Elementar, senhores juízes: a matemática e a espionagem
Por Edgard Pimentel
A criptografia no sistema de justiça
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O trabalho de um matemático é parecido com o de um detetive, um espião ou um promotor. Em matemática, começamos com algumas suspeitas, certas pistas e um pouco de intuição. Depois de um tempo vem a descoberta e as evidências que a sustentam. Mas o sentido inverso desta comparação pode ser bem interessante: a matemática dos agentes secretos, da segurança nacional e até mesmo dos tribunais.
Mensagens secretas existem desde que as pessoas começaram a se comunicar. E a necessidade de proteger seus conteúdos está na origem de uma importante área da matemática, a criptografia. Este conjunto de técnicas tem dois objetivos, duais: de um lado, desenvolver regras que permitam codificar mensagens com segurança; do outro, obter estratégias para quebrar esses códigos.
Um exemplo elementar é a chamada cifra de César, que o historiador romano Suetônio assim descreveu: escreve-se a mensagem secreta e então substituem-se as letras A por D; B por E; C por F, e assim por diante. Substituímos uma letra qualquer por aquela que ocupa três posições adiante no alfabeto. Mas e quando as letras acabam? O que fazer com o X ou o Z? Simples: o X será substituído por A; o Y será trocado por B, e o Z por C. Ora, identificar o fim e o início de uma lista está bastante presente na matemática. A noção de aritmética modular, ou congruência, devida ao alemão Gauss, é uma formalização desta ideia.
A cifra de César é um exemplo de criptogafia por substituição. Um modo de fortalecer uma cifra de substituição é recorrer a mais de um alfabeto (letras e números, digamos), a chamada cifra polialfabética. Um bom exemplo é a cifra de Hill, que associa cada letra a um número e usa álgebra linear para produzir mensagens cifradas por meio da multiplicação de matrizes. São polialfabéticos os sistemas de criptografia Enigma e Purple que a Alemanha e o Japão utilizaram na Segunda Guerra Mundial.
Mais recentemente, matemática de extrema sofisticação entrou em campo. Descobriu-se que um sujeito capaz de guardar segredos é o logaritmo discreto (não se trata de uma piada!). O logaritmo discreto pode ser definido em qualquer grupo. E calculá-lo em alguns grupos pode ser muito difícil. Assim, um código cuja chave depende de resolver logaritmos discretos sobre estes grupos é mais difícil de ser quebrado. Aqui, entram em cena números primos muito (muito!) grandes e curvas que nos lembram a orla de Copacabana.
Decifrar mensagens secretas é descobrir verdades, e este exercício se manifesta também nos tribunais. A admissão de evidências baseadas em DNA deve-se à teoria das probabilidades. Os treze pares de genes usados para identificação variam tanto que a chance de duas pessoas distintas dividirem os mesmos pares é inferior a 1 em 400 trilhões. Já a análise estatística dos fragmentos de alguns projéteis foi utilizada para tentar responder se havia ou não um segundo atirador em Dallas, naquela sexta-feira de novembro de 1963.
Mas se servir da matemática nos tribunais não é unanimidade. Em artigo publicado na “Harvard Law Review”, Laurence Tribe, que é professor emérito de direito constitucional naquela universidade, trata o tema com cautela. O problema? O uso da matemática como peça infalível poderia acarretar erros no sistema de justiça.
No fim do século XIX, o militar francês Alfred Dreyfus foi acusado de fornecer informações secretas ao exército alemão. A análise estatística de sua grafia em um memorando comprovaria sua culpa. Em 1904, os matemáticos Darboux, Appel e Poincaré entraram em campo e revisitaram a análise estatística da tal grafia. A conclusão desses notáveis foi que a análise era amadora e decorria do mau uso das probabilidades. E estava equivocada.
Mas o recado deste trio é muito mais profundo: para ser útil de verdade, e melhorar a vida das pessoas inclusive em dimensões secretas, a matemática precisa ser feita (e usada) com decoro.
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Edgard Pimentel é matemático e professor da PUC-Rio.
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