Epicovid-19 ou Sufocovid-19?
Por Pedro Hallal
A experiência de fazer ciência em meio a uma pandemia
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O Epicovid-19 é um projeto que deixará um legado. Poucas vezes uma pesquisa científica chegou tão perto das pessoas no Brasil. Os resultados são divulgados quase em tempo real, a cobertura da mídia tem sido incrível e os resultados vem sendo publicados nas melhores revistas científicas. O que quase ninguém sabe é que o grupo de WhatsApp criado pelos participantes do projeto é Sufocovid-19. O codinome não é fortuito.
No final de fevereiro, viajei aos Estados Unidos para um curso de três semanas. Naquela época, falava-se de um vírus surgido na China que estaria chegando à Europa, sobretudo à Itália. O coronavírus me parecia um ente tão distante quanto desconhecido. No voo de ida, ninguém usava máscara. Nos primeiros dias do curso, todos se cumprimentavam com apertos de mão e até abraços. Com o passar do tempo, os abraços sumiram e mesmo o aperto de mão foi sendo evitado. Já se falava em lavar as mãos e evitar tocar olhos, nariz e boca. O curso foi interrompido e voltei no meio de março. No avião, muita gente de máscara.
Como reitor da Universidade Federal de Pelotas, propus a suspensão imediata das aulas, decisão logo seguida pelas demais universidades federais. Até então, meu diploma de epidemiologista estava guardado desde 2016, quando me elegi reitor. Comentei com minha companheira que eu precisava fazer algo. Tirei o pó do diploma e pus a mão na massa. Afinal, minha formação foi toda financiada com dinheiro público, obtido por meio de impostos pagos pela população.
Em casa, rabisquei uma pesquisa a ser realizada no estado. O estudo seria dividido em seis etapas, com intervalo de uma semana entre elas. Até hoje me arrependo de não ter guardado aquele papel. Transformar os rabiscos no Epicovid-19 teria sido impossível se não houvesse tanta gente comprometida com a vida das pessoas.
Primeiro, foi necessário mobilizar os colegas da epidemiologia da universidade, que há quase quarenta anos fazem pesquisas parecidas sobre outros temas da área da saúde. Depois, houve uma longa conversa telefônica com a ex-secretária estadual de Planejamento, Leany Lemos.
Então começou a busca por parcerias, fosse com outras universidades e pesquisadores, fosse com a iniciativa privada. Lembro ter conversado com alguns dos principais empresários do estado, e sempre recordarei daqueles que se mostraram de fato comprometidos com o país. Para o estudo sair do papel, no entanto, faltava um detalhe: não havia testes disponíveis. Fiz contato com o Ministério da Saúde, e aí surgiu um herói, o dr. Erno Harzheim, à época Secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde. Ao viabilizar os testes, o dr. Harzheim foi a primeira pessoa que me ouviu falar sobre a possibilidade de expandir o estudo para o país todo.
Na primeira fase do estudo em âmbito nacional, o codinome Sufocovid-19 foi honrado. Em algumas cidades, os entrevistadores foram detidos, proibidos de trabalhar, confundidos com golpistas e até mesmo hostilizados. Passados três meses, o Epicovid-19-RS já concluiu cinco fases, de um total de oito previstas, tendo avaliado mais de 20 mil gaúchos e gaúchas. O projeto para o país já concluiu três das fases previstas, tendo testado quase 90 mil pessoas — o maior estudo epidemiológico do mundo sobre coronavírus.
Se algum dia me perguntassem se era possível fazer tudo isso em três meses, a resposta sensata seria não. Mas se me perguntarem se eu faria tudo de novo, minha resposta seria sim. O Epicovid-19, vulgo Sufocovid-19, mostra que a ciência brasileira está de pé. E assim seguiremos.
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Esta coluna foi produzida especialmente para a campanha #CientistaTrabalhando, que celebra o Dia Nacional da Ciência. Ao longo do mês de julho, colunistas cedem seus espaços para abordar temas relacionados ao processo científico, em textos escritos por convidados ou por eles próprios.
Pedro Hallal é epidemiologista, coordenador do estudo Epicovid19 e reitor da UFPel.
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