Tal pai, tal (epi)filho
Por Hugo Aguilaniu
Um enteado pode “herdar” características do padrasto?
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Ao longo das últimas décadas aumentou o número de divórcios, bem como o número de rearranjos familiares. Hoje em dia é comum crescer com um padrasto ou madrasta, embora a Justiça, por vezes, resista em equipará-los aos pais biológicos (ainda que cada vez menos). Aos olhos da sociedade, o elo genético prevalece sobre o laço afetivo. Implicitamente, consideramos que convivência e genética são elementos distintos. Mas será que essa separação é real? A vida em família pode ter consequências genéticas?
Por mais assustador que possa parecer, o DNA é considerado uma marca indelével, definitiva e impossível de ser falsificada. É uma ferramenta formidável para definir nossas afiliações e nossas legitimidades. Entretanto, agora esse absolutismo genético está sendo desafiado por nosso entendimento de uma área conhecida como epigenética, que estuda as mudanças no funcionamento de um gene provocadas por fatores ambientais, externos.
Em cada uma de nossas células há 46 moléculas de DNA organizadas em 23 pares. Elas se encontram no núcleo da célula, que representa apenas 10% de seu volume. Cada uma dessas moléculas é linear e tem unidades (chamadas genes) capazes de produzir um efeito na célula. Mais ou menos como uma partitura musical com notas que produziriam um som. O funcionamento adequado do corpo consiste então em tocar, ao mesmo tempo, 46 partituras em cada uma de nossas dez trilhões de células.
No caso do ser humano, nossa música tem cerca de vinte mil notas distribuídas entre 46 partituras – vinte mil genes em 46 moléculas lineares que são, consequentemente, muito longas. Estima-se que, em cada uma de nossas células, as moléculas de DNA enfileiradas meçam quase dois metros.
Quando os geneticistas entenderam a importância dessas notas e de sua ordem, chegaram a uma pergunta aparentemente trivial: como é possível haver dois metros de DNA dentro do minúsculo núcleo de uma célula (cerca de diz micrômetros cúbicos)? É óbvio que esses fios de DNA precisam ser dobrados e compactados com muito cuidado para caber em espaço tão reduzido. A forma como essas dobras ocorrem tornou-se o objeto de estudo da epigenética – não porque os cientistas tivessem um interesse especial por armazenamento e compactação, mas porque isso nos afeta enormemente e de maneira fascinante, por alguns motivos.
Em primeiro lugar, essa organização determina em grande medida a força com que nossos genes serão expressos. É como se essas dobras fossem o ritmo de nossa partitura. Dependendo do ritmo escolhido, podemos ignorar algumas notas, enquanto outras serão mais proeminentes.
Além disso, fatores externos como clima, nutrição, poluição etc. podem ter um impacto direto nessas dobras. Em outras palavras, as condições de vida precisam ser levadas em consideração. É muito provável, portanto, que membros de uma família, rearranjada ou não, apresentem as mesmas regulações epigenéticas (em parte), ainda que não compartilhem os mesmos genes. A despeito de suas notas serem ligeiramente diferentes, o ritmo será idêntico.
É extraordinário como essas alterações na organização – no ritmo – se perpetuam por toda a vida e às vezes são transmitidas de geração em geração, assim como os genes. Exemplo disso são os holandeses que passaram fome e sofreram de desnutrição durante a Segunda Guerra. Os descendentes herdaram marcas epigenéticas e, até hoje, seus netos e bisnetos manifestam uma maior incidência de doenças metabólicas como diabetes.
Isso significa que nossa expressão genética, que nos define biologicamente, é determinada tanto pelas notas em nossa partitura (os genes), que vêm conosco de nossos pais biológicos, quanto pelo ritmo dessa partitura (os fatores externos), que compartilhamos com as pessoas com quem vivemos. Tanto as notas quanto o ritmo em que as tocamos podem ser transmitidos aos nossos filhos. Seria então plausível, do ponto de vista biológico, que os futuros filhos do meu enteado venham, um dia, a se parecer um pouco comigo.
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Hugo Aguilaniu é biólogo geneticista e diretor-presidente do Instituto Serrapilheira.
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