Ciência, a galinha dos ovos de ouro
Por Carlos Hotta
Uma pesquisa básica que buscava entender bactérias de poças lamacentas nos permite hoje diagnosticar a Covid-19
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A história da galinha dos ovos de ouro é conhecida: um casal ambicioso e avarento ganha uma galinha que todo dia bota um ovo de ouro. Impacientes para enriquecer logo, eles a matam para ter acesso a todos os ovos de uma vez e acabam perdendo tudo.
Sempre lembro dessa fábula quando o governo federal ou estadual divulgam cortes no orçamento destinado à ciência. Em geral os anúncios são feitos por políticos que alegam que pesquisas científicas trocam seis por meia dúzia. A mensagem deles é clara: a ciência brasileira já recebe um belo financiamento, vamos evitar o desperdício com pesquisas inúteis e investir naquelas que darão um retorno certo à sociedade!
Por que pesquisar bactérias que crescem em poças lamacentas e quentes, em vez de centrar fogo em testes de diagnósticos? Por que pesquisar a pele de sapos, em vez de investigar tratamentos de doenças? Por que pesquisar imunidade em bactérias, em vez de desenvolver produtos agrícolas melhores? Segundo essa lógica, deveríamos deixar de lado as pesquisas básicas e investir apenas nas aplicadas. Em nenhum desses casos, porém, a segunda opção avançaria sem a primeira.
Na década de 1960, Thomas Brock e Hudson Freeze estavam interessados na sobrevivência de bactérias a temperaturas extremas, como nas poças termais do parque norte-americano de Yellowstone. Na década de 1980, seus estudos possibilitaram o desenvolvimento da técnica PCR –reação de cadeia da polimerase–, que, tornando possível a multiplicação exponencial de trechos de DNA, nos permite, por exemplo, diagnosticar a Covid-19.
Também nos anos 1960, o americano David Sachar estava em busca de uma droga para combater a cólera, responsável por desidratação severa que então matava milhões de pessoa por ano. Àquela época, o único tratamento era injetar soro intravenoso –mas como proceder em locais que não tinham acesso à água tratada? Ao tomar conhecimento de pesquisas centradas no funcionamento da pele de sapos, o cientista decidiu adaptá-las ao estudo do intestino humano. Resultado: ele desenvolveu um soro que, combinando sais e açúcares e administrado via oral, reidrata os pacientes. A Organização Mundial de Saúde estima que, nas últimas cinco décadas, 50 milhões de vidas foram salvas por este soro de facílimo preparo.
Nos primeiros anos deste século, diversos cientistas descreveram, com a ajuda de técnicas como o PCR, o sistema CRISPR-Cas, que permite às bactérias se defender do ataque de vírus. A americana Jennifer Doudna e a francesa Emmanuelle Charpentier modificaram este sistema, de modo a possibilitar a alteração do DNA de seres vivos. Ambas acabaram de ganhar o prêmio Nobel de química. Nas próximas décadas suas descobertas poderão ter um impacto na agricultura e na medicina.
Essas histórias mostram como novas tecnologias podem surgir das mais inusitadas pesquisas da ciência básica. O modo pelo qual mexilhões se grudam às rochas inspirou colas menos tóxicas; proteínas fluorescentes de águas-vivas nos ajudam a visualizar células em funcionamento; cooperações internacionais para estudar a colisão de buracos negros inspiraram a criação de navegadores de internet.
Muitas dessas investigações receberam o prêmio norte-americano Ganso de Ouro –no folclore americano, o ganso de ouro equivale a nossa galinha dos ovos de ouro–, dado por políticos republicanos e democratas a pesquisas básicas que servem de esteio a grandes avanços práticos.
Investir dinheiro na ciência tem retorno garantido. Um estudo da FAPESP, agência de apoio à pesquisa do estado de São Paulo, estimou que cada real aplicado em pesquisas na área agrícola resultou em trinta reais na forma de aumento de produtividade. O problema é que é impossível determinar a priori qual pesquisa botará ovos de ouro.
A única coisa certa é que um projeto de lei como a PL627 do governador João Dória, que possibilita a retirada de 30% do orçamento da FAPESP, é tiro e queda para perder todos os ovos de ouro que poderíamos usufruir no futuro.
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Carlos Hotta estuda o relógio biológico das plantas e é professor associado do Instituto de Química da Universidade de São Paulo
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