O tortuoso caminho da ciência
Por Tarciso Velho
Pássaros canoros não têm “mau colesterol”, e descobrimos isso por acaso
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Cientistas costumam acreditar que tempo e dedicação resolvem tudo. Se o problema persiste, as habilidades técnicas do pesquisador ficam sob suspeita… Ele então busca ajuda e se aprofunda na literatura específica. Quando uma solução se oferece, ele respira aliviado. Em retrospectiva, a visão da ciência parece clara, mas o caminho de construção do conhecimento científico pode ser cheio de imprevistos, como experimentei em certa ocasião.
Há uns dez anos, no laboratório do prof. Carlos Lois, então no Massachusetts Institute of Technology, o MIT, tentamos produzir linhagens geneticamente modificadas de pássaros canoros a fim de entender quais genes estariam envolvidos no aprendizado do canto.
Começamos tentando replicar uma técnica bem estabelecida para roedores: utilizar vetores virais para infectar embriões. Gerados em laboratório e incapazes de se reproduzir, tais vetores entram na célula quando uma de suas proteínas se liga a uma outra presente na superfície da célula-alvo: a famosa relação de chave e fechadura entre um ligante e seu receptor. Nesse caso, a chave era a proteína VSVg, que se liga ao receptor de lipoproteínas de baixa densidade, o LDLR, responsável pela captação do colesterol da fração LDL, o tal colesterol ruim, associado a doenças cardiovasculares. O material genético viral entra no núcleo, insere-se no DNA da célula e passa a ser herdado por suas filhas. Algumas das células infectadas vão formar as células sexuais e gerar gametas, e, portanto, os filhotes gerados vão carregar o gene de interesse. Ou seja, serão animais geneticamente modificados ou transgênicos.
Como uma dessas bolas com efeito, a tarefa de gerar pássaros transgênicos nos reservou várias surpresas. Alguns milhares de ovos foram injetados, e nada de pássaros transgênicos. Enfim, usando um vírus altamente concentrado, fomos bem-sucedidos. Aquele mesmo vírus, porém, em concentrações bem mais baixas, podia infectar células de inúmeros organismos. Estaríamos usando a chave errada?
Junto com o prof. Claudio Mello, da Oregon Health & Sciences University, fomos espiar o genoma dos pássaros canoros e constatamos que o receptor da chave empregada pelo vírus estava bastante modificado. Este foi o primeiro resultado inesperado, porque o LDLR, a fechadura, era até então considerado comum a todos os vertebrados. Alterações nele diminuem a captação de colesterol, aumentando os níveis de colesterol no sangue. O famoso colesterol alto.
O LDLR de pássaros apresentava lacunas em relação ao de outros animais. Uma comparação mostrou que o vírus infectava muito bem as células de galinha e muito mal as dos pássaros. Quando colocamos um LDLR intacto nestas duas espécies, confirmamos que ele facilitava a entrada viral em células de pássaros e não fazia diferença nenhuma nas de galinha, que já tinham seu próprio receptor intacto. O receptor alterado dos pássaros parece oferecer proteção contra o vírus. O que é ótimo para o pássaro e péssimo para gerar animais transgênicos.
Bem, pássaros não voam por aí tendo ataques cardíacos por causa de colesterol alto… Então veio a segunda surpresa. Uma vez que alterações no LDLR aumentam o colesterol em humanos, roedores e peixes, precisávamos aferir essa taxa nos pássaros canoros. Medimos o colesterol das duas aves (passarinho e galinha) e o comparamos com o de humanos. O exame de sangue revelou que não havia LDL no passarinho, o tal colesterol ruim. Isso é surpreendente, porque partículas de LDL são consideradas o principal carreador de colesterol. Mas tinha muito colesterol de alta densidade (HDL), o dito do bem. Parece então que o receptor divergiu, mas o sistema de transporte do colesterol também mudou. Não necessariamente nesta ordem.
O interessante é que pássaros canoros parecem ter resolvido o problema do mau colesterol com um mecanismo de transporte diferente, muito saudável, com altos níveis de HDL e nenhum LDL. Como isso ocorreu ainda não sabemos, mas vamos continuar seguindo essa bola com efeito e ver até onde ela nos leva. A explicação pode trazer novas ideias sobre a relação do colesterol e doenças cardiovasculares, e como esta questão pode ter sido resolvida na natureza.
Esse é o processo de muitas descobertas científicas: cheio de surpresas e nem sempre seguem uma linha reta.
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Tarciso Velho é neurocientista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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