As ovelhas de um olho só

Por Rossana Soletti

Um caso curioso nos ajuda a responder por que temos dois olhos

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O livro infantil Somos todos extraordinários, da norte-americana R. J. Palacio, conta a história de um garotinho de um olho só que vive como um garoto comum, mas enfrenta olhares espantados e dedos apontados. Ele sabe que não pode mudar seu rosto, mas acredita que as pessoas possam mudar o modo como o enxergam. Terminada a leitura, minha filha de sete anos me perguntou: “Se o menino é extraordinário e se somos todos extraordinários, então por que nós nascemos com dois olhos”?

A pergunta pode ser simples, mas a resposta é um tanto complexa. Comecei por contar a ela uma outra história.

Na década de 50, numa fazenda no interior dos Estados Unidos as pessoas foram surpreendidas pelo nascimento de ovelhas com um olho só. O mistério das ovelhas ciclopes atraiu atenção e muitos palpites, ainda mais depois que outras ninhadas semelhantes aparecerem em fazendas vizinhas. Para resolver essa charada, convocaram os cientistas do Departamento de Agricultura, mas ninguém imaginava que seriam necessários tantos anos de investigação.

A primeira hipótese era de que uma doença genética estivesse causando as alterações, mas após uma série de cruzamentos feitos em laboratório, nada aconteceu: todas as ovelhas nasciam com dois olhos e o rosto típico da espécie. Os pesquisadores observaram então que o nascimento das ovelhas ciclopes obedecia a um padrão sazonal, além de ser restrito aos rebanhos que pastavam em altitudes elevadas.

Foi aí que surgiu a hipótese de que um fator ambiental pudesse estar interferindo na gestação daqueles animais. A identificação desse fator não ocorreu da noite para o dia, é claro. Cerca de dez anos e muitas análises depois, veio enfim a resposta: as ovelhas estavam consumindo uma planta herbácea nativa da região que provocava malformações na cabeça do feto, caso ingerida nas primeiras semanas de gestação.

Pronto, mistério resolvido: era só retirar a planta das pastagens e não nasceriam mais ovelhas ciclopes. Mas, assim como fazem as crianças, os cientistas sempre querem saber os porquês: por que a ingestão dessa planta provocava o nascimento de ovelhas com um olho só? Lá se foram mais alguns anos de pesquisa até o isolamento e a caracterização dos constituintes químicos da planta, com a identificação do culpado, nomeado de ciclopamina.

E foi somente três décadas depois que a outra peça do quebra-cabeças foi desvendada e as coisas começaram a se encaixar: pesquisadores observaram que para o correto desenvolvimento do cérebro, dos olhos e de outras estruturas da face dos animais (incluindo os seres humanos), as células do embrião precisam receber informações, na hora certa, de proteínas que agem como guias sinalizadores em uma via chamada Hedgehog, ou Hh. Quando o embrião ainda é muito menor do que um grão de arroz, os sinalizadores da via Hh atuam nas células que ficam no meio da face, levando as instruções para que elas migrem lateralmente, proliferem e estabeleçam dois campos visuais. Caso essa via seja bloqueada, diversas malformações cerebrais e faciais podem ocorrer, como a ciclopia. E quem é que pode bloquear a via Hh? Eureka, é a ciclopamina!

Tantas décadas de pesquisa e de descobertas nos trouxeram entendimentos que vão além dos processos necessários para a formação dos olhos e da face de ovelhas, ratos ou seres humanos. Compreender o modo como as células se comunicam nos ajuda também a pensar em tratamentos para reajustar células com erros na sinalização. Hoje sabemos que em algumas células tumorais a via Hh pode estar ativada em excesso, e por isso inibidores dessa via, parecidos com a ciclopamina, já são utilizados no tratamento de um tipo de câncer de pele e estão sendo testados para vários outros tipos de câncer.

Assim como na ficção do menino que com apenas um olho nos mostra a beleza da diversidade, a construção do conhecimento científico pode nos levar a caminhos extraordinários.

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Rossana Soletti é professora da UFRGS Litoral e atua principalmente em oncobiologia, morfologia e divulgação científica.

Sabemos que as crianças fazem as melhores perguntas, e que a ciência pode ter boas respostas para elas. Todo mês, a série “Perguntas de criança, respostas da ciência” convida um cientista a responder uma dessas questões fundamentais. Você tem uma sugestão de pergunta ou de pauta para o blog? Veja aqui como colaborar.