O sorvete, a criminalidade e a Covid-19
Por Rafael Chaves
Inferir relações de causa e efeito é uma tarefa central mas dificílima em ciência
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Uma busca rápida na internet por “correlações espúrias” trará resultados surpreendentes. O consumo de sorvete e o número de crimes violentos, por exemplo, têm uma correlação quase perfeita ao longo das estações do ano. Seria a extinção do sorvete a chave para acabar com a criminalidade?
O problema desta solução é confundir correlação com causalidade. A origem desta correspondência não é uma relação de causa e efeito, mas sim uma causa comum. Neste caso, a temperatura. Em dias ensolarados, não só mais pessoas saem às ruas – portanto, estão mais sujeitas a cometer e sofrer crimes –, como também maior é vontade de se refrescar. Este fato, apesar de anedótico, traz à tona um problema central em ciência: como estimar relações de causa e efeito a partir de dados observados? Na pandemia atual de Covid-19, é urgente descobrir se um determinado tratamento é a causa da melhora da doença.
Vamos supor que um doente tomou certo remédio e melhorou. Pode parecer promissor, mas devemos ser cautelosos. Talvez o paciente fosse melhorar independentemente do remédio. Para evitar falsas conclusões, devemos realizar um experimento controlado – um grupo de pessoas recebe a droga, e ao outro, o grupo de controle, não se ministra o remédio em questão, ou então se oferece um placebo. Caso os dois grupos mostrem resultados similares quanto à melhora, teremos um indicativo claro da não eficácia do tratamento, certo?
Infelizmente, mesmo em experimentos controlados ainda não podemos ter tanta certeza. Por exemplo, pessoas com mais saúde, portanto com maior chance prévia de recuperação, são menos inclinadas para testar uma droga experimental: elas poderiam melhorar de qualquer modo, com ou sem o remédio. Ao contrário, pessoas em condições extremas, com maior potencial de não resistir à doença, serão mais suscetíveis a aceitar o tratamento. Mesmo que o remédio fosse eficaz, porém, essa eficácia ficaria mascarada pela administração a pessoas cujas chances de melhora já são muito baixas.
Para minimizar a incerteza do efeito causal de um tratamento, há o chamado experimento controlado aleatório. Tal como antes, temos dois grupos, mas cujos membros são escolhidos aleatoriamente, de modo que cada um seja uma amostra fiel da população e todas as suas possíveis pré-condições (social e física, idade, sexo, comorbidades etc). Se sob estas condições o grupo que recebe o tratamento mostrar uma melhora significativa em comparação com o grupo de controle, teremos uma indicação clara da eficácia do remédio. Estes experimentos são considerados o “padrão de ouro” no estudo de relações causais, mas ainda assim estão sujeitos a incertezas e dificuldades. Por exemplo, o efeito placebo nos mostra que mesmo pacientes no grupo de controle (sem receber tratamento) podem ter melhoras induzidas pelo simples fato de imaginarem estarem sendo tratados. Questões éticas também se aplicam. Se acreditamos que uma droga tem o potencial de cura, como podemos privar o grupo de controle de suas benesses?
Apesar de todas estas dificuldades, este problema ainda é um dos mais simples quando falamos de causa e efeito. O que dizer das relações de causalidade em complexas redes biológicas ou sociais? Em meados da década de 90, uma teoria matemática da causalidade começou a ser desenvolvida, nos mostrando como e sob quais condições podemos estimar relações de causa e efeito, e desde então ela tem encontrado aplicações nas mais variadas áreas do conhecimento. Mas, apesar de todo seu sucesso, essa teoria também tem os seus limites.
Na física quântica, devido ao fenômeno do emaranhamento, a teoria clássica da causalidade falha ao tentar distinguir as relações de causa e efeito genuínas das correlações “espúrias”. Pesquisadores ao redor do mundo (entre os quais me incluo) ainda quebram a cabeça tentando descobrir como, e se de fato é possível, descrever de forma causal o mundo quântico.
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Rafael Chaves é físico e pesquisador do Instituto Internacional de Física da UFRN
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