate da idade da Amazônia é vigoroso.

A grande conexão fluvial propiciou que a fauna acumulada por milhões de anos a oeste se dispersasse para o leste. Há 2.5 milhões de anos, o planeta intensificou as variações em sua órbita que deram o gatilho para os famosos ciclos glaciais do Pleistoceno. Este foi o corolário das mudanças cíclicas na escala de milhares de anos no volume de água da Amazônia, modificando a rede fluvial e criando ciclos climáticos que afetariam o padrão de secas e cheias desde então.

Foram necessários 3 bilhões de anos de eventos geológicos para que a Amazônia chegasse ao que é hoje. Uma conspiração geológica sem paralelos.

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Pedro Val é geólogo e professor na Universidade Federal de Ouro Preto.

Em 2020 e 2021, o Painel Científico para a Amazônia – SPA, sob os auspícios da Sustainable Development Solutions Network, se reuniu para elaborar o primeiro relatório científico integrado sobre a Amazônia. Este texto é inspirado no Capítulo 1 desse documento, de autoria de Pedro Val e colaboradores. O relatório completo pode ser obtido em: https://www.theamazonwewant.org/

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