O cientista das ruas
Por Clarice Cudischevitch
Do interior do Rio Grande do Sul, Cesar Victora lançou a epidemiologia brasileira no mundo
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Quem tem filhos ou pretende ter provavelmente já sabe: o aleitamento materno exclusivo até os seis meses é fundamental para o crescimento saudável dos bebês. A orientação tanto da Organização Mundial da Saúde (OMS) quanto do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) é, hoje, uma política de saúde adotada praticamente no mundo todo, mas nasceu no interior do Brasil, graças a um cientista que tinha o sonho de morar numa cidade pequena.
A cidade é Pelotas, no Rio Grande do Sul, e o cientista é Cesar Victora, um dos maiores nomes da epidemiologia mundial. Não é por acaso que o município, tradicionalmente conhecido pela produção do charque (uma carne salgada e seca ao sol), é o cenário por trás de alguns dos grandes avanços na área. A história de Pelotas se entrelaça com a trajetória do próprio Victora na epidemiologia – uma ciência que “vai às ruas”, na qual a cidade e seus moradores têm, justamente, um papel central.
Quando se fala que a epidemiologia vai às ruas, os exemplos são literais. Há quase 40 anos, Victora acompanha junto ao amigo e pediatra Fernando Barros as chamadas coortes de nascimento — estudos em que se observa a saúde de indivíduos nascidos em determinado ano num determinado lugar por períodos longos. Isso significa que, desde 1982, a cada 11 anos (era para ser dez, mas o financiamento atrasou), eles fazem um censo de todos os nascimentos ocorridos em Pelotas indo de porta em porta nos hospitais da cidade. São de 5 a 6 mil crianças por ano.
O acompanhamento continua até hoje, com bons retornos. Quando a primeira coorte, a de 1982, completou 30 anos, eles localizaram 68% dos nascidos naquele ano. Inclusive, uma das observações que mais chamou atenção é a de que mais da metade das pessoas está com sobrepeso e obesidade (antes estavam subnutridas).
Quem também vai às ruas de Pelotas é o Epicovid19, o maior estudo epidemiológico do mundo sobre coronavírus. O levantamento, que investiga o número real de infectados pelo SARS-CoV-2, é coordenado por Victora e pelo reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pedro Hallal (que escreveu sobre a experiência aqui no blog).
Aliás, se a pandemia de Covid-19 teve um lado bom para Victora, ele se deu na sua área. “A população aprendeu a falar ‘epidemiologia’. O avanço da pesquisa foi vertiginoso nesse período, mas estamos vendo um sucateamento da ciência brasileira e na próxima talvez a gente não consiga uma resposta tão ágil, a não ser que os investimentos sejam retomados.”
De Pelotas para o mundo
Hoje referência global em saúde materno-infantil e autor de documentações sobre o tema adotadas em mais de 140 países, Victora começou a carreira na capital, Porto Alegre. Fez medicina na UFRGS e logo em seguida, em 1977, foi para a recém-criada UFPel.
“Achavam que eu estava maluco, pois não se fazia pesquisa no interior”, conta. Não havia biblioteca, laboratório, computador. Mas a falta de estrutura se revelou, na verdade, favorável: “Como não tinha pesquisa na universidade, ninguém me atrapalhava. Quando já existe um establishment de pesquisa, isso pode acabar dificultando a carreira de um jovem cientista.”
Na época, Victora se interessava por saúde pública. Fez um doutorado na Inglaterra e voltou em 1983. Ele tinha trabalhado como médico em comunidades pobres e via problemas recorrentes das crianças: diarreias, desnutrição, pneumonia. Notou também que a duração média do aleitamento materno em Pelotas era de dois meses e meio.
Essas primeiras observações originaram seu primeiro artigo em uma revista de alto impacto, a The Lancet, em 1987. O estudo mostrava que uma criança que não se alimentava com leite materno tinha um risco de morte por diarreia 14 vezes maior que o de uma criança amamentada. Na época, era comum que mães e pais dessem água e chá para os bebês nas famosas mamadeiras chuquinhas.
Victora observou, no entanto, que quanto mais mamadeira tomavam, maior era a chance de morte: uma chuquinha por dia aumentava o risco em 42%; com duas por dia, o aumento era de 101%; com três, 186%. O estudo foi o primeiro no mundo a mostrar a importância de alimentar bebês menores de seis meses apenas com o leite materno e de evitar outros líquidos ou alimentos nesta faixa etária.
Assim, o artigo na The Lancet acabou sendo fundamental para a criação do conceito de aleitamento materno exclusivo até os seis meses de vida, que em 1991 se tornou uma política pública mundial. A pesquisa rendeu a Victora o Prêmio Gairdner de Saúde Global, o mais importante do Canadá e um dos mais reconhecidos do mundo, considerado um “pré-Nobel”.
Ele continuou pautando a epidemiologia mundial. Fez parte de um grupo de peritos da OMS que observou que as curvas de crescimento infantil adotadas em todo mundo, norte-americanas, eram baseadas em crianças que se alimentavam com leite em pó. “Elas eram grandes demais, obesas, e faziam parecer que aquelas que só se alimentavam com leite materno não estavam crescendo direito. Aí, pediatras e nutricionistas acabavam receitando leite em pó para os bebês.”
Foi criado, assim, um grupo de trabalho da OMS para a elaboração de novas curvas de crescimento. A pesquisa colaborativa foi desenvolvida nos Estados Unidos, Gana, Índia, Omã, Noruega e Brasil — que, claro, foi representado por Pelotas, onde ocorreu o treinamento dos profissionais dos demais países. Em 2006, as novas curvas de crescimento foram, enfim, adotadas por quase todos os países do mundo.
Victora, que hoje usa as curvas criadas por ele mesmo para monitorar o crescimento dos netos, diz que a decisão de passar a vida toda na cidade gaúcha foi um risco que assumiu e acabou dando certo. “Meu laboratório é Pelotas”, afirma o cientista das ruas.
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Clarice Cudischevitch é jornalista, coordenadora do blog Ciência Fundamental e gestora de comunicação no Instituto Serrapilheira.
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