O exorcismo mais famoso da física
Por Rafael Chaves
A teoria da informação resolveu um paradoxo centenário
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Nada na natureza contraria a segunda lei da termodinâmica. A não ser uma criatura imaginada pelo físico James Maxwell em 1871. Por violar uma aparente lei básica da física, ela ficou conhecida como “o demônio de Maxwell”.
A segunda lei implica que, na ausência de um agente externo, o fluxo de calor sempre se dá do quente para o frio, e nunca vice-versa. Ao colocarmos uma cerveja morna na geladeira, ela cede calor para o ar frio e gela.
Vista de outra forma, essa lei implica que a entropia, a medida da desordem de um sistema, nunca diminui. Voltemos à cerveja. Quanto mais quente, mais velocidade e liberdade têm suas moléculas e, portanto, maior a desordem e a entropia. Por isso, num dia de verão uma cerveja gelada logo esquenta fora do gelo. É o universo em seu caminho irreversível de aumento da entropia. Para contrariar essa tendência, é preciso gastar energia. Para que a geladeira transfira calor de seu interior frio (ordenado) para o ambiente externo quente (desordenado) e assim possa gelar a cerveja, ela precisa da energia elétrica (um agente externo).
Voltemos ao demônio de Maxwell. Imagine-o no meio de uma caixa dividida em dois compartimentos conectados por uma pequena janela, a qual ele pode abrir sem despender energia. No compartimento esquerdo há gás frio, no direito, o mesmo gás a uma temperatura maior. Se abrirmos a janela que separa os gases, eles tenderiam a se misturar e atingir uma temperatura intermediária de equilíbrio. Ou seja, conforme a segunda lei, o gás quente cederia calor ao gás frio. O demônio, entretanto, pode reverter esta lógica.
Microscopicamente, segundo a teoria termodinâmica, um gás é composto de moléculas que se movem em diferentes velocidades. Quanto maior a velocidade média dessas moléculas, maior será a temperatura do gás. O demônio observa essas moléculas e, sempre que uma molécula mais rápida/quente do gás frio vem em sua direção, ele abre a janela, permitindo sua passagem para o gás quente. Em contrapartida, moléculas mais lentas/frias do gás quente têm sua passagem franqueada em direção ao gás frio. Assim, com o tempo, o gás inicialmente frio esfria ainda mais e o gás quente fica ainda mais quente. Ocorre um fluxo de calor do frio para o quente sem que se gaste nenhuma energia — uma clara violação da segunda lei!
A primeira peça desse quebra-cabeças foi encontrada por acaso em 1948, quando o matemático Claude Shannon se fez uma pergunta aparentemente sem conexão com o problema: o que é informação?
Pense em duas moedas: uma sempre cai como cara; a outra cai aleatoriamente, ora dá cara, ora coroa. Antes de jogar a primeira, já conhecemos o resultado, não aprendemos nada. Ao jogar a segunda, ao contrário, nossa incerteza é máxima, e ao observar o resultado aprendemos algo novo. A informação pode ser entendida tanto como a incerteza que temos antes de observar um evento ou como o conhecimento que obtemos após essa observação. A informação se relaciona à incerteza, e como incerteza se relaciona a desordem, temos aqui, ainda que forma rudimentar, a primeira conexão entre informação e entropia.
A segunda peça para a resolução do paradoxo foi encontrada em 1961, novamente por acaso, quando o físico Rolf Landauer percebeu que a informação não é apenas um conceito abstrato; para ser representada, ela precisa estar associada a um sistema físico. Assim, ela está sujeita às leis naturais, em particular à segunda lei da termodinâmica. Como consequência, para se apagar informação, seja uma letra no papel ou um bit em um disco rígido, alguma energia sempre será dissipada.
O demônio de Maxwell foi enfim exorcizado quando, em 1982, o físico Charles Bennett percebeu que o diabo tem que memorizar informação sobre as moléculas do gás. Após adquirir informação sobre uma molécula e permitir o fluxo de calor do frio para o quente, para continuar seu ciclo demoníaco a criatura terá que apagar sua memória. Pelo princípio de Landauer, esse processo de apagamento sempre dissipa uma quantidade de energia igual ou superior à energia gerada pela ação do demônio, salvaguardando assim a segunda lei.
Uma vez encontrada, a solução do paradoxo parece quase óbvia. Mas para tanto foi necessário que um novo campo de pesquisa, a teoria da informação, fosse concebido. Quando consideradas no mundo do muito pequeno, regido pela mecânica quântica, as interconexões entre informação e termodinâmica prometem feitos ainda maiores.
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Rafael Chaves é físico e pesquisador do Instituto Internacional de Física da UFRN
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