A vacina vai chegar; e depois?
Por Pedro Curi Hallal
Os estudos devem continuar para conhecermos a história por completo
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Desde o início da pandemia da Covid-19 no Brasil, nós, epidemiologistas, temos falado sobre a importância das pesquisas de campo para entender o comportamento do vírus no país. Fomos ouvidos, pelo menos em parte. Coordenado pelo Centro de Pesquisas Epidemiológicas da Universidade Federal de Pelotas, o Epicovid19-BR –o maior estudo brasileiro sobre o coronavírus– já testou mais de 120 mil pessoas espalhadas por todos os estados para descobrir o número real de infectados. Mas a busca para conhecer melhor a epidemia não deve parar por aí.
Neste momento, com a atenção da mídia, dos gestores e dos próprios pesquisadores voltada para a tão sonhada e necessária vacinação da população, não podemos esquecer que a pesquisa epidemiológica não se encerra com a vacina. Ao contrário: conhecer o percentual de pessoas com anticorpos para o coronavírus, entre aquelas vacinadas e não vacinadas, será uma das principais questões científicas de pesquisa no Brasil de 2021.
Enquanto em 2020, no auge da pandemia, as pessoas que apresentavam anticorpos necessariamente haviam sido contaminadas pelo vírus, em 2021 teremos pessoas com anticorpos produzidos pela contaminação e outras com anticorpos produzidos a partir da vacinação. Será uma testagem, no mundo real, da efetividade das vacinas.
No caso do Epicovid19-BR, foram quatro fases de coleta de dados, ocorridas nos meses de maio, junho e agosto. Uma quinta fase acontecerá no início de 2021. No Rio Grande do Sul, o Epicovid19-RS já testou mais de 35 mil gaúchos, espalhados por todo o estado, em oito fases de coletas de dados: a primeira em abril, menos de 20 dias após o registro da primeira morte no estado. Estudos semelhantes, inspirados no Epicovid19, foram conduzidos em várias cidades e estados do Brasil, como São Luís (MA), São Paulo (SP), Ribeirão Preto (SP) e no Espírito Santo.
Nas três primeiras fases, o Epicovid19-BR nos ensinou que, caso quiséssemos saber o número real de brasileiros já infectados pelo coronavírus, deveríamos multiplicar por seis o número que constava nas estatísticas oficiais. As pesquisas epidemiológicas também mostraram que crianças têm o mesmo risco de infecção dos adultos.
Esses estudos detectaram, ainda, abismais diferenças socioeconômicas, étnico-raciais e regionais na distribuição do coronavírus no Brasil. Enquanto em maio a proporção de infectados era próxima de 10% na região Norte, ela não passava de 1% nas demais regiões do Brasil. Nas diversas fases da pesquisa, os indígenas apresentaram risco muito maior de exposição ao vírus do que os demais grupos étnicos. Além disso, em todas as fases do Epicovid19-BR, os 20% mais pobres da população tiveram o dobro do risco de infecção do que os 20% mais ricos da população.
O Epicovid19-BR também provou que era errada a afirmação de que a maioria dos infectados pelo coronavírus não apresentaria sintomas da doença. Na verdade, apenas 17% dos infectados não desenvolvem nenhum sintoma, de acordo com uma revisão recente da literatura mundial.
Muitas das hipóteses levantadas no início da pandemia caíram por terra assim que começamos a investigá-las empiricamente. Continuar com estudos populacionais dessa natureza, agora que entramos na fase de imunização, é fundamental para conhecer a história por completo. É esse conhecimento que vai embasar políticas públicas mais eficazes, para essa e para futuras epidemias.
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Pedro Curi Hallal é epidemiologista, reitor da Universidade Federal de Pelotas e coordenador do Epicovid19.
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