De onde vem a força implacável das superbactérias?
Por Clarice Cudischevitch
Angélica Vieira acredita que a resposta esteja na microbiota intestinal
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Quando entrou na graduação em biologia em 2002, em Belo Horizonte, Angélica Vieira descobriu que a UFMG tinha laboratórios de pesquisa. Ela estudava em uma faculdade privada para trabalhar durante o dia e ajudar em casa, pois perdeu o pai muito cedo, e decidiu bater de porta em porta: queria fazer iniciação científica na federal, mesmo sem estudar lá. O prof. Mauro Teixeira, do Laboratório de Imunofarmacologia, acolheu a futura cientista, que enveredou pelo universo da microbiota, assunto de seu mestrado e doutorado.
“Não procurei essa área, entrei porque foi a que me aceitou”, ela diz. “Mas foi uma sorte gigantesca, pois desde o primeiro dia me apaixonei pelo assunto.” Nos últimos anos, multiplicaram-se as pesquisas sobre a microbiota intestinal –o conjunto de microrganismos que vivem no trato digestivo e conhecida popularmente como “flora intestinal”, denominação incorreta e felizmente em desuso. Se hoje se fala cada vez mais sobre a relação entre ela e problemas de saúde variados, do câncer à depressão, naquela época era um mundo desconhecido.
No laboratório em que Vieira fez iniciação científica, o grupo tinha interesse em entender o papel das bactérias intestinais em processos inflamatórios. Era o único do Brasil que dispunha de animais gnotobióticos, ou seja, isentos de microrganismos: os camundongos criados lá nasciam por cesárea (a microbiota só se desenvolve após o nascimento), viviam isolados numa bolha e consumiam comida e água estéreis, o que impede a contaminação microbiana.
O grupo observou que esses animais não respondiam aos modelos inflamatórios –em outras palavras, não desenvolviam algumas doenças. Assim, inicialmente se acreditou que as bactérias seriam as responsáveis por causar inflamações. Outros estudos, porém, mostraram que em doenças inflamatórias intestinais como colite ou Chron, os animais desprovidos de microbiota apresentavam quadros muito mais graves.
“Na época nem existiam técnicas de sequenciamento de DNA, mas começamos a explorar esse campo”, conta a bióloga. Surgiu a oportunidade de trabalhar com um grupo no Garvan Medical Research, na Austrália, que identificou nas células do sistema imune um receptor ativado por metabólitos produzidos pela microbiota. A atuação desses microrganismos em processos inflamatórios começava, assim, a se delinear. Vieira sonhava ir para fora do país, mas não sabia falar inglês. Decidiu se virar e seguiu para um doutorado sanduíche.
O trabalho com o grupo australiano foi publicado na “Nature” em 2009, quando surgia o boom para entender mais a fundo a microbiota. O que se observou foi que, em indivíduos saudáveis, as bactérias benéficas são predominantes, enquanto nos doentes elas estão reduzidas. Isso sugere que, nesses casos, os tais metabólitos –produtos do metabolismo– também estão reduzidos e não são ativados.
Esses metabólitos são produzidos quando as bactérias consomem fibras solúveis. Por isso, uma alimentação desbalanceada e pobre em fibras –tão comum no mundo ocidental, voraz consumidor de alimentos ultraprocessados– pode levar ao desequilíbrio da microbiota, chamado de disbiose, e propiciar o desenvolvimento de doenças. Mas a relação danosa não para por aí.
Angélica Vieira investiga hoje um potencial bem mais destrutivo desse desequilíbrio: o desenvolvimento quase implacável das superbactérias, aquelas blindadas a todos antibióticos. A ONU estima que infecções resistentes a drogas possam causar 10 milhões de mortes por ano até 2050, e há quem sustente que elas serão a próxima pandemia. A cientista, aliás, acredita que a Covid-19 vai acelerar a multiplicação das superbactérias, uma vez que muita gente vem usando antibióticos e outros medicamentos de forma descontrolada na tentativa de combater o coronavírus.
A principal causa do surgimento e propagação das superbactérias é, justamente, o uso indevido e desenfreado de antibióticos, cuja produção de novas classes está estagnada há vinte anos. Mas o palpite de Vieira é que a microbiota poderia atuar como importante reservatório de múltiplos genes de resistência. Bactérias são organismos com enorme habilidade em transferir genes a outras bactérias, entre eles genes de resistência a antibióticos.
“A OMS fez uma campanha grande há uns quinze anos mostrando o perigo do uso indiscriminado de antibióticos e promovendo medidas mais restritas, mas a resistência continuou crescendo enormemente nos últimos anos. Por quê?” A hipótese da bióloga é que alterações na microbiota causadas pela dieta ocidental possam ter contribuído para a seleção e disseminação da resistência antimicrobiana.
Ela vem estudando uma superbactéria específica, Klebsiella pneumoniae, que já causou surto de pneumonia no Brasil. “A Klebsiella dissemina genes de resistência com extrema facilidade e não existe qualquer antibiótico eficaz contra ela.” Parte dessa dificuldade em combatê-la talvez se deva à sua presença natural em nossa microbiota que, se não estiver em equilíbrio, pode favorecer a multiplicação da superbactéria.
Vieira, que na iniciação científica trabalhou dois anos como voluntária porque não havia bolsa disponível, hoje coordena o Laboratório de Microbiota e Imunomodulação no Departamento de Bioquímica e Imunologia da UFMG. “Nunca tive dúvidas de que queria ser cientista, embora eu, criada na roça, não tivesse noção de como isso poderia acontecer”, conta a mineira de Gororós, distrito com cerca de quinhentos habitantes, hoje mãe de Estela e Rafael.
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Clarice Cudischevitch é jornalista, gestora de Comunicação no Instituto Serrapilheira e coordenadora do blog Ciência Fundamental.
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