Ciência fundamental https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br O que pensam os jovens cientistas no Brasil? Thu, 02 Dec 2021 15:29:05 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Como as plantas identificam inimigos? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/27/como-as-plantas-identificam-inimigos/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/27/como-as-plantas-identificam-inimigos/#respond Wed, 27 Oct 2021 10:13:01 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/cacau-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=569 Por Pedro Lira

Paulo Teixeira busca a resposta nos pés de cacau da Bahia

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Quando, ainda no colegial, escutou falar do Projeto Genoma, Paulo Teixeira soube que seria cientista. As conversas com o pai, médico, sobre o genoma humano e as infinitas possibilidades da biologia molecular o levaram à carreira de pesquisador. Hoje professor da Universidade de São Paulo, seu laboratório investiga o sistema imunológico das plantas. Mais precisamente, como elas reconhecem os microrganismos que representam perigo.

Plantas, bem como humanos e outros animais, detectam a presença de organismos invasores. Tal percepção provoca uma resposta imune, mas os patógenos –fungos, vírus ou bactérias que causam doenças– possuem estratégias para manipular esse mecanismo de defesa. “A maior parte dos microrganismos com que as plantas interagem não são patogênicos. Algumas bactérias e fungos são benéficos e as ajudam a crescer, obter nutrientes, se defender de invasores. Como uma planta filtra o que é bom?”

O interesse do pesquisador se consolidou na graduação, na Unicamp. Na disciplina de genética e biologia molecular, ministrada pelo prof. Gonçalo Pereira, Teixeira teve seu primeiro contato com a genômica. “O professor –que anos depois se tornou meu orientador de doutorado– fez um miniprojeto genoma da vassoura-de-bruxa, doença que ataca os cacaueiros da Bahia. Simulamos todas as etapas de sequenciamento para entender a fundo o DNA do fungo”, conta.

O impacto da experiência foi tão positivo que Teixeira fez sua iniciação científica no laboratório de Pereira, onde trabalhou por anos. “Meu primeiro projeto de pesquisa, financiado pela Fapesp, foi para trabalhar com o fungo da vassoura-de-bruxa. Foi aí que mergulhei na relação entre plantas e microrganismos.” Quinze anos depois, ele ainda estuda os cacaueiros. “Olhando para trás, vejo que essa experiência na graduação construiu o que eu faço e o que sou como cientista.”

A pesquisa, que buscava melhorar a produção de cacau no Brasil, tomou outro rumo quando o pesquisador ingressou no pós-doutorado na Universidade da Carolina do Norte (EUA), com o objetivo de entender mais a imunidade das plantas. Adotou como objeto de estudo a Arabidopsis, organismo modelo sem importância econômica, mas de grande valor científico. “Mergulhei na ciência básica e exercitei minha criatividade na manipulação genética”, conta.

De volta ao Brasil, Teixeira retornou às origens, agora como professor. Em 2019, passou no concurso da USP e montou seu próprio laboratório, no qual onze cientistas investigam o sistema imune das plantas, incluindo um fenômeno muito conhecido mas pouco compreendido: a resistência do “não hospedeiro”. Funciona assim: em uma floresta habitada por diferentes espécies de plantas existe uma bactéria que adoece apenas uma espécie. Esta bactéria pode entrar em contato com outras plantas, as chamadas não hospedeiras, mas não lhes causa mal algum. O que determina a compatibilidade entre planta e patógeno?

A resposta talvez esteja nos receptores do sistema imune das plantas. “Os não hospedeiros conseguem detectar o patógeno usando receptores que a planta infectada não possui. O desafio é identificar quais são eles”, explica. No laboratório, eles utilizam como modelo uma bactéria que infecta laranjas. Mas em vez de estudar a ação do patógeno na laranjeira, injetam-no em plantas não hospedeiras, como o tomate e o tabaco. O passo seguinte é ver qual delas apresenta uma resposta imune. Ou seja, se o tomate ou o tabaco a reconhecem como ameaça. Em caso positivo, precisam saber como ocorre tal reconhecimento.

Uma bactéria invasora injeta no interior da célula em média trinta proteínas que são nocivas para a planta. A equipe se dedica a identificar qual a proteína responsável por ativar o sistema imunológico do hospedeiro. “É como estar numa sala com apenas uma lâmpada, mas trinta interruptores. Qual deles acende a lâmpada? É preciso testar um por um.”

Entender bem esse sistema pode, no futuro, ser a resposta para extinguir doenças como a vassoura-de-bruxa. Mas Teixeira avisa que pode levar um tempo até aplicar essas descobertas. “Estudo ciência básica para entender o que estou investigando. Primeiro vamos saber como funciona o sistema, depois transferir esse conhecimento para aplicar na prática.” Se o receptor imune de uma planta não hospedeira funcionar em uma planta hospedeira, a transferência de genes pode se tornar uma prática comum.

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Pedro Lira é jornalista e social media no Instituto Serrapilheira.

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O que é a vida? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/21/o-que-e-a-vida/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/21/o-que-e-a-vida/#respond Thu, 21 Oct 2021 10:05:12 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/vida-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=560 João Miguel de Oliveira, 6 anos, carioca, fez essa complexa pergunta fundamental para a série “Perguntas de criança, respostas da ciência”. O Serrapilheira chamou três cientistas de áreas diferentes para (tentar) respondê-la.

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A vida é a ordem em meio à desordem, por Hugo Aguilaniu, biólogo geneticista

Na condição de geneticista que pesquisa o envelhecimento, devo dizer que a definição mais estrita de vida não é, de fato, tão simples. A primeira ideia que vem à mente é que um ser vivo deve ser capaz de se mover. Se o movimento macroscópico não for sistemático, deve ser pelo menos molecular: as moléculas devem se transformar ativamente em outras moléculas. Embora isso seja observado em todos os seres vivos, o movimento molecular não é específico dos seres vivos, pois basta pôr duas moléculas reativas em presença uma da outra para dar início aos fluxos químicos, aos movimentos. É, portanto, uma condição necessária, mas não suficiente.

Outra característica da vida é a capacidade de se perpetuar. Os seres vivos são, em sua maioria, mortais, mas podem perpetuar a vida por meio da reprodução, quando então o código genético com todas as informações é fielmente replicado. Não é impossível, porém, que alguns organismos se perpetuem sem se reproduzir, por meio de uma eficiente regeneração. De todo modo, é sempre necessário perpetuar e/ou reproduzir nossa informação genética.

A replicação do código genético implica a capacidade de os seres vivos se manterem em ordem. Estar vivo é precisamente manter certa organização molecular dentro de si. Quando a vida sai de um organismo, podemos ver que os tecidos se decompõem e são logo reduzidos a compostos químicos individuais, não mais ordenados entre si. Essa manutenção da ordem é muito cara em termos energéticos: enquanto houver vida, ela não pode parar. O metabolismo e a ingestão de moléculas que carregam certa quantidade de energia química –o que chamamos nutrição– é que impulsionam esse processo.

Os seres vivos, portanto, consomem energia ao seu redor para se manter em ordem. De acordo com a segunda lei da termodinâmica, sabemos que a ordem mantida nos indivíduos vivos só é possível ao preço da criação de uma desordem. E essa, por sua vez, é ainda maior que a ordem – tanto que a entropia, a desordem do universo, cresce inexoravelmente.

Uma tabela periódica da vida, por Daniel Valente, físico

Para um físico, a pergunta vai muito além de “como funcionam os organismos vivos tais como os conhecemos”. Há várias comunidades de cientistas buscando uma compreensão que englobe a vida-como-a-conhecemos e a vida-como-poderia-ser.

Suponhamos, por um instante, uma busca por vida fora da Terra. Caso encontremos um sistema auto-organizado e autorreplicante, porém de composição molecular completamente distinta da nossa, como reconhecê-lo como vivo? Tornados, por exemplo, são estruturas auto-organizadas que “sobrevivem” enquanto há energia disponível na atmosfera, mas ninguém os considera organismos realmente vivos. Fogo também sobrevive enquanto dura a energia que o alimenta e, curiosamente, é capaz de se autorreplicar (pense na chama de uma vela quanto toca um novo pavio).

Se a auto-organização e a autorreplicação não são critérios suficientes, será que seria suficiente adicionar a evolução darwiniana à lista? Para constatar que isso não tem muita serventia, basta analisar a chamada “vida artificial” –programas de computador capazes de se autorreplicar, competir por recursos (alocação de memória, energia elétrica na máquina) e desenvolver características complexas a partir de programas simples. Mas essa vida artificial poderia ser posta em pé de igualdade com a vida natural?

Alternativamente à busca por definições, ou por uma lista de atributos, cientistas têm procurado respostas na física do comportamento emergente. Tentamos ver emergir, nos mais diversos sistemas (do nanométrico ao macroscópico) e contextos (contendo fontes de energia luminosa, elétrica, química, térmica), imitações e sobretudo generalizações de todas as possíveis características excepcionalmente similares às dos organismos vivos tal como os conhecemos (auto-organização, automontagem, autorrecuperação, autorreplicação, mutação, adaptação). Algumas buscas se inclinam para os aspectos energéticos da auto-organização longe do equilíbrio termodinâmico (generalizando a noção de metabolismo como um processo emergente na matéria), enquanto outras se inspiram nos aspectos informacionais (imitando o código genético e a capacidade de processamento de informação que emergem em toda célula viva).

Físicos do passado primeiro precisaram responder “o que é gravidade?” para depois criar os satélites artificiais e o GPS. Cientistas do presente têm tentado inventar toda sorte de vida artificial, na expectativa de um dia responder de modo exato a “o que é vida”. Quem sabe ainda haverá uma “tabela periódica da vida”, na qual ordenaremos os sistemas por seu “grau de vida” desde os obviamente não vivos até os obviamente vivos?

A vida é uma obra de Gaia, por Adriana Alves, geóloga

Para um geólogo, a vida envolve os processos compreendidos entre o nascimento e a morte. Entretanto, ao contrário dos biólogos, nós não nos referimos necessariamente apenas a animais, plantas e bactérias como seres vivos. Planetas, estrelas e até vulcões fazem parte desse grupo. Uma estrela, por exemplo, como o Sol, vive para queimar combustível e fornecer luz e calor no processo; um planeta vive para diminuir a temperatura de seu interior até que sua dinâmica interna se paralise. Nós, seres viventes clássicos da biologia, nos originamos da combinação quase milagrosa e acidental de carbono, oxigênio, nitrogênio e hidrogênio… E foi o surgimento dos seres fotossintetizantes  –aqueles que consomem gás carbônico como combustível e soltam oxigênio como subproduto dessa reação– que nos propiciou a atmosfera rica em oxigênio que boa parte dos seres que conhecemos necessitam para seguir vivendo.

Não fosse o pulsante dinamismo da Terra, os continentes não existiriam e o planeta ainda seria uma bola de lava. Sem essa dinâmica tampouco haveria deriva continental, nem as placas tectônicas se encontrariam. Esse “não encontro” impossibilitaria a migração dos hominídeos, que existiriam isolados em algum ponto remoto da África.

Como uma mãe (Pacha Mama ou Gaia), a Terra nos fornece tudo o que precisamos para a vida biológica desde o surgimento da nossa (e de todas) espécie(s). Seja por influenciar a distribuição dos nutrientes do subsolo e a ocupação do território por caçadores coletores, seja por definir a distribuição de metais preciosos usados nos chips do computador em que ora escrevo, a vida humana e de todos os demais seres só se tornou viável por conta da dinâmica peculiar e caprichosa de Gaia.

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Hugo Aguilaniu é diretor-presidente do Instituto Serrapilheira, Daniel Valente é professor da UFMT e Adriana Alves é professora da USP.

Sabemos que as crianças fazem as melhores perguntas, e que a ciência pode ter boas respostas para elas. Todo mês, a série “Perguntas de criança, respostas da ciência” convida cientistas para responderem uma dessas questões fundamentais. Você tem uma sugestão de pergunta? Veja aqui como colaborar.

 

 

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O que faz um vulcão adormecido renascer das cinzas? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/09/o-que-faz-um-vulcao-adormecido-renascer-das-cinzas/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/09/o-que-faz-um-vulcao-adormecido-renascer-das-cinzas/#respond Sat, 09 Oct 2021 10:23:38 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/serrapilheira_vulcoes_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=545 Por Adriana Alves

Nem sempre conseguimos prever a natureza

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Desde o dia 19 de setembro, as imagens do vulcão Cumbre Vieja, na ilha espanhola de La Palma, nas Canárias, tomaram conta dos noticiários. A visão do rio incandescente que desce numa cadência voraz tem deslumbrado a todos, cientistas ou não, afligindo os moradores.

Depois de meio século adormecido, o Cumbre Vieja despertou furioso e suas lavas já recobrem quatro quilômetros quadrados. A chegada da língua de fogo à costa acendeu o alerta para a potencial emissão de gases tóxicos disseminados pelo súbito resfriamento da lava em choque com o mar.

Mas como é que um vulcão adormecido entra em erupção sem dar pistas? Por que as autoridades não evacuaram previamente as casas na rota da lava? Por que não foi possível impedir a destruição das cerca de mil edificações no entorno?

Perguntas similares, que variam apenas quanto à localização do fenômeno, vêm sendo pesquisadas há décadas, e a geologia já tem respostas satisfatórias para qualquer vulcão terrestre adormecido, porém ainda ativo. Já em janeiro de 2021 pesquisadores de diversas nacionalidades assinaram um texto na revista “Scientific Reports” alertando para a iminente erupção do lado mais jovem da ilha, o Cumbre Nueva. O trabalho, servindo-se de dados de radar de alta resolução e de uma inovadora técnica de tratamento e interpretação de imagens, destacava o aumento anômalo do edifício vulcânico, um dos principais indícios de retorno à vida de vulcões inativos.

O crescimento insólito decorre da injeção de grande volume de magma proveniente das profundezas do manto terrestre, uma massa quente e carregada de espécies voláteis, sobretudo água, gás carbônico e dióxido de enxofre. Só para se ter uma ideia, o vulcão expeliu cerca de 250 mil toneladas de enxofre desde o primeiro dia de erupção… O odor nas cercanias não deve estar agradável, mas a irritação dos olhos e vias aéreas deve incomodar muito mais.

Vulcões adormecem quando o magma do reservatório que os alimenta se cristaliza, impedindo que a lava se movimente. A chegada de novos pulsos de magma “rejuvenesce” o reservatório ao fundir parte desses cristais, permitindo que o sistema volte a fluir.

A pressão excessiva causada pelo efeito combinado do volume de magma recém-chegado e da expulsão de espécies voláteis desses novos pulsos (mais ou menos o que ocorre quando se abre a tampa de uma garrafa de bebida gaseificada) leva ao “inchaço” da estrutura, provocando o rompimento de zonas de fraqueza do edifício e a consequente erupção. Todo esse processo é acompanhado de uma mudança drástica na composição e no volume dos gases exalados pelo vulcão. Tal alteração, somada ao aumento no registro de sismos, são os marcadores da chegada de novos pulsos de magmas, potencialmente desencadeadores de erupções.

No caso do sistema vulcânico de La Palma, todos esses indícios estavam presentes, e o que impediu o sucesso do plano de preservação das edificações foi a imprevisibilidade dos fenômenos naturais. Os cientistas foram surpreendidos por uma migração do conduto vulcânico principal que implicou uma alteração do ponto de saída da lava, que era esperada para a região Cumbre Nueva –onde o inchaço do edifício era mais evidente no início do ano. Entretanto, a erupção foi deslocada para o sul, e a lava recobriu depósitos vulcânicos mais antigos do Cumbre Vieja. Ainda que a natureza siga sempre o caminho mais fácil, este nem sempre se mostra óbvio, a despeito dos avanços tecnológicos.

Tais avanços também não implicam maiores chances de alteração do curso das lavas, já que exemplos “bem-sucedidos” são irrisórios e duvidosos. Na Itália, por volta de 1670 foi construída uma trincheira em torno do Monte Etna com a intenção de redirecionar o fluxo de lava. A iniciativa funcionou em termos, já que a lava se desviou para uma comunidade vizinha. Muitas pelejas e algumas mortes depois, a trincheira se mostrou insuficiente para acomodar o crescente volume de lava e ambas as localidades foram afetadas pela erupção.

Se não temos poder para afetar a dinâmica interna da Terra, tampouco temos meios eficazes de impedir que sua pujança nos dobre sob o peso de nossa insignificância.

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Adriana Alves é geóloga e professora da USP.

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Como as plantas sabem que horas são? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/06/06/como-as-plantas-sabem-que-horas-sao/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/06/06/como-as-plantas-sabem-que-horas-sao/#respond Sun, 06 Jun 2021 10:21:24 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/camilo-martins-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=436 Por Carlos Takeshi Hotta

Ao fazer pequenos cálculos, elas garantem a sobrevivência

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As plantas são seres muito subestimados. Por trás de uma simplicidade aparente, porém, elas estão aptas a executar operações sofisticadas, tanto assim que há quem confunda essa habilidade com inteligência. Para nos atermos a apenas um exemplo dessa complexidade, basta dizer que a fim de evitar morrer de fome durante a noite, elas são capazes de elaborar cálculos simples.

As plantas têm uma “rotina”. Assim como outros seres vivos, elas possuem um relógio interno, o relógio circadiano, que gera ritmos diários a fim de sincronizar seu corpo com os ritmos ambientais. Elas se preparam para colher a luz do sol antes do amanhecer; emitem cheiros para atrair polinizadores quando estes estão mais ativos; evitam perder água de tarde, quando a umidade do ar é menor e, de noite, se sustentam com reservas energéticas produzidas de dia.

O amanhecer e o anoitecer são eventos previsíveis, e os vegetais sabem disso. Ou seja: eles sabem que horas são.

De dia as plantas fazem fotossíntese e produzem os esqueletos de carbono necessários para a sua sobrevivência, seu crescimento e reprodução. Uma das moléculas por elas criadas é o amido, polissacarídeo que lhes serve de reserva energética. É esse açúcar que lhes fornece energia à noite, permitindo-lhes crescer e se preparar para o novo amanhecer.

A dinâmica do amido parece simples: ao alvorecer, ele é escasso. Com o passar das horas, sua quantidade aumenta de dez a vinte vezes, resultado da assimilação de carbono por meio da fotossíntese. De noite, a quantidade da molécula diminui linearmente até atingir os baixos níveis do início. Se por algum motivo esse polissacarídeo falta, a planta sofre de estresse energético e tem seu crescimento afetado.

Um grupo de pesquisa liderado pela dra. Alison Smith, do John Innes Centre, na Inglaterra, fez um experimento para entender melhor a dinâmica do amido. Os pesquisadores adiantaram em quatro horas o anoitecer de plantas cultivadas em câmaras de crescimento e observaram, surpresos, que elas passaram a utilizar a molécula mais devagar, de forma a fazer render o estoque até o amanhecer. Apesar da noite abrupta, não houve estresse energético. No dia seguinte, as plantas passaram a acumular amido mais rapidamente, de modo a atingir, em um dia quatro horas mais curto, níveis mais altos do polissacarídeo de reserva para sobreviver a noites mais longas. O mais interessante é que ainda não sabemos exatamente como elas fazem isso.

Para que as plantas consigam racionar o amido, elas precisam saber quanto elas possuem e estimar de quanto tempo dispõem até o próximo amanhecer, para então calcular a taxa de uso da molécula. Sabemos como as horas do dia são estimadas: o relógio interno das plantas tem um ritmo semelhante aos ritmos ambientais de claro e escuro. O mesmo relógio circadiano é usado para a percepção do encurtamento do período diurno que prenuncia o inverno, ou seu alongamento, antes do verão.

Em seus experimentos, o grupo da dra. Smith também utilizou plantas com relógios circadianos defeituosos. Quando esse relógio marcava um dia com menos de 24 horas, isto é, era um relógio mais apressado, a reserva acabava antes da chegada do sol, tanto em dias normais quanto em noites estendidas. Ou seja: quando a percepção do tempo das plantas é alterada, elas não conseguem racionar direito a molécula durante a noite e sofrem de estresse energético. Plantas com o relógio biológico avariado fazem menos fotossíntese, usam mais água e acabam crescendo menos.

Os modelos matemáticos desenvolvidos para tentar entender melhor como ocorre o racionamento do amido ressaltam a importância do relógio circadiano no processo e mostram que as plantas precisam ter mecanismos para saber quanto desse polissacarídeo possuem, quanto estão utilizando ou o seu nível energético. Não sabemos ainda como elas fazem isso, nem como integram essas informações. Entender como as plantas gerenciam sua energia ao longo das horas é uma das grandes perguntas nessa área. A resposta não avança somente nosso conhecimento básico sobre esses complexos organismos, mas também pode nos ajudar a fazê-los crescer mais e melhor para nosso próprio benefício.

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Carlos Hotta estuda o relógio biológico das plantas e é professor associado do Instituto de Química da Universidade de São Paulo.

Sabemos que as crianças fazem as melhores perguntas, e que a ciência pode ter boas respostas para elas. Todo mês, a série “Perguntas de criança, respostas da ciência” convida um cientista a responder uma dessas questões fundamentais. Você tem uma sugestão de pergunta ou de pauta para o blog? Veja aqui como colaborar.

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A teoria da evolução pensada pela inteligência artificial https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/05/16/a-teoria-da-evolucao-pensada-pela-inteligencia-artificial/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/05/16/a-teoria-da-evolucao-pensada-pela-inteligencia-artificial/#respond Sun, 16 May 2021 10:15:10 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/darwin_pixel-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=405 Por Adriana Alves

Um novo estudo usou ferramentas da IA para revisitar teorias já consolidadas

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Em trabalho publicado na revista “Nature”, no apagar das luzes de 2020, cientistas combinaram inteligência artificial e registro de fósseis para contribuir para uma das teorias mais aceitas da ciência: a evolução das espécies.

O surgimento da vida visível na Terra, há cerca de 540 milhões de anos, favoreceu a preservação fóssil de diferentes espécies. Foi o estudo desse registro que permitiu a identificação de cinco grandes extinções, bem como de inúmeros períodos de evolução acelerada das espécies. Curiosamente, a aceleração da evolução parecia decorrer de eventos de extinção em massa e da desimpedida evolução das espécies sobreviventes.

Até o ano passado, o link entre extinção e evolução estava sujeito a críticas baseadas, em parte, no caráter espacial e temporalmente irregular dos registros mais antigos de fósseis. Os resultados do novo estudo sugerem que, de fato, não há relação temporal entre a diversificação da vida e eventos catastróficos anteriores. Mais do que isso: em alguns casos, os períodos de diversificação acelerada da vida parecem, paradoxalmente, ter consequências similares às extinções em massa.

As ferramentas de inteligência artificial empregadas no estudo permitiram decifrar os padrões escondidos em uma base de dados paleontológicos que reúne pouco mais de 1,2 milhão de registros, referentes a mais de 170 mil espécies. Foi possível visualizar pela primeira vez nos últimos 540 milhões de anos os períodos de explosão da vida, de extinção em massa e de intenso surgimento de novas espécies desencadeado por crises biológicas.

Traduzidos em diagramas, os resultados do novo estudo permitem identificar não apenas as cinco maiores extinções em massa, mas também outros sete eventos de extinção de menor magnitude e quinze eventos de altíssimas taxas de surgimento de novas espécies. Além desses, dois eventos em que extinção e diversificação de espécies caminharam juntas são mostrados pela primeira vez com clareza.

Os padrões revelam um equilíbrio entre períodos de extinção em massa e de diversificação incrementada de espécies, com um contínuo de eventos separando esses dois extremos. Surpreendentemente, os resultados do trabalho indicam que os eventos de evolução acelerada da vida (aqueles com taxas incrementadas de mudanças adaptativas ou surgimento de novas espécies) não apresentam associação temporal com a maioria das extinções em massa que os precederam.

Muito pelo contrário, os padrões identificados indicam que a evolução acelerada pode ter efeitos destrutivos similares aos das grandes extinções em massa. Ao contrário do que se observa na dobradinha evolução/extinção, o papel da diversificação da vida na destruição de espécies seria promover maior competição, acarretando o desaparecimento de espécies menos adaptadas.

O quão disruptivo de fato será o novo estudo ainda descobriremos, pois essas conclusões com certeza serão alvo de escrutínio por parte de cientistas. O importante é que ele une duas tendências que vieram para ficar e que talvez fomentem avanços científicos sem precedência: de um lado, os recursos da inteligência artificial; de outro, o contraditório nos forçando a revisitar teorias já consolidadas.

Nota: alguns trechos do artigo foram editados no dia 19 de maio para que se tornassem mais claros.

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Adriana Alves é geóloga e professora da USP.

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Como os robôs superaram os humanos no xadrez? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/04/07/como-os-robos-superaram-os-humanos-no-xadrez/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/04/07/como-os-robos-superaram-os-humanos-no-xadrez/#respond Wed, 07 Apr 2021 12:16:29 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/xadrez-ia-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=368 Por Roberta Duarte

Se a série “Gambito da Rainha” fosse ambientada hoje, a protagonista seria substituída por uma inteligência artificial

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A serviço da agência de inteligência britânica, o matemático Alan Turing quebrou o código nazista Enigma, feito decisivo para a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial (sua história é contada no filme “O jogo da imitação”, mas isso você já deve saber). Considerado herói, ele focou seu trabalho na área de ciências da computação e inteligência artificial (IA), na qual foi pioneiro. Foi dele a ideia de botar um computador para realizar atividades humanas.

Em 1948, junto com o colega David Champernowne, Turing começou a trabalhar em um algoritmo que jogasse xadrez. O algoritmo Turochamp –junção dos nomes Turing e Champernowne– ficou pronto em 1950, porém as limitações computacionais da época não permitiram que o código pudesse ser implementado. Só restou a Turing e a seu outro colega, o também cientista da computação Alick Glennie, seguir o algoritmo usando lápis e papel, além da lógica, naturalmente. Naquele mesmo ano, o matemático publicou seu célebre artigo “Computing Machinery and Intelligence”.

“Máquinas podem pensar?” Era assim que começava o paper, no qual ele apresentou o teste de Turing: dois seres humanos e uma máquina se confrontam num jogo de perguntas e respostas. Se a máquina conseguir enganar um jogador, fazendo-o acreditar que ela é um ser humano, ela passou no teste. Nascia aí a base que fundou a ideia de inteligência artificial como a conhecemos hoje.

Turing, porém, morreu em 1954, antes de ver seu código rodando em um computador. Mas seu trabalho abriu muitas portas e o conceito de uma máquina jogando xadrez permaneceu um desafio para futuros cientistas que por décadas desenvolveram e estudaram o tema.

Corta para 1996, que é quando as coisas começam a ficar ainda mais interessantes. Foi nesse ano que a IBM apresentou o DeepBlue, um computador que calcula posições para jogar xadrez. O campeão mundial de xadrez era o russo Garry Kasparov e ele foi desafiado a jogar contra a máquina. De um lado Kasparov, representando a humanidade, de outro DeepBlue, em nome da inteligência artificial. O russo saiu vitorioso, mas alertou que provavelmente seria o último ser humano a conquistar o cinturão contra um computador.

Dito e feito. No ano seguinte ele perdeu para uma versão atualizada do DeepBlue. O representante do nosso time não digeriu bem a derrota e acusou a IBM de trapacear. Anos depois admitiu não ter lidado bem com a situação, e em 2017 até chegou a escrever um livro sobre inteligência artificial.

A história acaba aí? Esse foi só o começo. Desde então, cada vez mais algoritmos que usam inteligência artificial para jogar xadrez foram sendo publicados. Em 2010 teve início o campeonato Top Chess Engine Championship (TCEC), uma competição entre computadores cujo objetivo é encontrar o melhor algoritmo de xadrez. Os jogadores são convidados pela organização do evento, que dura alguns meses. O modelo Stockfish, guarde esse nome, foi consagrado campeão por dez vezes.

Em 2017 a DeepMind, uma empresa com foco em IA, apresentou o AlphaZero, uma inteligência artificial capaz de jogar xadrez, Go e shogi. O computador recebeu as regras básicas do xadrez e aprendeu o jogo sozinho. Jogou contra si inúmeras vezes, e em quatro horas o algoritmo era especialista em xadrez.

O AlphaZero disputou uma partida contra o Stockfish, vencedor do Top Chess Engine Championship daquele ano. Conseguiu derrotar o campeão, tornando-se então detentor da honraria. Se um computador ultrassofisticado não foi capaz de vencê-lo, o que dizer de um ser humano?

Não sabemos como será o futuro, mas no xadrez já podemos jogar a toalha. Kasparov tinha razão: ele foi o último campeão que a humanidade teve.

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Roberta Duarte é física, faz doutorado em astrofísica pela Universidade de São Paulo (USP) e trabalha com aplicações de inteligência artificial na astrofísica de buracos negros.

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Por que um país sem vulcões ainda deve se preocupar com eles? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/03/31/por-que-um-pais-sem-vulcoes-ainda-deve-se-preocupar-com-eles/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/03/31/por-que-um-pais-sem-vulcoes-ainda-deve-se-preocupar-com-eles/#respond Wed, 31 Mar 2021 13:09:18 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/vulcoes_serrapilheira_hor_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=362 Por Adriana Alves

Nem todos são tão inofensivos como o que está em erupção na Islândia

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Nas últimas semanas os noticiários nos brindaram com belas imagens da erupção de um vulcão islandês situado a 30 km da capital, Reykjavik. Cientistas aproveitam a oportunidade para coletar amostras frescas de lava, enquanto moradores jogam vôlei nas cercanias do vulcão que acabou se tornando uma atração turística. A aparente placidez da erupção pode enganar os espectadores sobre os perigos que vulcões ativos representam. Mas nem todo vulcão do país é tão inofensivo assim.

No século 18, nove mil islandeses morreram em decorrência de uma erupção vulcânica de grande magnitude. No vale do Nilo, a 5,5 mil quilômetros dali, os egípcios experimentaram uma das maiores crises agrícolas de sua história, que gerou uma onda de mortes por inanição e dizimou 1/6 dos habitantes da região.

Aparentemente desconectados, os dois eventos foram provocados por diferentes agentes de um mesmo autor: o vulcão Laki, no sul da Islândia. Os efeitos imediatos foram sentidos pelos islandeses, que inalaram gases tóxicos e conviveram com os funestos efeitos dos vastos volumes de lavas. No segundo sítio, as mortes foram desencadeadas pela nuvem de cinzas que se espalhou em direção ao sul, carregando, além de material particulado, gases como enxofre, que em altas concentrações pode levar à diminuição das temperaturas e causar chuvas ácidas, ambas com efeitos catastróficos para a agricultura.

Outro vulcão islandês teve efeitos que ficaram conhecidos no mundo todo. A explosão do Eyjafjallajökull em 2010 foi responsável por uma interrupção do tráfego aéreo global que acarretou graves consequências econômicas e sociais.

Mas por que vulcões de um mesmo país suscitaram efeitos significativos em áreas geográficas tão diversas? A resposta, desoladora para os cientistas, foi delineada em trabalho publicado na revista Nature Communications no início de 2021.

Historicamente, os vulcanólogos acreditavam que quanto maiores as partículas expelidas durante explosões vulcânicas, menor seria seu tempo de permanência na atmosfera e, por conseguinte, menor o alcance da nuvem de cinzas.

Entretanto, os resultados do trabalho indicam que, mesmo com diâmetros relativamente grandes, as partículas se mantêm em suspensão e viajam por dias e até meses a distâncias tão impressionantes quanto os mais de cinco mil quilômetros das cinzas do vulcão Laki, ou mesmo distâncias supra-oceânicas, como ocorreu com o Eyjafjallajökull.

Os mecanismos que governam a dispersão dessas partículas envolvem sofisticados fatores aerodinâmicos, mas as simulações numéricas e as observações de campo revelaram um sistema extremamente eficiente em que partículas de menor tamanho formam um invólucro em torno de partículas maiores, permitindo sua sustentação em suspensão. Essa viagem sustentada se dá em decorrência da maior interação proporcionada pelo aumento da área superficial do agregado de partículas e das intrincadas células de convecção do ar que se formam nos contatos entre elas. É como se ao pegar carona em uma partícula relativamente grande, as menores encontrassem um meio mais eficiente de chegar em maior número a distâncias substancialmente maiores. Não por acaso, o mecanismo foi apelidado de rafting, em alusão ao esporte radical.

A notícia é desoladora por um motivo em particular: os estudos foram conduzidos a partir da observação de vulcões relativamente pequenos, que não fazem sombra às maiores erupções que a Terra já testemunhou. Um desses gigantes, o sistema de Yellowstone, ora adormecido, tem potencial de causar explosões cuja magnitude sequer pode ser mostrada em livros, já que a magnitude do vulcanismo é representada em uma escala logarítmica –que está para os vulcões assim como a escala Richter está para os terremotos.

A cadeia vulcânica de Yellowstone, nos Estados Unidos, é composta por cerca de 60 mil quilômetros cúbicos do tipo mais explosivo de lava do planeta (as ricas em silício e gases). Se tal cenário já é assustador por si só, ele se torna mais catastrófico quando considerado o subsistema mais profundo, que apesar de menor potencial explosivo tem um volume quatro vezes maior que o sistema superficial.

O que aconteceria caso Yellowstone entrasse em erupção? Os seres petrificados de Pompéia e as superproduções hollywoodianas nos sugerem um prognóstico nada animador.

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Adriana Alves é geóloga e professora da USP.

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É preciso escolher entre ciência ou religião? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/02/17/e-preciso-escolher-entre-ciencia-ou-religiao/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/02/17/e-preciso-escolher-entre-ciencia-ou-religiao/#respond Wed, 17 Feb 2021 12:00:00 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/Ciencia-Religiao-web2-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=328 Por Lisiane Müller

Mais do que ignorar o debate espinhoso, é necessário ampliá-lo

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No mito grego sobre a caixa de Pandora, conta-se que o titã Prometeu, ao roubar o fogo dos deuses e dar aos homens, despertou a ira de Zeus. Para se vingar, o deus de todos os deuses enviou ao mundo Pandora, a primeira das mulheres, entregando a ela uma caixa com a recomendação de que nunca fosse aberta. Após um tempo, como Zeus já esperava, ela sucumbiu à curiosidade e espiou o interior da caixa, liberando todos os males e doenças no mundo. Zeus vingara-se dos homens e de Prometeu.

A curiosidade de Pandora é considerada uma característica inerentemente humana; se por um lado sua utilização de maneira inadvertida pode trazer prejuízos, por outro é ela quem tem nos impulsionado a explorar e fazer grandes descobertas sobre a natureza e o Universo. E é inspirada por essa curiosidade que proponho uma espiada na seguinte questão: ciência e religião são antagônicas? Inimigas? Explorar os limites intelectuais desse debate seria abrir uma caixa de Pandora?

Ouso pressupor que não, e nesse cenário secular de divergências adiciono ao debate uma reflexão: como nós, cientistas, temos lidado com este assunto? Para entender sobre os processos evolutivos darwinianos, precisamos abandonar todas as crenças religiosas? O debate é espinhoso, mas a importância dele se mede em números: o crescente negacionismo em nossa sociedade e os mais de 170 milhões de brasileiros que no último censo demográfico declararam ter alguma religião.

A resposta para um cientista pode ser um tanto óbvia: toda religiosidade que não seja objeto de pesquisa deve ficar do lado de fora dos laboratórios. Mas encerrar o debate por aqui pode ser perigoso. Ao negligenciar ou ignorar a existência das crenças religiosas, cientistas podem acabar alavancando ainda mais a ruptura de comunicação que vem sendo fomentada por alguns setores religiosos no Brasil. E o resultado pode ser a pressão moral e social para que os grupos impactados escolham lados.

O que acontece quando saímos do nosso ambiente de trabalho? Diversidade é a resposta. Existem cientistas que em suas vidas pessoais são católicos, candomblecistas, evangélicos, ateus e isso não interfere em sua ética científica profissional. Compreender a importância da exclusão de ideais religiosos na ciência, mas sem negligenciar a realidade cultural e religiosa do país, talvez seja o ponto-chave. E mais do que ignorar essa discussão, é preciso que a gente a amplie e a diversifique.

Como exemplo prático, vamos pensar numa situação cotidiana para muitos brasileiros: tomar um remédio. É preciso desacreditar em Deus para engolir um comprimido desenvolvido por cientistas? É preciso escolher entre convicção religiosa e medicamentos? Se suas respostas foram não, o mesmo pensamento deveria ser aplicado à teoria da evolução, porque, estranhe ou não, a medicina e os estudos evolutivos estão fundamentados a partir da mesma ciência e da mesma objetividade científica.

É nesse ponto que cientistas e pessoas religiosas no Brasil têm entrado em maior conflito, gerando discussões unilaterais e um afastamento social preocupante. E como nós, brasileiros e cientistas, estamos nesse debate? Sabemos o que pensam nossos familiares, amigos e colegas de trabalho? Estimular um debate público amplo, que inclua vozes diferentes para ampliar os limites intelectuais desse assunto é fundamental para que possamos enxergar outros cenários e novos caminhos. Dar maior protagonismo às pesquisas das áreas das ciências humanas –que vêm produzindo extenso e aprofundado conhecimento científico– também é importante.

Hoje a caixa de Pandora sobre ciência e religião talvez tenha se transformado na caixa fechada em si –na falta do debate– e não mais em seu conteúdo. Se a caixa está na nossa frente, por que não usar da nossa curiosidade para abri-la e explorá-la? E tenho certeza que tiraremos de letra: afinal, fazer e responder perguntas não é um dos aspectos fundamentais da ciência?

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Lisiane Müller é cofundadora do projeto de divulgação científica “Evolução para Todes” e mestranda no Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva (LAAAE) no Instituto de Biociências da USP.

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Racismo e ciência https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/11/30/racismo-e-ciencia/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/11/30/racismo-e-ciencia/#respond Mon, 30 Nov 2020 14:10:08 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/inglez.valentina-fraiz.web_-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=264 Por Mariana Inglez

O que temos feito para romper com o legado da justificativa “biológica” para a opressão?

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No artigo “O Escravo do Naturalista”, publicado na revista “Ciência Hoje”, Ildeu de Castro Moreira revela como importantes naturalistas que estiveram no Brasil no século XIX se beneficiaram do conhecimento de povos indígenas e de pessoas escravizadas para a coleta e identificação de espécies nativas. O próprio Museu Imperial de História Natural da época, por exemplo, teve sua coleção formada a partir do trabalho de pessoas escravizadas. Ao longo da minha formação, sempre fui uma das poucas biólogas negras da turma e não me lembro de aulas que revisassem esses episódios ou estimulassem uma reflexão sobre o tema.

Lideranças científicas fundadoras e proeminentes em antropologia física ou biológica, hoje minha área de atuação, usaram suas pesquisas e sua crença na superioridade de pessoas brancas europeias para justificar e fomentar políticas que resultaram em desigualdades e violências que se mantêm até hoje contra pessoas não brancas. Vale lembrar dos zoológicos humanos com exposições antropológicas, tanto para entretenimento do público quanto para interesses de pesquisadores. Espalhados sobretudo na Europa e nos Estados Unidos, e atuantes até o final dos anos 1950, esses zoológicos exploraram diferentes etnias indígenas, povos asiáticos e, mais frequentemente, povos africanos.

Foi só depois da Segunda Guerra Mundial que cientistas de diferentes áreas, e da antropologia física em especial, começaram a reavaliar as definições sobre “raças” humanas. A discussão continuou até 1996, quando a American Association of Physical Anthropologists (AAPA) produziu um documento definindo que todos os humanos pertencem a uma única espécie que não está estruturada em raças; que as diferenças entre populações resultam tanto de fatores hereditários quanto ambientais e sociais; que não existem evidências que provem a inferioridade ou superioridade de uma ou outra “raça”; finalmente, que todos os seres humanos têm o mesmo potencial para assimilar conhecimento e cultura, ou seja, não existem diferenças biológicas entre supostas raças que definam o potencial intelectual ou cultural de cada um.

Em junho deste ano, em resposta ao movimento Black Lives Matter, a mesma AAPA publicou carta em apoio às populações negras e indígenas. Enquanto cientistas dessa disciplina que forneceu uma justificativa “biológica” para o colonialismo, a escravidão e a opressão contínua, é importante que atuemos efetivamente para romper com este legado. Assim como no passado houve um movimento para que as esferas dominantes aderissem aos preceitos da comunidade científica da época, hoje precisamos nos engajar contra o racismo e seus impactos na sociedade.

Acredito que a produção científica em geral deva ser mais autocrítica e comprometida com pautas sócio-raciais, já que reconhecer diferentes vozes é uma maneira de restituir autoridade a minorias discriminadas. Enquanto não existir diversidade, não seremos capazes sequer de identificar as desigualdades e atuar para resolução de problemas delas decorrentes.

Esse artigo é um chamado à reflexão e à ação, em especial aos pares brancos que seguem maioria em todas as ciências acadêmicas. O que tem sido feito para impulsionar a inclusão racial, valorizar a diversidade e promover os direitos humanos? Estamos tentando tornar nossos campos de estudo mais diversos e descolonizar os saberes dentro da universidade?

Mais do que estudar a variação e a biologia em nossa espécie, precisamos movimentar as estruturas internas do próprio fazer científico nacional, ampliando o diálogo com públicos mais diversos e apoiando as pautas de inclusão racial.

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Mariana Inglez é doutoranda no Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva (LAAAE), no Instituto de Biociências (USP), e coordenadora do projeto de divulgação científica “Evolução para Todes”.

Este artigo é o último de uma série de três textos do blog Ciência Fundamental em homenagem ao mês da consciência negra.

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Ossos do ofício e olhares de uma bioantropóloga https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/09/04/ossos-do-oficio-e-olhares-de-uma-bioantropologa/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/09/04/ossos-do-oficio-e-olhares-de-uma-bioantropologa/#respond Fri, 04 Sep 2020 14:17:21 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/mariana_inglez.ilustra.valentina.web_-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=199 Por Mariana Inglez

Fui contratada para ler esqueletos e descobrir suas histórias

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Há exatos 30 anos, em 4 de setembro de 1990, foi aberta a Vala Clandestina do Cemitério de Perus, na Zona Noroeste da capital paulista, evidência de que durante a ditadura o local serviu para enterrar desconhecidos e vítimas do Esquadrão da Morte, além de desaparecidos políticos. Como bioantropóloga, participei do Grupo de Trabalho Perus, criado com o objetivo de identificar desaparecidos políticos que pudessem estar entre os cerca de 1500 esqueletos humanos que foram exumados nessa ocasião.

Escavar, registrar a história, limpar cada remanescente ósseo são etapas importantes que caminham na contramão da política de apagamento e contribuem para a construção de uma memória coletiva sobre nossa ditadura, num exemplo prático do conhecido bordão “recordar para não repetir”.

Aqui cabe uma explicação breve sobre a bioantropologia, também chamada antropologia biológica. A área estuda a biologia humana do passado e do presente, levando em conta, de forma integrada, processos evolutivos, relações ecológicas e aspectos socioculturais. Algumas correntes entendem a antropologia forense como um de seus ramos, uma vez que, idealmente, profissionais de diferentes áreas trabalhariam em conjunto para identificar pessoas e solucionar crimes a partir de conhecimentos das ciências biológicas e sociais e da garantia de respeito às vítimas e às famílias.

Fui contratada para ler os ossos. Ler e registrar o que os esqueletos nos dizem sobre quem eram e como viveram aquelas pessoas, uma vez que elas já não podem nos contar verbalmente sobre suas biografias.

Quando um esqueleto humano é encontrado, buscamos respostas que em geral dependem de vestígios preservados nesse corpo físico. Quem era a pessoa? Qual seu sexo biológico mais provável? Quantos anos tinha quando morreu? Será que teve alguma doença que deixou marcas em seu esqueleto? Sofreu algum acidente cujas cicatrizes permanecem nos ossos? É possível inferir a causa de sua morte?

Para investigar essas questões, deve-se conhecer anatomia, osteologia, patologia e traumatologia, além de ter informações sobre o desenvolvimento humano e o envelhecimento a nível esquelético. Uma vez na mesa de análise, eu preciso saber posicionar cada um dos mais de duzentos ossos do esqueleto; identificar cada um dos nossos 32 dentes e reconhecer variações que possam indicar se determinada parte anatômica pertence a outro indivíduo, em especial em contextos de valas comuns, onde é recorrente a mistura de ossos de diferentes pessoas.

O olhar atento para a forma e a superfície de cada centímetro do material me permite detectar aspectos que ajudam a distinguir os indivíduos e chegar mais perto da identidade das pessoas que procuro – documentos, fotos, relatos, registros médicos e odontológicos também são elementos fundamentais a serem considerados. A etapa postmortem de análise, como é conhecida, exige a aplicação de métodos específicos e antecede as análises de DNA que confirmam a identidade de pessoas, em especial em casos muito abertos e com muitos indivíduos, como era aquele.

A leitura dos ossos ainda nos dá dicas sobre a qualidade de vida de forma mais coletiva. Em uma sociedade historicamente desigual do ponto de vista sociorracial, quem eram as pessoas, além dos desaparecidos políticos (cujos nomes sabemos e não devemos esquecer), que não tiveram o direito de ter sua individualidade e sua dignidade respeitadas tanto em vida quanto após a morte? Marcas que denotam precário acesso à saúde ou ocorrência de morte violenta, seja num passado distante, seja mais recente, também servem como um registro possível que profissionais com expertise em bioantropologia podem nos fornecer.

Olhar o passado a partir dos ossos nos permite entender e documentar nossa própria história, o que é fundamental para fazer melhores escolhas no presente e construir caminhos para um futuro também melhor.

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Mariana Inglez é doutoranda no Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva, pelo IB-USP, e coordena o projeto de divulgação científica Evolução para Todes.

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