Quando o sertão foi mar

Ilustração: Vitor Rocha
Ciência Fundamental

Por Fabrício Caxito

A separação da Pangeia formou um oceano. Será que não houve outros?

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A teoria da tectônica de placas, que ganhou força a partir dos anos 50 do século passado, revolucionou o modo como se olhava o mapa-múndi, com suas separações estanques de massas de água e massas terrestres. Pioneiros como o meteorologista alemão Alfred Wegener e o geólogo sul-africano Alexander du Toit lançaram mão de evidências como o encaixe das linhas da costa da América do Sul e da África, além da presença de rochas e fósseis similares nos dois continentes, e levantaram a hipótese de que, até cerca de 130 milhões de anos atrás, essas duas massas eram unidas em um só continente, a Pangeia. A descoberta da cisão da Pangeia a partir do período jurássico, gerando um novo oceano, o Atlântico, semeou a ideia de que, com o tempo, as massas continentais se deslocam, numa eterna dança de continentes que ocasionou a abertura e fechamento de oceanos e a criação de novas cadeias de montanhas onde duas massas continentais colidiram uma com a outra.

Se a América do Sul e a África se separaram, como suspeitaram Wegener e Du Toit, por que no passado não poderia ter havido, entre os continentes e oceanos, configurações que não conseguimos mais distinguir devido aos ciclos de abertura e fechamento que se sucederam no tempo geológico? Hoje sabemos que a Terra tem cerca de 4,5 bilhões de anos, tempo suficiente para diversos oceanos terem aberto e fechado, e diversos fragmentos de continentes terem colidido e formado supercontinentes em posições bem diferentes das atuais.

Uma pista para desvendar esse quebra-cabeça é procurar, nos continentes atuais, traços de antigos oceanos que se espremeram e se fecharam quando as massas continentais colidiram. A dificuldade de empreender essa pesquisa, porém, se deve, entre outras razões, à dificuldade de encontrar pedaços de antigos oceanos dentro dos continentes.

O fundo dos oceanos é constituído de rochas bastante densas, majoritariamente os basaltos, uma rocha escura muito rica em minerais de ferro e magnésio, bem diferente dos granitos que caracterizam os continentes, ricos em sílica e alumínio, elementos mais leves. Ainda bem que, em algumas situações muito específicas, pedaços de basalto que antes integraram o fundo oceânico acabaram se enfiando em meio às rochas do continente, ficando assim preservados para futuras investigações.

Isto ocorreu, por exemplo, nas zonas de subducção, que são aquelas em que uma placa tectônica entrou por baixo da outra e afundou para o manto terrestre. Neste movimento, pedaços de basalto do fundo do oceano podem ter se desprendido da placa submersa e subido à placa em que estava o continente que havia ficado por cima. Os pequenos pedaços de basalto acabaram ficando conservados como lascas sobre os granitos e rochas sedimentares continentais. Ou seja, estas rochas são muito diferentes de suas vizinhas. Elas têm uma coloração verde-escura específica dos basaltos e outras rochas associadas a eles, e por isto foram chamadas de ofiolitos, do grego “ophios” (serpente) e “lithos” (rocha).

Encontrar ofiolitos em campo e pôr a mão em um pedaço preservado de um antigo oceano é uma alegria enorme para os cientistas. Foi o que aconteceu na região de Monte Orebe, sertão na divisa entre Pernambuco e Piauí, quando, em 2014, um grupo de pesquisadores, do qual faço parte, encontrou e descreveu um pedaço de um oceano de cerca de 820 milhões de anos atrás e o nomeou “ofiolito Monte Orebe”. O estudo foi publicado na revista “Geology” e ajudou a desvendar a configuração de antigas placas tectônicas, continentes e oceanos no nordeste do Brasil.

Curiosamente, a região de Monte Orebe fica logo ao norte da barragem de Sobradinho, na Bahia. E foi a construção da barragem que inspirou a famosa canção de Sá e Guarabyra (por sua vez inspirada nas profecias de Antônio Conselheiro): “O sertão vai virar mar, dá no coração/ o medo que algum dia o mar também vire sertão”.

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Fabrício Caxito é professor de geologia e aluno de filosofia na UFMG.

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