A resposta certa a uma pergunta errada
Por Rafael Chaves
Ao contrário do que se pensa, nem toda informação pode ser copiada
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Quem nunca baixou um arquivo de texto, música ou filme? Quem nunca fotocopiou um livro ou uma apostila? O número de mensagens recebidas e reencaminhadas via Whatsapp também atesta que copiar informação parece corriqueiro e trivial. Só que não é bem assim. No mundo regido pela mecânica quântica, as coisas nem sempre são o que parecem. E o teorema da não-clonagem deixa patente que a informação contida em sistemas quânticos nem sempre pode ser reproduzida. Conhecer a descoberta desse teorema e suas implicações nos oferece um recorte muito peculiar de como a ciência evolui.
Antes de mais nada, é preciso falar de uma peça essencial da teoria quântica, o emaranhamento — uma correlação tão forte entre sistemas físicos que, mesmo que eles estejam muito distantes um do outro, os faz operar, num certo sentido, como um ente único e inseparável. Além de seu caráter crucial na teoria, o emaranhamento é um recurso para o processamento de informação, possibilitando, por exemplo, algoritmos quânticos exponencialmente mais rápidos do que qualquer computador, sejam os do presente ou do futuro.
Em 1982, o físico norte-americano Nick Herbert se serviu do emaranhamento quântico para propor um protocolo de comunicação, ao qual ele deu o nome de FLASH. Os cálculos eram simples e pareciam estar de acordo com as regras da mecânica quântica, ao menos as conhecidas até então. O protocolo FLASH, porém, permitia a comunicação instantânea entre duas partes, não importava a distância entre elas — uma clara violação da teoria da relatividade de Einstein, outra pedra fundamental de nosso entendimento da natureza. Herbert enviou seu artigo a um periódico bem conceituado, e ele foi analisado por dois especialistas. Um deles, o físico israelense Asher Peres, recomendou a publicação do paper dizendo que ele “estava obviamente errado”, mas a busca por esse erro “iria levar a um significante progresso no nosso entendimento da física”. O artigo foi publicado e, de fato, não demorou para que o erro fosse descoberto. Nem mesmo Peres poderia prever o avassalador progresso que se seguiria.
No protocolo FLASH, é vital que a informação contida em sistemas quânticos — sejam elétrons ou as partículas de luz chamadas fótons — possa ser copiada à vontade. Para a informação a que estamos acostumados, sequências de bits compostos de zeros e uns, isso procede. Na quântica, entretanto, isso deixa de valer, como demonstrou o teorema da não-clonagem descoberto logo depois de Herbert publicar seu artigo. Um bit quântico, o qubit, pode estar em uma superposição de estados, como se pudesse ser zero e um ao mesmo tempo, e na verdade não ser nem um nem outro. A superposição somada a outras propriedades básicas da teoria quântica evidencia que apenas os qubits “clássicos”, o zero e o um podem ser copiados, ao contrário de todos os outros infinitos estados intermediários entre eles.
Além de seu aspecto primordial, mostrando como propriedades aparentemente óbvias deixam de valer na quântica, a não-clonagem foi essencial no desenvolvimento da área da informação quântica que busca compreender as vantagens e limitações de utilizar sistemas e algoritmos quânticos para processar informação. No contexto da comunicação, essa aplicação é quase que evidente e está no cerne da criptografia quântica, cuja segurança é garantida pelas próprias leis da física. Como um hacker pode vir a roubar uma informação que não pode ser copiada? A não-clonagem também têm consequências para a física de objetos muito grandes e massivos – como quando explica o que pode acontecer com a informação na fronteira de buracos negros.
A prova do teorema da não-clonagem é simples, e talvez seja o artigo mais curto de física teórica já publicado na prestigiosa revista “Nature”. O teorema poderia ter sido descoberto décadas antes, mas foi preciso que alguém violasse a teoria da relatividade para ele ser notado. Nunca se sabe o que uma pergunta fundamental, ainda que fadada ao fracasso, poderá provocar. E é por isso que se deve continuar a fazê-las.
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Esta coluna foi produzida especialmente para a campanha #CientistaTrabalhando, que celebra o Dia Nacional da Ciência. Ao longo do mês de julho, colunistas cedem seus espaços para abordar temas relacionados ao processo científico, em textos escritos por convidados ou por eles próprios.
Rafael Chaves é físico e pesquisador do Instituto Internacional de Física da UFRN
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