Dois rabinos se encontram na lousa

Por Edgard Pimentel

Um passeio pela matemática na tradição judaica

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Pensar matemática (ou sobre ela) é natural. Como consequência, várias sociedades se dedicaram ao tema, ao longo dos tempos. Por exemplo, são diversas as contribuições dos gregos e os avanços da matemática árabe. Há ainda os feitos da matemática oriental, e a matemática subsaariana, que informa a matemática egípcia, ou o conhecimento matemático pré-colombiano. E há a tradição matemática judaica.

O Talmud, palavra que em hebraico significa estudo, é um conjunto de livros que abordam diversos aspectos da vida judaica. Escrito ao longo dos séculos 1 e 6 e impresso pela primeira vez na Veneza do século 16, ele é composto de seis grandes partes que se desdobram em mais de sessenta tratados. De forma muito simplificada, a obra registra a Torá oral e sua interpretação.

Uma das discussões no Talmud é sobre o número Pi, que é definido como a razão entre o comprimento de uma circunferência e seu diâmetro. Este número aparece em situações variadas, da engenharia civil à navegação aeroespacial, passando pelas telecomunicações. No Talmud, pode-se ler que um círculo cuja circunferência é igual a três palmos terá um palmo de diâmetro. Ou seja, que o número Pi é igual a 3. O surpreendente é que o texto parece antecipar a incorreção de tal assertiva, e como justificativa cita o livro bíblico de Reis I. É aqui que um quebra-cabeça importante se instala.

Por um lado, o texto bíblico afirma que Pi vale 3; por outro, os sábios, ou rabinos, do Talmud conhecem aproximações de Pi que contrariam este fato. Mais ainda, suspeitam ser impossível determinar este número de modo cabal. Como conciliar a afirmação bíblica –supostamente blindada– e o conhecimento disponível sobre o tema? Inúmeras tentativas se apresentam, mas a mais curiosa sustenta que a escolha do valor 3 serviria para simplificar os cálculos: seria mais fácil entender um valor “redondo”. Mais ainda: para finalidades rituais, o valor 3 seria suficiente.

É apenas em 1168 que um dos principais intelectuais da tradição judaica medieval, Maimônides, oferece uma resposta ao dilema de seus antecessores. Em um de seus comentários ao Talmud, Maimônides afirma que o número Pi é irracional, que 3,14 é uma aproximação conhecida “e aceita pelas pessoas educadas”, e finalmente decide que, uma vez que conhecer o número todo é impossível, a escolha por utilizar sua parte inteira –ou seja, o número 3– era justificada.

A importância de Maimônides para a matemática judaica extrapola este caso particular. Em seu Guia dos Perplexos, ele menciona –sem demonstrar– propriedades geométricas que havia aprendido na versão em árabe das Cônicas, de Apolônio. Como esta obra não havia sido traduzida para o hebraico, matemáticos da tradição judaica se dedicaram a estabelecer, de forma independente, tais propriedades. Surgiram então, variadas demonstrações dos fatos mencionados por Maimônides.

O interesse da intelectualidade judaica pela matemática pode ter se iniciado a partir de questões da observância religiosa –para saber, por exemplo, como construir estruturas de acordo com os preceitos da tradição. Mas rapidamente tornou-se independente. Em 1321, Levi ben Gershon publica a obra Maaseh Hoshev [A arte de calcular]. Em muitos aspectos, este texto parece aqueles utilizados hoje: uma parte teórica, seguida de aplicações e uma lista de problemas.

Antes ainda, Ibn Ezra, em seu Livro dos Números, de 1146, fornece diversos exemplos para discutir importantes fatos sobre séries numéricas. E também no século 12 é Abraham Bar Hiya que nos ensina a calcular a área do círculo tratando-o como um… triângulo! Bar Hiya pensava o círculo como um disco de vinil: se o cortássemos longitudinalmente e abríssemos suas ranhuras, teríamos um triângulo cuja altura é o raio do círculo e cuja base é seu diâmetro. Seu método foi formalizado rigorosamente apenas na década de 90 do século passado.

Na tradição judaica, a matemática aparece de diversas maneiras: no estudo do número Pi, no interesse por somas e aproximações de números importantes, na busca pelo pensamento rigoroso, e em muitos outros níveis. A propósito, como em qualquer sociedade, em qualquer ponto do tempo.

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Edgard Pimentel é matemático e professor da PUC-Rio.

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