O que nossa fala e o canto do sabiá têm em comum

Ilustração: Valentina Fraiz
Ciência Fundamental

Por Tarciso Velho

Aves canoras nos ajudam a entender a gagueira e outros distúrbios da linguagem

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Em geral, começamos a falar naturalmente. Imitamos o que ouvimos dos pais, dos amigos, de quem estiver por perto. Ou seja, modificamos as vocalizações de acordo com o que ouvimos. Aprendemos, erramos, ensaiamos de novo. E disso resulta um sistema de comunicação único no mundo animal, a linguagem falada. Ela é singular, universal, uma característica biológica nossa.

No entanto, um seleto grupo de animais compartilha conosco o que chamamos de aprendizado vocal: eles aprendem ouvindo e copiando outros animais da espécie. Para surpresa de alguns, este grupo não inclui os grandes primatas, mas outros animais: mamíferos aquáticos (baleias, golfinhos, pinípedes), morcegos, pássaros, e possivelmente elefantes e o sagui-de-tufos-brancos. Não são todas as aves, porém, que aprendem suas vocalizações, apenas pássaros canoros, beija-flores e papagaios

Mas por que isso nos interessa? Porque um processo biológico tão particular como o aprendizado vocal deve ser meticulosamente estudado. Seja para melhor entender distúrbios de linguagem, seja para satisfazer nossa curiosidade.

Cerca de 5% das crianças americanas, por exemplo, têm algum tipo de distúrbio da fala, dos quais 20% são de gagueira. Não se conhece a causa da maioria deles. Além disso, estimativas sugerem que cerca de 40% de crianças diagnosticadas com autismo, cujas causas são em grande parte desconhecidas, são consideradas não verbais.

É fundamental, portanto, entender as bases neurobiológicas da aquisição da fala e os componentes genéticos nela envolvidos. Até então, estudos em humanos ajudaram a compreender o processo e caracterizar cuidadosamente as fases de aquisição da fala. Observou-se que mutações genéticas raras estão associadas a defeitos no aprendizado e na produção da fala, incluindo gagueiras persistentes e apraxias, mas ainda não se esclareceu completamente como estas mutações influenciam no funcionamento do cérebro. É importante também destacar que o ambiente influencia o aprendizado, tanto que aprendemos diferentes línguas, desenvolvemos sotaques regionais, formamos nosso vocabulário a partir do nível de educação etc. Mas ainda não está claro como o ambiente influencia o funcionamento dos circuitos cerebrais envolvidos na fala, ou mesmo se e quais fatores ambientais contribuem para distúrbios da fala.

Nos últimos cinquenta anos, os pássaros canoros se tornaram objeto de busca das bases neurobiológicas do aprendizado vocal. Eles também começam a cantar ouvindo seus pares adultos. Aprendem, erram, ensaiam de novo. Tanto que o sabiá da sua rua tem um canto diferente do da rua de baixo. Sabiás paulistas provavelmente possuem um dialeto diferente dos gaúchos. E isso é um produto direto do processo de aprendizado e do modelo utilizado.

Humanos e pássaros canoros precisam de uma audição intacta para aprender e manter as vocalizações –crianças com problemas auditivos apresentam dificuldades no aprendizado vocal. A perda da audição em adultos acarreta deterioração da fala, como alterações na entonação e no ritmo.

Os pássaros, como nós, possuem um período crítico de aprendizado, quando o cérebro é particularmente sensível e eficiente para adquirir uma língua (ou duas, ou três). Depois essa capacidade cai drasticamente e com o tempo vamos ficando mais limitados. Por isso, tantos de nós acham difícil enfrentar uma segunda língua na maturidade. Ainda que nos tornemos fluentes em um segundo idioma, continuamos falando com sotaque. E esse sotaque tem origem sensorial: conforme somos expostos à língua nativa, deixamos de perceber sons que não lhe são comuns. Não conseguimos reproduzir certos sons da segunda língua porque não conseguimos perceber esses sons. Nosso sistema auditivo sofreu um comprometimento neural, condição também compartilhada pelos pássaros.

Apesar do enorme progresso nas últimas décadas, pouco sabemos sobre as bases genéticas desse processo. Quais genes são importantes? Existem aqueles exclusivamente envolvidos no aprendizado vocal ou estamos atrás de genes genéricos e a fala é apenas uma das muitas propriedades que emergem do cérebro? Ainda não temos as respostas, mas a partir de modelos animais como aves canoras e sua manipulação genética certamente as teremos.

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Tarciso Velho é neurocientista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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