O Tinder dos medicamentos
Por Murilo Bomfim
Na selva da biodiversidade, cientista busca compostos que deem match com doenças
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Independentemente de onde você mora, é bem possível que exista ao menos uma farmácia perto da sua casa. O Brasil é um dos países com mais drogarias no mundo: segundo a consultoria IQVIA, temos uma para cada 2.700 habitantes. Na Argentina, uma farmácia atende 3.200 pessoas; na Índia, 2 milhões.
No entanto, além de campeão das drogarias corriqueiras, o Brasil é destaque no quesito “farmácias do futuro”: da imensa e desconhecida biodiversidade de sua flora poderão ser extraídas moléculas para a formulação de novos medicamentos. Mas, à diferença do estabelecimento da esquina, a biodiversidade não tem senha nem atendente de balcão –garimpar moléculas, presentes em qualquer bioma, é tarefa mais complexa.
Daniela Trivella é uma das cientistas que mergulham na natureza atrás de compostos com atividade farmacológica. Em seu cotidiano, ela caça moléculas em amostras coletadas em lugares tão distintos quanto a Amazônia ou o fundo do mar, por exemplo, onde foi encontrada uma carcaça de baleia em decomposição, com potenciais compostos, a cerca de 4 mil metros de profundidade.
Graduada em biologia, a pesquisadora fez mestrado em biotecnologia, doutorado em física biomolecular e pós-doutorados em química e farmacologia. Trajetória acadêmica tão diversificada lhe possibilitou desenvolver técnicas voltadas à interação de proteínas e compostos bioativos, tendo em vista novos medicamentos. É comum que proteínas estejam envolvidas em mecanismos de doenças; alguns antidepressivos, por exemplo, agem sobre proteínas para aumentar concentrações do hormônio noradrenalina. Para que um composto ativo interaja com uma proteína, é preciso haver um match, um encaixe entre eles. E este encaixe depende do formato e dos átomos presentes no composto: é esta conformação que pode estimular ou inibir a atividade proteica.
Trivella coordena uma equipe do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), em Campinas, para onde são enviadas amostras de plantas e bactérias colhidas por parceiros especializados que se aventuram pelos mais distintos cantos do país –o que garante a diversidade na biblioteca de produtos naturais que o LNBio vem montando, atualmente com 6 mil amostras cadastradas. A questão é que cada amostra contém diversos compostos bioativos, sendo que apenas alguns são relevantes para inspirar novos medicamentos. Como, então, identificar o composto específico que interage com determinada proteína?
Os pesquisadores se valem de duas técnicas. Uma é a cristalografia de proteínas, que funciona como uma pesca: a proteína (em forma de cristal) é a isca, e a amostra a ser testada é o mar. Quando o composto da amostra se liga à proteína, ambos formam um complexo que, posteriormente, é analisado pelo Sirius, o acelerador de partículas inaugurado em Campinas em 2018. No fim do processo, tem-se a estrutura tridimensional da proteína com o composto conectado.
A estratégia é complementada pela espectrometria de massas, que fornece o que seria a impressão digital do composto, e a partir da qual é possível conhecer os átomos que formam a molécula bioativa. Munida das informações obtidas por ambas as técnicas, a equipe cruza dados e identifica a molécula em questão, que pode dar origem aos tão esperados medicamentos.
Estes cruzamentos, no entanto, levam tempo e estão sujeitos a erros e frustrações –a molécula pode já ser conhecida ou mesmo irrelevante para a produção de um fármaco. Para agilizar o processo, Trivella agora se dedica à construção de uma interface computacional que dê conta desses cruzamentos. É como se fosse o Tinder dos medicamentos: as informações são inseridas e o programa aponta quem combina com quem e quais casais serão mais frutíferos.
Para desenvolver a ideia, a equipe, composta de químicos, farmacêuticos e biólogos, conta ainda com uma cientista da computação e um matemático. Esta diversidade de conhecimentos é essencial para unir alta tecnologia e biodiversidade brasileira. Se tudo der certo, novos medicamentos chegarão ao mercado. Farmácias não vão faltar.
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Murilo Bomfim é jornalista.
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