Um herege na física
Por Murilo Bomfim
A controvérsia de Tsallis
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No século 16, Copérnico disse que a Terra girava em torno do Sol. No século seguinte Galileu Galilei confirmou e por isso acabou a vida em prisão domiciliar. Passados quase quatro séculos, outro físico desenvolveu ideias que não foram bem digeridas –dessa vez por seus pares, não pela Igreja.
Hoje professor emérito do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas e radicado no Rio de Janeiro, Constantino Tsallis nasceu na Grécia e migrou para a Argentina. Fez doutorado e lecionou na Universidade de Paris, fixando-se no Brasil em 1975. Talvez os deslocamentos já anunciassem o tema de sua vida, a entropia, ou o grau de desordem de um sistema.
Tsallis propôs uma generalização da entropia. Para explicar, é importante voltar uma casa. Na física contemporânea, primeiro se apresenta uma grande hipótese que, mais tarde, é confrontada por uma segunda teoria. Assim ocorreu com a teoria mecânica de Newton. Aplicável em diversas situações, ela não funciona bem quando se analisam objetos que se deslocam a velocidades próximas à da luz. A solução, neste caso, veio com a teoria da relatividade de Einstein. A este processo dá-se o nome de generalização: se, antes, a teoria tinha uma limitação, ela passa a ser generalizada e pode ser aplicada a mais situações.
A entropia, um dos pilares da física, ganhou forma com a teoria de Boltzmann-Gibbs, que na prática serve para analisar sistemas, medir sua desordem e fazer predições. As moléculas de um cubo de gelo, por exemplo, estão mais organizadas do que as moléculas de vapor, que se movimentam mais e ocupam um espaço maior –logo, têm mais entropia. Já um cubo de gelo é um sistema simples, só influenciado pela pressão e temperatura do entorno. Como medir a entropia de sistemas complexos, relacionados a fatores fortemente conectados?
Em 1988, Tsallis publicou um artigo no Journal of Statistical Physics propondo a generalização da entropia (que ficou conhecida como “entropia de Tsallis”), uma teoria que estaria apta a analisar sistemas complexos. A controvérsia não demoraria. “Fui acusado de rasgar uma fórmula da física que era crucial”, ele diz. “Era como se eu dissesse que E = mc2 não funciona para alguns casos.”
Uma renomada publicação chegou a aconselhá-lo a não se referir à teoria como “entropia generalizada”. “Entropia está para os físicos como Jesus está para os cristãos. Jesus não pode ser generalizado”, disse o editor, que era judeu. Como Galilei, Tsallis virou um herege.
A pesquisa foi um marco na carreira do físico –hoje ela soma quase dez mil citações, o que faz dele o cientista brasileiro (mesmo que naturalizado) mais citado no mundo, segundo a Universidade de Stanford. Mas, se os primeiros anos da teoria incitaram a curiosidade e a busca por testá-la, tempos depois a comunidade científica se dividiu: há quem chancele a ideia, mas não faltam críticos. Tsallis pode ter agradado a gregos, mas a física parece ser um campo com vários troianos.
Os opositores mais ferrenhos reconhecem a importância do pesquisador, sobretudo na formação de cientistas, mas alegam que sua teoria é uma simples alteração matemática da fórmula de Boltzmann-Gibbs. Ao adicionar um parâmetro na expressão original, ele teria elaborado apenas uma ferramenta. Com o tempo, outras soluções aplicadas na física estatística se mostrariam igualmente úteis.
Os questionadores ressaltam que Tsallis não teria criado um modelo físico que explicasse um fenômeno, como Einstein fez com a gravidade. Seria como se a equação ajudasse a definir a posição de Júpiter no sistema solar, mas, por falta de fundamento físico, não explicasse por que o planeta se situa aqui e não ali.
Por outro lado, em vários países há pesquisadores que trabalham com a entropia de Tsallis, buscando entender seu melhor nicho de aplicação. Um exemplo, comemorado pelo físico, ocorreu na Índia: a análise de mamografias ancorada em sua teoria praticamente suprimiu os resultados do tipo falso positivo em microcalcificações (que dão origem ao tumor).
No fim das contas, Tsallis rendeu à física uma controvérsia que deu pano para a manga –-algo considerado saudável e inerente ao fazer científico. Seus seguidores mais fiéis continuam fazendo uso de sua teoria, enquanto outros preferem ignorá-la. Se gregos ou troianos ganharão essa batalha, só o tempo dirá.
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Murilo Bomfim é jornalista.
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