Sobre os ombros dos nanicos
Por Luiz Augusto Campos
A desigualdade dentro da ciência
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“Se eu pude ver além foi porque estava sobre os ombros dos gigantes”. De mote da página inicial do Google Scholar a título de um best seller de Stephen Hawking, este adágio se tornou símbolo e síntese de como o avanço científico se daria. A história da frase é bem mais complexa, porém. Embora formulada séculos antes, sua versão mais famosa se origina de uma carta enviada por Isaac Newton em resposta a um de seus maiores desafetos, Robert Hooke, que reclamava da falta de reconhecimento de suas contribuições filosóficas às leis da gravidade.
À época, Newton não apenas reivindicava a autoria dessas leis como também discordava de Hooke quanto à importância do conhecimento especulativo para a ciência. Em sua perspectiva, as descobertas científicas seriam feitas em grande medida contra os gigantes, e não a partir deles. O que poucos sabem é que a menção ao gigantismo dos pensadores do passado era provavelmente uma referência irônica de Newton à baixa estatura de Hooke. Logo, mais do que sintetizar o avanço do conhecimento científico, a metáfora seria uma alfinetada sarcástica nas duvidosas teorias de seu interlocutor. Mais importante ainda, ele estava insinuando que Hooke estava longe de ser um desses titãs e que sua contribuição às teorias da gravidade era mínima.
Mas a menção recorrente dessa frase nos dias atuais não apenas contraria uma má interpretação de seu uso mais célebre. Embora sejamos seduzidos pelo heroísmo de precursores como Copérnico, Galileu, Einstein ou Pasteur, a lógica da descoberta científica hoje é muito distinta daquela de outrora. Nomes como Charles Darwin e Thomas Edison, por exemplo, trabalhavam solitários, com experimentos artesanais em laboratórios quase caseiros. Nada mais distante do trabalho coletivo, rotinizado e articulado em rede da ciência contemporânea. Nela, o papel de insights pessoais é importante, porém bem menor do que aquele desempenhado pelo acúmulo de conhecimento realizado por numerosos cientistas.
Não há demérito em deslocar a ênfase nos gigantes para os nanicos, ao contrário. Reconhecer o papel dos muitos em comparação aos poucos é lutar contra uma tendência intrínseca à ciência de distribuir financiamentos e prebendas acadêmicas para seletos indivíduos, invisibilizando o trabalho coletivo por detrás das grandes descobertas. Essa lógica reforça o que o sociólogo Robert Merton chamou de “efeito Mateus”: na ciência, como na parábola bíblica dos talentos, “a quem tem, mais será dado, e terá em grande quantidade, mas a quem não tem, até o que tem lhe será tirado”.
Não existe consenso sobre o que promove o reforço das desigualdades internas à ciência, mas os múltiplos filtros próprios da carreira acadêmica e a lógica altamente hierarquizada dos laboratórios parecem ser elementos centrais. O papel das lideranças na gestão de projetos complexos continua fundamental, mas elas próprias não ignoram as dificuldades em compartilhar as conquistas. Em entrevistas com laureados pelo Nobel na década 1970, Harriet Zuckerman já destacava o incômodo desses cientistas com o excessivo reconhecimento individual que recebiam. Muitos lamentavam que a atenção gerada pelo prêmio encobrisse o trabalho coletivo de numerosas equipes. Ao cunhar a noção de “efeito Matilda”, Margaret Rossiter ressaltou como essa invisibilização afetava as mulheres em particular, mas o mesmo parece se aplicar a cientistas de várias outras minorias políticas.
Afora os raros momentos de revolução paradigmática, a ciência não se faz sobre os ombros de gigantes, mas sobre as contribuições de nanicos. Mesmo as descobertas mais inovadoras costumam se valer do trabalho conjunto de numerosos cientistas que publicam centenas de artigos, trabalhando em laboratórios com equipes de assistentes em estruturas quase industriais, conectadas por redes globais de cooperação. Se as hierarquias acadêmicas têm seu papel na gestão, produção e reprodução da ciência, elas não podem redundar em uma acumulação sem fim de desigualdades e assimetrias. O desafio é, portanto, produzir uma estrutura de recompensas que premie grandes lideranças sem, contudo, ignorar o papel fundamental do trabalho coletivo, sobretudo daqueles e daquelas cientistas oriundos de grupos desfavorecidos e discriminados.
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Luiz Augusto Campos é professor de sociologia do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ, editor-chefe da revista acadêmica DADOS e pesquisador da diversidade no mundo acadêmico.
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