Mais calor, mais doenças
Por Fabio Gomes
O aquecimento global redistribui enfermidades transmitidas por mosquitos
*
Os efeitos do aquecimento global já se fazem sentir: estudos sugerem que observamos um aumento da temperatura média global em torno de um grau Celsius desde o início da Revolução Industrial. Esse aumento, aparentemente pequeno para o leigo, já se reflete numa frequência alarmante de eventos climáticos extremos, tais como secas prolongadas que acarretam importantes perdas de produção agrícola. Se a tendência atual se mantiver, até o final do século poderemos ter acrescentado até quatro ou cinco graus Celsius à temperatura mundial, com consequências que poderão inspirar uma batelada de filmes-catástrofe. Resta saber se haverá espectadores.
Um dos efeitos pouco discutidos do aquecimento global é a redistribuição de enfermidades transmitidas por mosquitos, sobretudo os Anopheles, causadores da malária; e os Aedes, mais especificamente o Aedes aegypti e o Aedes albopictus, encarregados de alastrar vírus como os da dengue, da zika e da chikungunya.
Não é preciso ser especialista em mapas para constatar que é nas zonas mais quentes que se concentram esses insetos. Além de fatores históricos e socioeconômicos, tal adensamento também tem a participação direta da biologia dessas criaturas: como em outros invertebrados, a temperatura de seu corpo varia conforme a temperatura do ambiente, regulando assim sua fisiologia e afetando traços como longevidade, fecundidade e imunidade. De fato, em um estudo de 2019, um grupo de pesquisadores concluiu que diferenças entre a riqueza de países (PIB) explicam apenas 5% da distribuição atual de casos de dengue, enquanto que fatores como temperatura e pluviosidade tiveram um peso bem maior, 68% e 13%, respectivamente.
A alta adaptação dos insetos nessas áreas tropicais foi determinante em diversos empreendimentos humanos ao longo da história. Se a baixa aclimatação dos transmissores da malária no Sul dos Estados Unidos e na região do Mediterrâneo europeu colaborou para a erradicação da doença naquelas regiões, a dificuldade em controlar a população de vetores e o número de casos de malária e febre amarela foram fundamentais para a desistência dos franceses em construir o Canal do Panamá, e posterior transferência dos direitos para os americanos.
Com o aumento da temperatura, regiões hoje mais temperadas passarão a apresentar características propícias à proliferação de mosquitos, expandindo a sua zona de ocupação. A extensão desse espalhamento vai depender da intensidade do aquecimento global e de seu impacto sobre padrões de chuvas, além de fatores como o tamanho das áreas de desmatamento e o adensamento da ocupação humana. De qualquer modo, regiões hoje pouco afetadas pela malária ou a dengue estarão mais expostas a essas enfermidades. Pesquisadores dos Estados Unidos previram que até 1 bilhão de pessoas na Europa, Ásia e América do Norte passarão a enfrentar infecções transmitidas por Aedes caso o aquecimento global não seja controlado.
No Brasil, prevê-se uma multiplicação de zonas onde os mosquitos encontram condições favoráveis de reprodução ao longo do ano, o que aumentaria o número de casos de moléstias e a pressão sobre o sistema de saúde. Incluem-se aí estudos que previram a expansão na região amazônica da distribuição de vetores associados à transmissão da malária causada por Plasmodium falciparum, parasita responsável pela forma mais letal da doença. Diversos outros estudos com foco na África apontaram resultados semelhantes de expansão da ocupação desses animais. No entanto, em algumas regiões da África subsaariana, as temperaturas poderão se tornar tão altas a ponto de abreviar a longevidade dos mosquitos, que não vão dispor de tempo hábil para transmitir as doenças. Nesse cenário, a incidência de malária poderia até mesmo ser reduzida em algumas regiões.
Assim, parece haver consenso na previsão de emergência (ou reemergência) dessas enfermidades em locais hoje não afetados, e um aumento de casos em regiões hoje endêmicas. Em comum, todas as previsões sugerem que as consequências da expansão territorial de mosquitos vetores podem ser gravíssimas, visto que boa parte dessas regiões é habitada por uma população sem defesas imunes originadas pela exposição prévia a esses males e sem um sistema de saúde e vigilância treinado para acompanhar, identificar e tratar essas doenças.
*
Fabio Gomes é professor do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da UFRJ e membro do Laboratório de Ultraestrutura Celular Hertha Meyer.
Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar mais novidades do instituto e do blog Ciência Fundamental. Tem uma sugestão de pauta? Veja aqui como colaborar.