Ciência fundamental https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br O que pensam os jovens cientistas no Brasil? Thu, 02 Dec 2021 15:29:05 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Epidemias e comportamentos: quem muda o quê? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/30/epidemias-e-comportamentos-quem-muda-o-que/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/30/epidemias-e-comportamentos-quem-muda-o-que/#respond Sat, 30 Oct 2021 10:14:01 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/manchuria-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=573 Por Mellanie Fontes-Dutra

O legado da pandemia da Covid-19

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Importantes vetores de nosso comportamento, os grandes desafios –como a pandemia da Covid-19– nos incitam a discutir o que provocou os cenários de conflagração e inspiram mudanças profundas, tanto em escala individual quanto social. Hoje, o que aplicamos na tentativa de contornar os impasses reflete um conjunto de conhecimentos e experiências de um tempo muitas vezes não tão remoto.

Resgatar medidas e enfrentamentos do passado pode favorecer estratégias mais eficazes no presente, daí a importância de relembrar crises sanitárias já enfrentadas –não só no Brasil, mas também no mundo.

Em 1910, um surto de uma doença misteriosa –que ficaria conhecida como praga da Manchúria – assolou o nordeste da China, somando 60 mil óbitos num período de quatro meses. Foi graças ao médico malaio Wu Lien-teh que uma ideia inovadora foi lançada, baseada em conclusões de que essa peste, causada pela bactéria Yersinia pestis (sim, você já ouviu falar dela na peste bubônica) poderia se transmitir de pessoa a pessoa, possivelmente por gotículas respiratórias. A partir de então, o médico aconselhou que se usassem máscaras para tratar pacientes infectados, protocolo que se estendeu a todos os profissionais de saúde, tivessem ou não às voltas com essa praga. E também recomendou a criação de centros de quarentena, bem como insistiu que as autoridades decretassem medidas de restrição da movimentação das pessoas. Lembra alguma coisa?

Logo depois, em 1918, o mundo conheceu a gripe espanhola, provocada pelo vírus influenza, responsável por cerca de 35 mil óbitos só no Brasil. Diante de todas as dificuldades e desafios para esse enfrentamento, a sociedade brasileira passou por uma transformação profunda e necessária envolvendo a saúde pública no país, uma vez que, em muitos lugares (no Brasil e no mundo), indivíduos de classe média ou alta detinham o privilégio de consultas médicas. Nossa história com os vírus influenza teve outros capítulos, um dos quais em 2009, com a tal “gripe suína” que deve estar na memória de muita gente. Foi então que se disseminou o uso do álcool gel, não mais um alien oferecido na entrada de um restaurante ou local público. Ao longo da epidemia dessa gripe, fechamos escolas e reduzimos a circulação das pessoas para enfrentar esse agente infeccioso. De novo, lembra alguma coisa?

Grandes pandemias apresentam um fator em comum: a transmissão alta e generalizada de um agente infeccioso que passa a infectar nossa espécie, e para o qual ainda não temos alternativa terapêutica. Mas experiências anteriores nos revelam que medidas não-farmacológicas, às quais podemos aderir tanto individual quanto socialmente, são críticas para conter a propagação. Por outro lado, modificações significativas na sociedade precisam ser um legado do pós-pandemia. Não devemos temê-las ou enxergá-las como uma tentativa de sequestro do que costumávamos entender como “normal” antes desse evento. São, antes, uma oportunidade de trilhar novos caminhos capazes de driblar situações futuras passíveis de se transformarem em grandes desafios, evitando assim incorrer em erros do passado. É possível ainda que muitas das mudanças daqui para frente, no comportamento da sociedade, já estivessem sendo preparadas, e acabaram sendo antecipadas como resposta à crise.

Nosso estilo de vida nos levou a grandes avanços tecnológicos, bem como a uma forte expansão territorial da nossa presença, todavia nos revelou o quanto precisamos amadurecer enquanto sociedade, entendendo nossa responsabilidade para com o planeta e todas as espécies que nele habitam. Mostrou-nos que talvez precisemos revisitar os conceitos de “viver em sociedade” e refletir como a evolução dessa sociedade está intrinsecamente relacionada às maneiras como o grupo trabalha de forma cooperativa, na saúde ou na doença.

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Mellanie Fontes-Dutra, biomédica, pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (RS) e coordenadora da Rede Análise Covid-19.

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O controle da malária pode estar no cardápio de um protozoário https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/06/o-controle-da-malaria-pode-estar-no-cardapio-de-um-protozoario/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/06/o-controle-da-malaria-pode-estar-no-cardapio-de-um-protozoario/#respond Wed, 06 Oct 2021 10:09:29 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/serrapilheira_malaria_blog_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=541 Por Fabio Gomes

Como o Plasmodium monta um exército especializado na transmissão da doença

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Há décadas, uma questão vem intrigando os pesquisadores da malária: como o Plasmodium, o protozoário causador da doença, coordena sua multiplicação e monta um exército de células altamente especializadas na infecção dos mosquitos que a transmitem? Na pesquisa sobre esse fenômeno pode estar a chave para o combate a esse mal que mata mais de 400 mil pessoas por ano no planeta.

Os principais sintomas da doença começam dias depois da picada do mosquito, quando o Plasmodium infecta e rompe nossas hemácias, as células sanguíneas responsáveis pelo transporte de gases. Na verdade, o que induz a febre típica da malária é esse rompimento de células, que ocorre em “ciclos de replicação” – daí a febre periódica da pessoa infectada. Ao longo desse ciclo, enquanto a maior parte dos parasitos se multiplicam em novas células que infectarão novas hemácias, outros se diferenciam em gametócitos, forma do invasor especializada na infecção de mosquitos. Os mecanismos desse processo não são bem compreendidos, mas alguns estudos sugerem que o apetite desses organismos é parte da equação.

Como outros parasitos, o Plasmodium utiliza os nutrientes do corpo do seu hospedeiro. As hemácias que eles infectam estão repletas de hemoglobina, proteína que se liga às moléculas de oxigênio e as transporta por nosso corpo. A hemoglobina presente na célula infectada é uma importante fonte de alimento para ele, mas não oferece um cardápio completo. Assim, ele vai buscar outros alimentos fora da célula infectada, incluindo outras fontes de aminoácidos, lipídeos e açúcares.

A glicose, o principal açúcar usado como fonte de energia, é um desses nutrientes “capturados”, e ao que tudo indica é peça central da coordenação da multiplicação do invasor. Em uma pesquisa com macacos infectados, pesquisadores constataram que uma dieta com teor reduzido de açúcares (hipocalórica) levava a uma redução das taxas de proliferação do Plasmodium. No entanto, outros nutrientes também participam da coordenação do ciclo de vida desse protozoário. Em um estudo recente, cientistas de Harvard e da Universidade de Glasgow apontaram para o papel da lisofosfatidilcolina durante a produção dos gametócitos. Importante componente de nossas membranas e do sangue, esse lipídeo também atua na regulação de nossa resposta imune. Ao longo da progressão da malária, ocorre uma redução dos níveis de lisofosfatidilcolina e de outros lipídios são consumidos à medida que a infecção progride. O usurpador detecta essa redução e, quando a lisofosfatidilcolina atinge um nível muito baixo, surgem as formas capazes de infectar os mosquitos.

Ao que tudo indica, o parasito identifica quando ele já retirou muitos recursos do hospedeiro e precisa migrar para um novo. Ainda faltam, porém, muitas peças nesse quebra-cabeça. Por exemplo, parece haver diferenças na dinâmica de formação de gametócitos entre as diferentes espécies de Plasmodium. Também existe uma sofisticada coordenação genética desse processo, e os cientistas ainda não entendem perfeitamente como o apetite dessas espécies coordena essa mecânica. Por outro lado, essas pistas incentivam novos estudos para refinar esse entendimento.

A administração de fármacos capazes de agir e matar os gametócitos é essencial para o controle da malária. No entanto, as principais drogas hoje disponíveis podem causar a destruição de hemácias em pessoas com deficiência da enzima G6PD, doença que afeta cerca de 400 milhões de pessoas no mundo. A necessidade do uso cuidadoso dessas drogas, incluindo a implementação de testes para triagem dessa deficiência, acaba limitando a administração do medicamento. Desvendar os mecanismos associados ao desenvolvimento da infecção e à formação de gametócitos pode ser um passo fundamental para identificar novos fármacos que possam bloquear esse processo e a infecção de novos mosquitos.

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Fabio Gomes é professor do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da UFRJ e membro do Laboratório de Ultraestrutura Celular Hertha Meyer. Twitter: @plasmovet

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Por que o coronavírus evolui mais rápido que a gente? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/09/28/por-que-o-coronavirus-evolui-mais-rapido-que-a-gente/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/09/28/por-que-o-coronavirus-evolui-mais-rapido-que-a-gente/#respond Tue, 28 Sep 2021 14:33:31 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/serrapilheira_mutacoes_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=537 Por Murilo Bomfim

Os vírus têm mais filhos em um dia do que podemos ter durante a vida inteira

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O texto abaixo responde à pergunta feita por Amílcar Borges de Jesus, baiano, 9 anos, para a série “Perguntas de criança, respostas da ciência”.

O combate à pandemia já não estava fácil há cerca de um ano, quando a variante Alpha do novo coronavírus deu as caras no Reino Unido e complicou ainda mais a situação. De lá para cá, outras variantes foram identificadas, dando a sensação de que, mesmo com as vacinas, estamos enxugando gelo. O que explica essa evolução tão rápida?

Vírus são seres muito simples, feitos apenas de uma cápsula proteica e do seu material genético (DNA, RNA ou ambos). Quando eles se reproduzem, as informações genéticas são copiadas — e essas cópias estão sujeitas a erros, gerando mutações. É como um telefone sem fio: alguma informação diferente da história original sempre pode ser passada para frente.

É o acúmulo desses erros que forma uma variante. Não é apenas a biologia, no entanto, que explica por que o novo coronavírus evolui mais rápido que os humanos. A questão também é matemática. As mutações que ocorrem na reprodução podem levar a mudanças evolutivas. Se, enquanto espécie, temos novas gerações a cada vinte ou trinta anos, o vírus se replica a cada dez ou vinte minutos. Com uma reprodução mais frequente, as chances de acumular mutações são bem maiores.

Voltando à biologia, existem mecanismos específicos que nos diferenciam dos vírus. Um deles é o sistema de reparação. Quando uma célula humana é copiada, o organismo é capaz de fazer uma checagem em busca de erros. Se um erro é detectado, é corrigido — o que limita nossas mutações. Esse sistema, no entanto, é sujeito a falhas: nesses casos, podemos desenvolver doenças genéticas, por exemplo.

O novo coronavírus também é capaz de fazer reparos, porém suas detecções são muito menos precisas que as dos humanos. A maior parte dos vírus nem conta com esse sistema (fosse esse o caso do coronavírus, faltariam letras no alfabeto grego para nomear variantes).

Além disso, o corpo humano é perspicaz ao organizar suas células. Elas podem ser divididas em dois grupos: somáticas e germinativas. As somáticas compõem a maior parte do organismo. Estão, por exemplo, nos olhos, no fígado, na pele. Elas se reproduzem com mais frequência e podem gerar mutações diversas (que vão de alterações imperceptíveis até a criação de tumores). Mas essas mutações não são passadas aos descendentes. A hereditariedade é poder exclusivo das células germinativas –os óvulos e os espermatozoides. O corpo entende que as mutações que ocorrem nessas células são transmitidas à prole, por isso o sistema de reparo das germinativas é especialmente rígido. Já no universo dos vírus, qualquer mutação é hereditária.

Ser vírus, no entanto, tem lá suas vantagens. A identificação da variante Alpha foi uma surpresa para a comunidade científica que acompanhava as mutações de perto. “Víamos um genoma estável e, de repente, surge uma variante com quinze, vinte mutações”, diz o geneticista Hugo Aguilaniu, diretor-presidente do Instituto Serrapilheira. Ele conta que isso é possível quando o vírus encontra um “reservatório”– um lugar onde ele pode se replicar sem ser percebido.

Existem duas teorias para explicar esta aparição repentina das variantes. Uma delas é a reprodução em pessoas imunodeprimidas, que podem abrigar o vírus por meses. Neste período, as mutações se acumulam e a pessoa infectada pode transmitir um coronavírus um pouco diferente daquele que a infectou.

A outra possibilidade é que o novo coronavírus tenha encontrado um reservatório não em humanos, mas em outros animais. Uma espécie suspeita são os visons, sacrificados em massa em países europeus por estarem infectados pelo patógeno. Neste caso, o vírus rapidamente se alastra pelo grupo, sofre mutações e pode voltar a infectar humanos.

Mesmo com tantas variantes, vacinar populações não é enxugar gelo. Enquanto vamos criando resistência contra casos graves de Covid-19, a tendência é que o vírus se torne menos agressivo à saúde humana, talvez sendo comparado a um resfriado qualquer. É bom para nós, que poderemos, enfim, nos livrar da pandemia, e bom para ele, que vai poder se replicar sem virar manchete.

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Murilo Bomfim é jornalista.

Sabemos que as crianças fazem as melhores perguntas, e que a ciência pode ter boas respostas para elas. Todo mês, a série “Perguntas de criança, respostas da ciência” convida um cientista a responder uma dessas questões fundamentais. Você tem uma sugestão de pergunta? Veja aqui como colaborar.

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O nome disso é evolução https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/05/08/o-nome-disso-e-evolucao/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/05/08/o-nome-disso-e-evolucao/#respond Sat, 08 May 2021 10:25:58 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/henning-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=399 Por Frederico Henning

O vírus está se adaptando a nós por seleção natural e por enquanto segue passos previsíveis

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“Mutações” e “variantes” se tornaram palavras frequentes na imprensa, lançando sobre a sociedade algumas perguntas importantes: as vacinas continuarão funcionando? As pessoas poderão ser reinfectadas? O vírus está mais perigoso? Outro dia um especialista explicava em uma entrevista que “surgem mutações e algumas se tornam variantes de maior propagação”. Pois bem, esse processo tem nome e sobrenome: evolução por seleção natural. Ouvimos com frequência que as novas variantes são as culpadas pelo descontrole da pandemia. Mas a evolução é mesmo imprevisível?

As pessoas costumam associar a evolução das espécies às grandes transformações que ocorrem nas formas de vida ao longo de muito tempo. Geralmente se pensa que a evolução leva ao “progresso” dos organismos em direção à perfeição ou complexidade. Na realidade, a evolução opera de forma contínua a passos curtos e o “progresso” ou “adaptação” devem ser vistos como “a resolução de problemas imediatos”. Para um coronavírus, progresso é aumentar a taxa de transmissão. Não há direção para a evolução no longo prazo, pois os rumos da vida mudam devido a alterações drásticas no ambiente, como por exemplo a queda de meteoros. No entanto, na escala de tempo em que nós vivemos, a evolução é surpreendentemente previsível.

A evolução adaptativa ocorre sempre que houver duas coisas: mutação e seleção natural. A primeira parte, a mutação, ocorre ao acaso e sozinha não torna os organismos mais adaptados. Cada vez que um vírus se multiplica, um em cada cem mil nucleotídeos –representadas pelas letras A, C, U e G que formam a sequência genética de RNA– é copiado de modo errado, resultando em mutações aleatórias. Mas há alguma regularidade no caos. Não podemos prever qual letra será trocada por outra em um evento de mutação, mas sim quantas mutações irão ocorrer a cada geração. Como o genoma do vírus é constituído de 30 mil letras, cada novo vírus tem uma chance de cerca de 30% de ser mutante.

Devido a esta regularidade, podemos comparar as sequências genéticas de organismos atuais e inferir quanto tempo se passou na evolução com base no número de diferenças entre elas. Este “cronômetro de mutações” é a principal ferramenta usada nas investigações científicas para saber de onde o vírus se originou, como chegou e se espalhou no Brasil e também para monitorar o aparecimento e dispersão das novas variantes.

A segunda parte da equação, a seleção natural, explica por que alguns desses mutantes dominam a população e “se tornam variantes de maior propagação”. Não é um processo fortuito, tanto que a produção de alimentos tem se beneficiado da previsão de geneticistas há mais de um século. Uma mostra da previsibilidade da seleção natural é que as diferentes linhagens de coronavírus, mesmo isoladas umas das outras, estão evoluindo de forma parecida. Um vírus pode mudar de mais de 150 mil jeitos diferentes, mas as variantes estão acumulando as mesmas mutações que aumentam a transmissão e a evasão da defesa imune. Esta evolução “convergente” –que sai de pontos distintos e chega à mesma resposta– indica os caminhos genéticos pelos quais o vírus evolui, as variantes que devem ser o foco de vigilância e os próximos passos na evolução viral. Sabemos como neutralizar a evolução adaptativa. Se cortarmos a transmissão, particularmente das linhagens contendo mutações compartilhadas, impediremos a ação da seleção natural. Embora as mutações continuem a ocorrer, não haverá o acúmulo daquelas que são boas para o vírus.

Antecipar a evolução é fundamental para que as vacinas mantenham a eficácia frente a novas variantes e até mesmo para fazer o diagnóstico, já que o exame de RT-PCR só detecta a presença do vírus se soubermos parte de sua sequência genética. Portanto, cientistas precisam prever as mudanças genéticas que ocorrerão para interpretar e desenvolver testes que continuem a funcionar à medida que o vírus evolui.

“Há grandeza nesta visão de mundo”, escreveu Darwin ao encerrar seu livro mais famoso. Há grande utilidade também, mas controlar o processo começa por dar nome aos bois e isto se chama evolução.

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Frederico Henning é biólogo e professor na UFRJ, onde coordena projetos de pesquisa, ensino e extensão em genética, genômica e evolução.

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Estamos preparados para uma próxima pandemia? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/03/04/estamos-preparados-para-uma-proxima-pandemia/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/03/04/estamos-preparados-para-uma-proxima-pandemia/#respond Thu, 04 Mar 2021 13:45:28 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/catarina-akiko-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=342 Por Pedro Lira

Há um ano Akiko Iwasaki, referência global em imunologia, vive pela Covid-19

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Em tempos normais, Akiko Iwasaki se dedica a uma pergunta fundamental: como a imunidade se inicia e se mantém nas superfícies mucosas? Mas, quando a Universidade de Yale, onde trabalha, fechou temporariamente os laboratórios que não estavam focados no combate à Covid-19 em março de 2020, sua rotina passou a ser investigar, dia e noite, a nova doença.

“Nosso objetivo foi analisar, em tempo real, as respostas imunes produzidas em pacientes infectados, a fim de desenvolver uma terapia mais eficiente.” Foi assim que, após quase um ano, a professora e pesquisadora se consagrou uma referência global sobre o novo vírus. Acabou descobrindo, por exemplo, que a carga viral na saliva do paciente nos primeiros momentos da infecção pode ajudar a prever a gravidade da doença, e que homens têm duas vezes mais chance de morte por Covid-19.

Para a imunologista, a produção e distribuição de vacinas em apenas um ano representa um marco histórico que só foi possível graças à ciência básica. “Essa rapidez é fruto de décadas de pesquisa fundamental, que tem um papel central em situações críticas”, afirma. Seu orçamento, aliás, acabou num piscar de olhos. “Felizmente recebemos muitas doações de empresas, filantropos e agências de fomento à pesquisa para dar continuidade aos estudos.”

A cientista é taxativa: outras pandemias virão e a sociedade precisa aprender com a experiência. “Eventos como esse sempre vão acontecer”, ela diz. “Nós nos esquecemos disso porque nos acomodamos depois que elas acabam. Será que dessa vez vamos aprender? Vamos estar preparados para o futuro?”

Iwasaki extraiu algumas lições de 2020 –um ano que para ela pareceram dez–, em especial a importância da colaboração. “Não podemos fazer ciência em silos. Precisamos do trabalho conjunto de matemáticos, epidemiologistas, virologistas, imunologistas, e cada um deve entender o que o outro está fazendo. Quando todos se unem, o resultado tem muito mais impacto.”

Nessa lógica, Iwasaki investe na formação de jovens pesquisadores, que são a força motriz do seu laboratório, ela conta. “Eles precisam ter uma formação multidisciplinar, que traz reflexões mais criativas e com efeitos mais significativos. Ao interagirem com cientistas mais experientes, uma geração aprende com a outra.”

Iwasaki também advoga por uma ciência mais plural. “Interagir com diferentes profissionais é vital não só para as disciplinas, mas também para grupos étnicos e de gênero. Todo tipo de diversidade contribui para gerar uma ciência de excelência.”

O mesmo vale para a diversidade ecológica e social do Brasil, com a qual, segundo a imunologista, o país só tem a ganhar se souber aproveitar. “Essa pluralidade vai transformar o futuro da ciência.”

Para 2021, o desejo de Iwasaki é voltar à sua pergunta principal: como os antígenos em contato com a mucosa são absorvidos, processados e apresentados ao sistema imunológico?. “Espero que tenhamos vacina e que possamos voltar a investigar o que nos despertava a curiosidade antes da pandemia”, diz. “Todas as perguntas sem respostas levantadas pelos cientistas continuam sendo importantes.”

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Pedro Lira é jornalista e social media no Instituto Serrapilheira

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Sem saber epidemiologia, o matemático foi lá e fez https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/12/15/o-matematico-que-sem-querer-mudou-a-epidemiologia/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/12/15/o-matematico-que-sem-querer-mudou-a-epidemiologia/#respond Tue, 15 Dec 2020 10:02:42 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/gonçalo-larissa-ribeiro-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=280 Por Pedro Lira

Gonçalo Oliveira se aventurou pela matemática biológica e contribuiu para a pesquisa sobre epidemias

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Matemático e professor da Universidade Federal Fluminense, Gonçalo Oliveira não era familiarizado com a biologia. Mas, graças à pandemia da Covid-19, passou a olhar para esse universo. Movido pela curiosidade, ele apontou um problema no modelo-padrão utilizado internacionalmente para o controle de epidemias. A observação acabou rendendo um artigo publicado na “Journal of Mathematical Biology”, que os revisores definiram como “uma necessária extensão da teoria”.

A epidemiologia é a ciência que estuda os fatores que determinam a frequência e a distribuição das doenças nas coletividades humanas. A partir da primeira pessoa infectada, o chamado paciente zero, é possível mapear epidemias e pensar estratégias de controle. O grafo –a representação visual de um modelo matemático– que modula epidemias tem a forma de uma árvore: a raiz é o paciente zero; o tronco é a primeira pessoa que ele infecta; os galhos são os demais infectados. Quanto mais frondosa a árvore, maior o problema.

“Essa lógica parte do princípio de que a probabilidade de contágio de uma infecção é sempre igual, independentemente do tipo de contato que as pessoas têm entre si”, explica Oliveira. Ou seja, as chances de o paciente zero infectar seu companheiro de apartamento seriam as mesmas de contaminar alguém em que ele tenha esbarrado no metrô, por exemplo. “A suposição simplifica o modelo, mas é irrealista”, diz o professor.

Oliveira então sugeriu uma adaptação do modelo, levando em conta variados tipos de interações e suas probabilidades de transmissão de vírus. Na prática, este novo grafo multiplica as árvores que modelam o contágio, todas elas partindo da mesma raiz, o paciente zero. O que ele fez foi a mesma análise do modelo anterior, mas agora as diferentes árvores modelam diferentes tipos de interações.

A solução do matemático é mais complexa, mas não implica um cálculo muito mais difícil. Por exemplo, para determinar a média de contágios por infectado é preciso apurar apenas três informações: as probabilidades de transmissão de cada tipo de interação (encontros fortuitos no transporte público, convivência em espaços de trabalho); a média do número médio de interações de cada tipo por indivíduo; e a média do quadrado do número médio de interações de cada tipo por indivíduo.

Pode parecer complicado aos leigos, mas não aos cérebros acostumados à matemática. “É um modelo que não depende de muitas variáveis. Basta encontrar árvores mais simples que modelem de forma macroscopicamente fiel um surto epidêmico real,” garante o professor.

Apesar de a Covid-19 ter inspirado o modelo, este pode ser usado para estudar outros fenômenos associados a modelagens de surtos epidêmicos, como os indivíduos “super-spreaders” –que, por terem contato com muita gente, infectam um grande número de pessoas– e os “super-shedders” –os quais, altamente infecciosos, acabam por infectar muita gente. “Esse modelo é adequado para identificar o efeito dessas figuras na distribuição de uma epidemia, comparar os dois tipos ou até juntar um ao outro”, explica o pesquisador.

A confiança do matemático no modelo é recente. Sua área de pesquisa explora objetos geométricos por meio da física, não tem nada a ver com a biologia matemática. “Comparei meu artigo com outros para ver se estava bom e pesquisei para confirmar que ninguém havia escrito isso antes”, conta. Ele submeteu o estudo aos revisores sem antes mostrá-lo a colegas da área. “Tinha medo de estar escrevendo algo trivial”, confessa.

Só percebeu a relevância do material quando leu o feedback dos especialistas que, além de não apontarem correções, destacaram a importância da descoberta para as pesquisas na área. “Um problema que eu tenho, e muitos outros matemáticos também, é achar que só vou entender uma coisa se eu a fizer. Então estudei e fiz”, conclui.

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Pedro Lira é jornalista e social media no Instituto Serrapilheira

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Por que os mosquitos da dengue não adoecem? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/10/14/por-que-os-mosquitos-da-dengue-nao-adoecem/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/10/14/por-que-os-mosquitos-da-dengue-nao-adoecem/#respond Wed, 14 Oct 2020 10:30:17 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/Serrapilheira_SJ_dengue_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=228 Por Ruam Oliveira

Uma das hipóteses tem a ver com a dieta desses insetos

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O biólogo José Henrique Oliveira estuda mosquitos há mais de dez anos. Nos últimos, foi instigado por uma dúvida: por que estes insetos, embora carreguem o vírus, não ficam doentes?

É o que o cientista busca responder atualmente. No Limune, Laboratório de Imunobiologia da Universidade Federal de Santa Catarina, Oliveira pesquisa a tolerância de mosquitos vetores a infecções por arbovírus — que são os vírus encontrados em artrópodes como o Aedes aegypti. Ele trabalha com biologia de vetores ao lado de mais quatro colegas — dois estudantes da pós-graduação e dois de iniciação científica.

A hipótese levantada pelo grupo para justificar a resistência específica dos mosquitos da dengue à doença tem a ver com a dieta hematófaga deles, ou seja, um regime alimentar constituído de sangue. Eles chegam a ingerir uma quantidade de sangue que pode equivaler a até três vezes o próprio peso, e isso acarreta uma digestão que os mobiliza.

“Para se defender desse ‘insulto’ causado por sua alimentação, o mosquito ativa um conjunto de proteínas de defesa que o protegem”, explica o professor. “É nessa hora que o vírus se dá bem, porque as moléculas de defesa não são muito específicas e não conseguem separar o que é mosquito do que é vírus”. Ou seja: elas protegem sem distinção, criando uma tolerância e, por consequência, uma condição ideal para o mosquito vetor transmitir o vírus ao picar alguém.

Identificar essas proteínas permitiria a criação de ações de combate ao mosquito hospedeiro. Talvez seja possível, por exemplo, desenvolver um inseticida que libere moléculas que, em contato com o Aedes aegypti, quebrem sua tolerância ao vírus, de modo que o inseto possa adoecer e mesmo morrer de dengue, interrompendo o ciclo transmissor da doença

Até o momento, duas descobertas se mostraram animadoras. A primeira foi a de um gene conectado ao metabolismo de nitrogênio e depuração de amônia, processos capitais para a tolerância dos insetos. Procurando entender o tipo de relação entre ambos, Oliveira trabalha com diferentes hipóteses. Uma delas, ainda sujeita a testes, é que esses derivados de nitrogênio, como a amônia, são tóxicos para as células e por isso precisam ser manejados com muito cuidado dentro dos organismos.

A outra foi a descoberta de que o mosquito só é tolerante ao vírus dentro de uma faixa de concentração viral muito específica. Segundo o biólogo, isso ajuda a entender por que os mosquitos não adoecem. “Fatores que controlam o crescimento viral dentro do hospedeiro humano podem ser capazes de regular a tolerância dentro do hospedeiro mosquito. Isso nunca foi demonstrado antes”, ele diz.

Por enquanto, a ciência aponta caminhos que, uma vez abertos, poderão ser fonte de novas pesquisas. O cientista sustenta que seu objetivo central é a pesquisa em si: “Faço por mim e ainda existe o bônus de eventualmente chegar a um resultado relevante”. Ele garante que, a depender das descobertas, será o primeiro a tentar uma patente e se dedicar ao desenvolvimento de métodos de aplicação para elas.

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Ruam Oliveira é jornalista.

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Um mundo pequeno https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/06/03/um-mundo-pequeno/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/06/03/um-mundo-pequeno/#respond Wed, 03 Jun 2020 15:42:57 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/Serrapilheira_rede_final_web.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=136 Por Rafael Chaves

Você pode ser muito mais próximo do Einstein ou da Beyoncé do que imagina

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Certamente você já ouviu falar da teoria dos “seis graus de separação”– bastam seis laços de amizade para que duas pessoas possam se conectar. Entre você e o presidente de um poderoso país ou um surfista na Austrália existem no máximo cinco intermediários. Dados os 7 bilhões de habitantes humanos do planeta e as distâncias geográficas entre eles, que o mundo seja tão “pequeno” parece uma ideia absurda. Absurda, porém correta.

O escritor húngaro Frigyes Karinthy foi o primeiro a aventar tal hipótese, num conto publicado na década de 1920. Até meados da década de 60, a ideia deste mundo estreito não passava de ficção, uma lenda urbana. Isso mudou em 1967, quando o psicólogo americano Stanley Milgram executou um elaborado experimento de envio de cartas entre desconhecidos e descobriu que a distância média entre as pessoas era próxima dos seis graus de separação fantasiados por Karinthy. E, para surpresa geral, essa propriedade passou a ser identificada nas mais variadas redes: de computadores, de interconexões entre neurônios, de estradas e aeroportos e até mesmo redes biológicas. É um fenômeno que parece estar em quase todas as redes e, como estas são onipresentes na natureza, podemos dizer que o mundo pequeno está em praticamente todo lugar.

Similaridades entre diferentes sistemas são o sonho de físicos e matemáticos, que enxergam em um padrão aparentemente universal a chave para desvendar os mecanismos fundamentais sobre os quais a natureza opera. Existiria uma regra universal para descrever sistemas tão diversos?

Em 1959, antes do experimento de Milgram, os matemáticos húngaros Paul Erdős e Alfréd Rényi já haviam proposto um modelo universal de redes que incorporava essa propriedade do mundo pequeno. Naquele modelo, todos os nodos da rede –fossem pessoas, neurônios, aeroportos etc– eram igualitários, todos tinham a mesma chance de se conectar entre si. Dado este caráter intrinsecamente probabilístico, as chamadas “redes aleatórias” nos mostraram que a separação entre dois nodos quaisquer era proporcional ao logaritmo do número total de nodos da rede. O logaritmo era a chave por detrás do mundo pequeno, já que ele transforma números grandes em pequenos. Por exemplo, o logaritmo de 1 milhão nos dá exatamente o mítico grau seis. Mesmo que o mundo tenha bilhões de pessoas, o logaritmo garante que a separação entre elas ainda assim será muito acanhada.

Mas uma rede social pode de fato ser descrita como aleatória? Caso fosse, a chance de você ser amigo de um monge no Tibet ou de um colega do maternal é a mesma. A possibilidade de dois de seus amigos serem amigos entre si é extremamente pequena, desprezível até. Além disso, neste modelo todos teriam basicamente o mesmo número de amigos  –blogueiros, celebridades ou você (se é que você não é famoso). Claramente, redes sociais e outros tipos de redes não operam de modo tão aleatório.

De forma a reproduzir da maneira mais fidedigna todas essas nuances, dois outros cientistas, também húngaros, Albert-László Barabási e Réka Albert, propuseram em 1999 o chamado “modelo de redes livre de escala”, que desde então tem encontrado as mais variadas aplicações, desde na segurança de redes de computadores ao estudo de redes celulares e biológicas, e mesmo na otimização de estratégias de negócios e campanhas publicitárias. Mais recentemente, no meu grupo de pesquisa, utilizamos esse modelo para entender a “internet quântica”, uma rede na qual a troca de informações é fundamentalmente segura e mais eficiente. Por detrás de comportamentos tão diversos e complexos, muitas vezes temos regras universais e extremamente simples.

O modelo, aplicado à rede de contágio de transmissão de uma doença, permite entender como um vírus originário no outro lado do mundo chegou ao Brasil na velocidade a que assistimos. Bastaram apenas seis apertos de mão. A única forma de parar a contaminação neste momento é quebrar os links da rede.

Se puder, fique em casa.

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Rafael Chaves é físico e pesquisador do Instituto Internacional de Física da UFRN

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Por que não existe uma única vacina contra a gripe? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/03/18/por-que-nao-existe-uma-unica-vacina-contra-a-gripe/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/03/18/por-que-nao-existe-uma-unica-vacina-contra-a-gripe/#respond Wed, 18 Mar 2020 14:50:06 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/ilustra-texto-gabriela.-Sandra-Jávera-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=74 Por Gabriela Cybis

Vírus em constante mutação exige vacinas sazonais

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Quando você entra em contato com certas doenças infecciosas pela primeira vez, seu corpo cria uma memória imunológica. Caso no futuro ele se depare com o mesmo patógeno, o sistema imune saberá como protegê-lo. As vacinas se servem desse mecanismo de memória, apresentando ao organismo pedaços ou versões enfraquecidas dos agentes infecciosos. Assim, nosso sistema imune adquire o treinamento necessário para nos salvaguardar do patógeno, sem que corramos o risco e o sofrimento de contrair a doença.

As vacinas estão entre as mais importantes descobertas da medicina, sendo responsáveis pela completa erradicação da varíola e pelo controle de diversas outras doenças. A tríplice viral é um ótimo exemplo: duas doses na infância conferem proteção para toda a vida contra caxumba, rubéola e sarampo. O recente retorno de vários casos de sarampo está fortemente associado a uma queda no número de pessoas que buscam imunização.

O caso da gripe, porém, é diferente. Todo ano é lançada uma nova vacina que deve ser tomada para manter o nível de proteção, pois a gripe é um vírus de rápida evolução. Essa evolução é tão rápida que se você pega gripe num ano, há uma boa probabilidade de que a defesa adquirida não seja eficaz contra as versões do vírus que irão circular no ano seguinte.

Como o vírus da gripe está em constante mudança, é fundamental que, para ser efetiva, a vacina seja fabricada com base nas variantes que circulam logo após sua aplicação. O problema é que, como ela demora um tempo para ser produzida, precisamos projetá-la mais de meio ano antes de sua distribuição. Ou seja: não basta conhecer as variantes do vírus hoje ativas. Para planejar uma vacina efetiva, é preciso identificar quais das variantes atuais mais se assemelham àquelas que encontraremos na próxima temporada de espirros. Isso é, precisamos prever o futuro.

Qualquer pessoa que acompanha a Bolsa de Valores ou já tentou comprar moeda estrangeira para uma viagem sabe como é difícil antecipar a situação do dia de amanhã, o que dizer daquela que se apresentará dali a seis meses. Realizar previsões confiáveis está entre os problemas mais desafiadores da ciência. Assim como o bom investidor se cerca de informações sobre as condições do mercado para embasar suas decisões, para fundamentar o design da vacina os cientistas reúnem uma grande quantidade de informações que retratam a situação atual do vírus. Colhem amostras do vírus da gripe ao redor do mundo, registrando o local e a data de coleta. Identificam as sequências genéticas para acompanhar o ritmo da sua evolução. Além disso, como a interação do vírus com o sistema imune é fundamental para a vacina, quantificam quão semelhantes ou diferentes os vírus são nesse quesito.

Mas como extrair sentido desses dados? O que as sequências genéticas de fato podem nos dizer? Comparando-as, podemos determinar quais variantes do vírus são mais próximas ou mais distantes umas das outras, e com os métodos estatísticos adequados podemos até reconstruir a “genealogia” da gripe e identificar em quais linhagens a evolução ocorre de modo mais rápido. Com base em amostras de vírus do passado e informações bioquímicas das proteínas da gripe, é possível mapear as regiões das sequências que são os motores da evolução viral em cada temporada. É crucial, pois, desenvolver métodos estatísticos, geralmente envolvendo um grande componente computacional para integrar dados tão diferentes e deles extrair conhecimento que auxilie no design da vacina.

E assim, todo ano, a Organização Mundial da Saúde reúne um grupo de especialistas que, de posse dos dados disponíveis e do resultado dos estudos mais recentes, seleciona as variantes do vírus que serão empregadas para produzir a vacina do ano seguinte. É uma aposta. Apoiada em dados e na melhor ciência disponíveis, mas uma aposta. (Esse exercício deverá ser repetido anualmente, até que novas tecnologias o tornem obsoleto.)

E qual o resultado dessa aposta? Bem, todo ano milhares de vidas são salvas e milhões de pessoas deixam de ser infectadas devido à ação da vacina. Pouco não é.

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Gabriela Cybis é bióloga, professora de Estatística na UFRGS, atua em modelagem estatística para genética

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Simulando epidemias https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/02/27/simulando-epidemias/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/02/27/simulando-epidemias/#respond Thu, 27 Feb 2020 17:33:07 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/02/sims-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=60 Por Gabriela Cybis

Como a modelagem matemática lida com a dispersão de vírus, do corona a zumbis

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Logo que surge uma epidemia viral, começam a ser divulgadas informações sobre o número de novos casos e mortes, e quais as cidades onde se encontram os infectados – primeiro concentradas próximo ao ponto de origem, e gradativamente se espalhando em uma onda que ameaça tomar conta do globo. Nos últimos anos vimos esse filme algumas vezes: em 2002, o SARS que se propagou para dezessete países; em 2009, a gripe suína (H1N1) que se tornou pandêmica atingindo todos os continentes; em 2013, a ameaça da gripe aviária. E agora acompanhamos o desenrolar da epidemia do novo coronavírus.

O que pode ser feito para conter a dispersão do vírus? Governos adotam medidas como fechar escolas; medir a temperatura de passageiros que desembarcam nos aeroportos; proibir a entrada de pessoas vindas de regiões afetadas; restringir o tráfego aéreo; cancelar eventos públicos de grande porte, como as comemorações do ano-novo chinês. Mas como avaliar o efeito real dessas ações? Considerando o impacto econômico e social dessas medidas restritivas, será que o ganho em termos de contenção da epidemia compensa?

A resposta a essas questões é complexa e depende de uma série de fatores. Nem todos os vírus são iguais, e seu modo de transmissão, a facilidade com que infectam novas pessoas, os períodos de latência e a letalidade variam. Além disso, condições sociais, demográficas e até climáticas podem afetar a dinâmica do vírus.

Como não temos bola de cristal, a melhor forma de entender como esses fatores se combinam para determinar o curso da epidemia são os modelos matemáticos que costumam dividir a população em três subgrupos: suscetíveis (quem nunca pegou a doença e, se entrar em contato com ela, pode contraí-la); infecciosos (quem carrega o vírus e, se entrar em contato com pessoas suscetíveis, pode transmiti-lo); removidos (quem não participa mais da dinâmica de infecções, pois ou já se recuperou – e está imune – ou morreu).

Para estudar o progresso da epidemia e traçar estratégias de contenção, os modelos acompanham a rede de interação entre esses grupos, em graus variáveis de detalhe. Nos Estados Unidos, por exemplo, um modelo para doenças tipo gripe utiliza dados de censo, levando em conta mapas, padrões de locomoção, idade e interações no trabalho, na escola e em casa. Simula-se assim um enorme ambiente no qual os agentes (indivíduos) seguem suas rotinas de modo similar ao jogo The Sims. Cada vez que um indivíduo suscetível interage com um infeccioso, ele tem certa probabilidade de contrair a infecção. A simulação é repetida várias vezes para identificar o curso mais provável da epidemia e os resultados das intervenções de controle.

Uma ressalva importante é que o modelo é apenas tão bom quanto seus pressupostos. Se ele não capturar bem o processo de transmissão do vírus, as conclusões vão reproduzir essas falhas.

Afinal, o que aprendemos com esses estudos? A aleatoriedade desempenha um papel importante no curso de várias epidemias. Os modelos podem nos dar estratégias de vacinação em grupos etários, por exemplo privilegiando as crianças, já que o ambiente escolar é propício à circulação do vírus. Propostas combinadas, com ações como distribuição estratégica de antivirais, alterações de comportamento individual e fechamento seletivo de escolas podem obter alto grau de sucesso.

Certas estratégias (o recolhimento de profissionais do local da epidemia, entre outros) podem ter efeito oposto ao desejado. E, claro, tudo isso depende das condições específicas do vírus em questão. O importante é que dispomos de ferramentas científicas para nos ajudar a avaliar o efeito de cada ação, agindo quase como uma bola de cristal que nos ajuda a vislumbrar o resultado de cada escolha (e suas margens de erro).

Na interface entre a cultura pop e a modelagem epidemiológica, encontramos quem? Os zumbis. Diz a tradição que humanos mordidos por zumbis acabam virando zumbis. Eles se encaixam perfeitamente no modelo suscetíveis (humanos), infecciosos (zumbis) e removidos (mortos), e compõem um case lúdico para o ensino desses modelos para as novas gerações de epidemiologistas.

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Gabriela Cybis é bióloga, professora de Estatística na UFRGS, atua em modelagem estatística para genética

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