Ossos do ofício e olhares de uma bioantropóloga
Por Mariana Inglez
Fui contratada para ler esqueletos e descobrir suas histórias
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Há exatos 30 anos, em 4 de setembro de 1990, foi aberta a Vala Clandestina do Cemitério de Perus, na Zona Noroeste da capital paulista, evidência de que durante a ditadura o local serviu para enterrar desconhecidos e vítimas do Esquadrão da Morte, além de desaparecidos políticos. Como bioantropóloga, participei do Grupo de Trabalho Perus, criado com o objetivo de identificar desaparecidos políticos que pudessem estar entre os cerca de 1500 esqueletos humanos que foram exumados nessa ocasião.
Escavar, registrar a história, limpar cada remanescente ósseo são etapas importantes que caminham na contramão da política de apagamento e contribuem para a construção de uma memória coletiva sobre nossa ditadura, num exemplo prático do conhecido bordão “recordar para não repetir”.
Aqui cabe uma explicação breve sobre a bioantropologia, também chamada antropologia biológica. A área estuda a biologia humana do passado e do presente, levando em conta, de forma integrada, processos evolutivos, relações ecológicas e aspectos socioculturais. Algumas correntes entendem a antropologia forense como um de seus ramos, uma vez que, idealmente, profissionais de diferentes áreas trabalhariam em conjunto para identificar pessoas e solucionar crimes a partir de conhecimentos das ciências biológicas e sociais e da garantia de respeito às vítimas e às famílias.
Fui contratada para ler os ossos. Ler e registrar o que os esqueletos nos dizem sobre quem eram e como viveram aquelas pessoas, uma vez que elas já não podem nos contar verbalmente sobre suas biografias.
Quando um esqueleto humano é encontrado, buscamos respostas que em geral dependem de vestígios preservados nesse corpo físico. Quem era a pessoa? Qual seu sexo biológico mais provável? Quantos anos tinha quando morreu? Será que teve alguma doença que deixou marcas em seu esqueleto? Sofreu algum acidente cujas cicatrizes permanecem nos ossos? É possível inferir a causa de sua morte?
Para investigar essas questões, deve-se conhecer anatomia, osteologia, patologia e traumatologia, além de ter informações sobre o desenvolvimento humano e o envelhecimento a nível esquelético. Uma vez na mesa de análise, eu preciso saber posicionar cada um dos mais de duzentos ossos do esqueleto; identificar cada um dos nossos 32 dentes e reconhecer variações que possam indicar se determinada parte anatômica pertence a outro indivíduo, em especial em contextos de valas comuns, onde é recorrente a mistura de ossos de diferentes pessoas.
O olhar atento para a forma e a superfície de cada centímetro do material me permite detectar aspectos que ajudam a distinguir os indivíduos e chegar mais perto da identidade das pessoas que procuro – documentos, fotos, relatos, registros médicos e odontológicos também são elementos fundamentais a serem considerados. A etapa postmortem de análise, como é conhecida, exige a aplicação de métodos específicos e antecede as análises de DNA que confirmam a identidade de pessoas, em especial em casos muito abertos e com muitos indivíduos, como era aquele.
A leitura dos ossos ainda nos dá dicas sobre a qualidade de vida de forma mais coletiva. Em uma sociedade historicamente desigual do ponto de vista sociorracial, quem eram as pessoas, além dos desaparecidos políticos (cujos nomes sabemos e não devemos esquecer), que não tiveram o direito de ter sua individualidade e sua dignidade respeitadas tanto em vida quanto após a morte? Marcas que denotam precário acesso à saúde ou ocorrência de morte violenta, seja num passado distante, seja mais recente, também servem como um registro possível que profissionais com expertise em bioantropologia podem nos fornecer.
Olhar o passado a partir dos ossos nos permite entender e documentar nossa própria história, o que é fundamental para fazer melhores escolhas no presente e construir caminhos para um futuro também melhor.
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Mariana Inglez é doutoranda no Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva, pelo IB-USP, e coordena o projeto de divulgação científica Evolução para Todes.
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