Como estudar o impalpável?
Por Karín Menéndez-Delmestre
A busca dos astrônomos pela matéria escura e seus mistérios
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O ser humano já deu grandes passos na conquista do conhecimento da natureza, mas ainda temos um longo caminho pela frente. A matéria cotidiana que nos rodeia, por exemplo, mar, terra, livros, cabelo e colheres, compreende o que chamamos de matéria “normal”. Toda ela ela corresponde a apenas 15% da matéria no Universo. O “resto”, ou seja, 85%, é uma substância invisível e impalpável chamada “matéria escura”. Como não emite nenhuma luz, ela é indetectável de forma direta pelos telescópios. Se não podemos enxergá-la, e muito menos encostar nela, como estudá-la e fazer avançar o entendimento desse grande mistério?
Aí é que entra a missão dos astrônomos — enxergando apenas a luz e as partículas emitidas por estrelas, gás e poeira, nós trabalhamos para construir modelos que expliquem e descrevam a formação e a distribuição de toda a matéria. A partir da posição e do movimento da matéria luminosa, determinamos o volume e a distribuição espacial da matéria escura. Seria como tentar reconstruir a forma e a disposição das folhas de uma árvore de Natal em meio ao breu, tendo como única referência a distribuição das lâmpadas coloridas.
Traçando o movimento de gás e das estrelas em galáxias individuais, percebe-se que cada galáxia está completamente embebida num halo de matéria escura. O movimento de galáxias em grupos sugere que estão inseridas num grande poço gravitacional de matéria escura, formando uma única estrutura gravitacionalmente ligada. Esse grande poço exerce uma forte atração gravitacional em halos menores, fazendo com que o efeito acumulativo de fusões ao longo de bilhões de anos leve às maiores estruturas no Universo compostas de até milhares de galáxias — um verdadeiro imã gravitacional.
A despeito dos avanços no entendimento da distribuição de matéria escura no Universo, ainda nos escapa a natureza da partícula dessa matéria. A interação gravitacional com a matéria normal permite traçar a distribuição da matéria escura em escalas de milhares, até centenas de milhares de anos luz. Mas é com a esperança de que a matéria escura interaja de forma não gravitacional com a matéria normal que diversos experimentos de detecção de partículas vêm sendo desenhados nas últimas décadas, na expectativa de flagrar a matéria escura numa colisão energética com partículas terrestres.
Ante a dificuldade em detectar as partículas que comporiam a matéria escura, alguns grupos de pesquisa consideram hipóteses alternativas: em vez de considerar a existência de matéria escura, estes modelos se baseiam na suposição de que a teoria da gravidade funciona diferentemente em escalas menores do que em escalas maiores. Embora algumas teorias alternativas consigam reproduzir várias observações astronômicas e cheguem a superar as falhas do modelo de matéria escura, elas claudicam em outros aspectos em que o modelo da matéria escura é bem-sucedido. Mesmo assim, as buscas alternativas têm um papel crucial para a solução de um problema ainda não resolvido. E é assim mesmo que funciona a ciência: ela consiste num processo orgânico de busca por respostas.
A incógnita da matéria escura desde seus primeiros indícios no começo do século XX tortura intelectualmente as comunidades científicas. Físicos teóricos e experimentais, astrofísicos observacionais, computacionais e teóricos — todos e todas se unem para encarar o problema. É juntando diferentes comunidades científicas, criando novas ideias híbridas que esperamos descobrir um dos maiores mistérios do século XX.
E a história não para por aí. O Universo não é composto apenas por matéria: na verdade, ele é dominado por uma energia misteriosa que chamamos de “energia escura”. No final das contas, aquela matéria “normal” que conhecemos e entendemos corresponde apenas a 4% de certeza que flutua em 96% de mistério — um mistério constituído de matéria escura e energia escura.
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Karín Menéndez-Delmestre é astrônoma e professora do Observatório do Valongo da Universidade Federal do Rio de Janeiro
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