O chão que pisamos é uma janela para o passado

Ilustração: Lucas Moratelli
Ciência Fundamental

Por Pedro Val

As paisagens possuem uma memória cronológica

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Quando falamos do passado geológico da Terra, logo nos ocorrem os fósseis, sobretudo de dinossauros. Talvez alguns pensem em rochas, outros em minerais, mas raramente alguém evocará uma paisagem, as formas de um relevo, uma cachoeira, um canyon. Ora, assim como fósseis, rochas e minerais, as paisagens têm uma idade, ou melhor: uma memória temporal.

Entender há quanto tempo as belezas naturais se formaram é a parte das geociências que mais me empolga. Desde quando o rio Amazonas atravessa o continente, dos Andes ao Atlântico? Há quanto tempo o Pão de Açúcar está lá? De quanto tempo o Grand Canyon precisou para se formar? E os Andes, para se soerguerem?

Insights para solucionar perguntas como essas podem vir de diversas ciências. Uma delas, a geomorfologia, trabalha com a ótica de que as paisagens são moldadas por processos físicos que demoram um tempo quantificável para acontecer. Muitas cachoeiras são móveis, por exemplo. De milhares a milhões de anos, elas migram na direção oposta ao fluxo de água que corre sobre elas, pois a erosão de sua parede provoca um recuo. E se, ao longo de sua migração, uma cachoeira cruzar outros rios, outras cachoeiras se formarão com tamanho semelhante, espalhando-se por toda a bacia hidrográfica, uma vez que as cachoeiras continuam migrando até atingirem encostas e divisores de águas. Em minha pesquisa, identifico quais cachoeiras se formaram assim e estimo o tempo para elas chegarem onde estão hoje. Com isso, calculo quando aconteceu o processo geológico que deu origem à primeira cachoeira, e isso pode ser importante se essa suposição coincidir com o surgimento de novas espécies de peixe, por exemplo.

Mas ninguém precisa ser especialista para adivinhar a possível idade de uma paisagem. Um truque rápido é usar a diferença de elevação do ponto mais alto ao mais baixo da paisagem de interesse e dividir essa diferença pela velocidade com a qual os processos erosivos removem material da superfície dessa paisagem.

Digamos, por exemplo, que o antigo chão de toda a baía de Guanabara estivesse nivelado ao topo mais alto do Pão de Açúcar. Absurdo? Não sei, mas vejamos. Se esse patamar foi escavado a taxas lentas de 10 metros a cada 1 milhão de anos (velocidade razoável para essa região) até o nível do mar, o icônico cartão-postal atingiu seus 400 metros de altura após 40 milhões de anos. É um cálculo grosseiro, mas que nos faz contemplar que o que vemos quando estamos em pé na Pedra da Gávea tomou forma há pelo menos dezenas de milhões de anos. Se a beleza natural já nos acachapa, a dimensão do tempo nos apequena mais ainda. É evidente que existem maneiras cientificamente robustas de fazer essas estimativas –esse truque nos dá apenas uma noção.

A idade de uma paisagem, mais do que se somar à beleza natural, pode responder a grandes perguntas científicas. Por exemplo, antes de aproximados 10 milhões de anos, o rio Amazonas não fluía dos Andes ao Atlântico. Algum processo desde essa data fez com que ele tomasse sua forma atual. Qual seria? Se a mudança ocorreu há cerca de 10 milhões de anos, alguns pesquisadores diriam que o soerguimento dos Andes teria sido o principal gatilho. Se a mudança ocorreu nos últimos 6 milhões de anos, a resposta pode vir até do manto terrestre, a centenas de quilômetros de profundidade! Outros pesquisadores responsabilizariam processos geológicos, ligados ou não aos Andes, combinados com mudanças climáticas, se a mudança tiver apenas 3 milhões de anos. Em paralelo, a biodiversidade da Amazônia também surgiu nesse período. E se um desses períodos coincide com um grande surgimento de novas espécies? Bom, aí encontraríamos qual mecanismo geológico deu o pontapé na formação desse bioma extremamente diverso.

A memória temporal das paisagens guarda respostas com potencial para transformar o conhecimento fundamental sobre a evolução do relevo de um continente e de suas espécies.

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Pedro Val é geólogo e professor na Universidade Federal de Ouro Preto

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