É preciso escolher entre ciência ou religião?
Por Lisiane Müller
Mais do que ignorar o debate espinhoso, é necessário ampliá-lo
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No mito grego sobre a caixa de Pandora, conta-se que o titã Prometeu, ao roubar o fogo dos deuses e dar aos homens, despertou a ira de Zeus. Para se vingar, o deus de todos os deuses enviou ao mundo Pandora, a primeira das mulheres, entregando a ela uma caixa com a recomendação de que nunca fosse aberta. Após um tempo, como Zeus já esperava, ela sucumbiu à curiosidade e espiou o interior da caixa, liberando todos os males e doenças no mundo. Zeus vingara-se dos homens e de Prometeu.
A curiosidade de Pandora é considerada uma característica inerentemente humana; se por um lado sua utilização de maneira inadvertida pode trazer prejuízos, por outro é ela quem tem nos impulsionado a explorar e fazer grandes descobertas sobre a natureza e o Universo. E é inspirada por essa curiosidade que proponho uma espiada na seguinte questão: ciência e religião são antagônicas? Inimigas? Explorar os limites intelectuais desse debate seria abrir uma caixa de Pandora?
Ouso pressupor que não, e nesse cenário secular de divergências adiciono ao debate uma reflexão: como nós, cientistas, temos lidado com este assunto? Para entender sobre os processos evolutivos darwinianos, precisamos abandonar todas as crenças religiosas? O debate é espinhoso, mas a importância dele se mede em números: o crescente negacionismo em nossa sociedade e os mais de 170 milhões de brasileiros que no último censo demográfico declararam ter alguma religião.
A resposta para um cientista pode ser um tanto óbvia: toda religiosidade que não seja objeto de pesquisa deve ficar do lado de fora dos laboratórios. Mas encerrar o debate por aqui pode ser perigoso. Ao negligenciar ou ignorar a existência das crenças religiosas, cientistas podem acabar alavancando ainda mais a ruptura de comunicação que vem sendo fomentada por alguns setores religiosos no Brasil. E o resultado pode ser a pressão moral e social para que os grupos impactados escolham lados.
O que acontece quando saímos do nosso ambiente de trabalho? Diversidade é a resposta. Existem cientistas que em suas vidas pessoais são católicos, candomblecistas, evangélicos, ateus e isso não interfere em sua ética científica profissional. Compreender a importância da exclusão de ideais religiosos na ciência, mas sem negligenciar a realidade cultural e religiosa do país, talvez seja o ponto-chave. E mais do que ignorar essa discussão, é preciso que a gente a amplie e a diversifique.
Como exemplo prático, vamos pensar numa situação cotidiana para muitos brasileiros: tomar um remédio. É preciso desacreditar em Deus para engolir um comprimido desenvolvido por cientistas? É preciso escolher entre convicção religiosa e medicamentos? Se suas respostas foram não, o mesmo pensamento deveria ser aplicado à teoria da evolução, porque, estranhe ou não, a medicina e os estudos evolutivos estão fundamentados a partir da mesma ciência e da mesma objetividade científica.
É nesse ponto que cientistas e pessoas religiosas no Brasil têm entrado em maior conflito, gerando discussões unilaterais e um afastamento social preocupante. E como nós, brasileiros e cientistas, estamos nesse debate? Sabemos o que pensam nossos familiares, amigos e colegas de trabalho? Estimular um debate público amplo, que inclua vozes diferentes para ampliar os limites intelectuais desse assunto é fundamental para que possamos enxergar outros cenários e novos caminhos. Dar maior protagonismo às pesquisas das áreas das ciências humanas –que vêm produzindo extenso e aprofundado conhecimento científico– também é importante.
Hoje a caixa de Pandora sobre ciência e religião talvez tenha se transformado na caixa fechada em si –na falta do debate– e não mais em seu conteúdo. Se a caixa está na nossa frente, por que não usar da nossa curiosidade para abri-la e explorá-la? E tenho certeza que tiraremos de letra: afinal, fazer e responder perguntas não é um dos aspectos fundamentais da ciência?
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Lisiane Müller é cofundadora do projeto de divulgação científica “Evolução para Todes” e mestranda no Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva (LAAAE) no Instituto de Biociências da USP.
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