Em quanto tempo o Pantanal vai se recuperar?
Por Hugo Fernandes
Essa não é a grande questão
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Eu estava dando entrevistas com a roupa de campo e o rosto cobertos de fuligem. Tínhamos pouco descanso diante do maior índice de incêndios da história do Pantanal, bioma que teve mais de 30% de seu território comprometido em 2020. Pesquisador na área da conservação, acabei escalado para falar com imprensa. Duas perguntas eram onipresentes: “Dá pra estimar quantos animais foram perdidos?” e “Dá pra saber em quanto tempo o Pantanal se recupera?”. Até daria, mas para tanto precisaríamos de um arcabouço colossal de ciência básica.
Há cerca de 470 espécies de aves, 270 de peixes, 177 de répteis, 125 de mamíferos e 50 de anfíbios documentadas no Pantanal. Pode apostar com 100% de segurança que esse número é subestimado. Se considerarmos invertebrados e vegetais, são dezenas de milhares de espécies não descritas. Há pouquíssimos taxonomistas e sistematas –profissionais que revelam novas espécies– trabalhando com os dados desse bioma. E eles não realizam essas descobertas explorando os locais mais inacessíveis do planeta: na maior parte das vezes, elas ocorrem em museus de história natural. Como o Nacional, que pegou fogo no Rio de Janeiro em 2018, mesmo destino de outras coleções, como a do Butantan, em 2010, e da UFMG, em 2020. O fogo que ameaça a diversidade brasileira também destrói a possibilidade de conhecê-la melhor. E a conta dessa tragédia está no sucateamento público das instituições de pesquisa.
No Pantanal, são raras as espécies cujo número de indivíduos pode ser estimado. As ameaçadas geralmente possuem monitoramentos de longo prazo. O trabalho liderado por Neiva Guedes, por exemplo, nos permite saber o número mais aproximado de araras-azuis, mesmo porque boa parte delas nasceu de altos investimentos em pesquisas ecológicas e genéticas. Mas quando os cientistas não conseguem contar cada indivíduo, eles estimam. É o que fazem instituições como a Panthera, que mostra a concentração de onças pintadas por quilômetro quadrado no bioma por meio de armadilhas fotográficas e monitoramento por GPS, entre outros.
Mas não basta contar quantas onças há numa determinada área e multiplicar pelo tamanho total do Pantanal. Nos mais de 15 milhões de hectares da região –suficiente para abrigar Portugal, Bélgica e Suécia– há 11 tipos diferentes de Pantanal, com características ecológicas e ameaças próprias. Para um cálculo mais preciso, é necessário considerar o maior número possível dessas variáveis em análises estatísticas e programas de mapeamento que geram um mapa das áreas com maior probabilidade de altas densidades da espécie e que, portanto, requerem maior atenção.
Os exemplos com onça pintada e arara-azul são exceções, consideradas as graves lacunas de conhecimento para outras espécies, incluindo as mais de 40 listadas nacional e internacionalmente como ameaçadas de extinção. Se não temos um bom parâmetro sobre o que havia, só nos resta contar os mortos. É o que faz o biólogo José Cordeiro, da Fiocruz. Com auxílio de drones, sua equipe sobrevoa a Reserva Particular de Patrimônio Natural SESC Pantanal em busca das carcaças de mamíferos de grande porte, como cervos, tamanduás-bandeira e antas. Animais menores como roedores, lagartos e serpentes demandam um time de especialistas que percorre a pé a área recém-incendiada, caso da equipe de Walfrido Tomas, da Embrapa.
Imprensa e sociedade clamam por números cravados, mas isso é quase impossível. De que recuperação estamos falando? Gramíneas se recompõem em poucas semanas, já uma população de antas pode demandar dezenas de anos. À escassez de cientistas que pesquisam o Pantanal ou outros biomas somam-se outras dificuldades, como a incineração e a alta taxa de decomposição da matéria orgânica que chegam a impedir outras análises, como o impacto sobre invertebrados e plantas de pequeno porte. Se todo esse cenário dificulta o diagnóstico do que foi perdido, aferir o tempo para a recuperação é um tiro no escuro.
Não é o número exato de anos para a recuperação do Pantanal que precisamos saber, mas como ele vai se recuperar. Que ações vão permitir e acelerar essa recuperação? E, mais importante, o que precisamos deixar de fazer para que isso não se agrave? O caminho envolve política pública e quem deve dar as cartas para essas ações é a ciência. Mas toda ciência aplicada necessita de uma base muito maior de ciência básica. E em pesquisas sobre conservação isso não é diferente.
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Hugo Fernandes é biólogo, divulgador científico e professor da Universidade Estadual do Ceará
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