Ciência fundamental https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br O que pensam os jovens cientistas no Brasil? Thu, 02 Dec 2021 15:29:05 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O tortuoso caminho da ciência https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/08/17/o-tortuoso-caminho-da-ciencia/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/08/17/o-tortuoso-caminho-da-ciencia/#respond Tue, 17 Aug 2021 10:12:29 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/colesterol-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=510 Por Tarciso Velho

Pássaros canoros não têm “mau colesterol”, e descobrimos isso por acaso

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Cientistas costumam acreditar que tempo e dedicação resolvem tudo. Se o problema persiste, as habilidades técnicas do pesquisador ficam sob suspeita… Ele então busca ajuda e se aprofunda na literatura específica. Quando uma solução se oferece, ele respira aliviado. Em retrospectiva, a visão da ciência parece clara, mas o caminho de construção do conhecimento científico pode ser cheio de imprevistos, como experimentei em certa ocasião.

Há uns dez anos, no laboratório do prof. Carlos Lois, então no Massachusetts Institute of Technology, o MIT, tentamos produzir linhagens geneticamente modificadas de pássaros canoros a fim de entender quais genes estariam envolvidos no aprendizado do canto.

Começamos tentando replicar uma técnica bem estabelecida para roedores: utilizar vetores virais para infectar embriões. Gerados em laboratório e incapazes de se reproduzir, tais vetores entram na célula quando uma de suas proteínas se liga a uma outra presente na superfície da célula-alvo: a famosa relação de chave e fechadura entre um ligante e seu receptor. Nesse caso, a chave era a proteína VSVg, que se liga ao receptor de lipoproteínas de baixa densidade, o LDLR, responsável pela captação do colesterol da fração LDL, o tal colesterol ruim, associado a doenças cardiovasculares. O material genético viral entra no núcleo, insere-se no DNA da célula e passa a ser herdado por suas filhas. Algumas das células infectadas vão formar as células sexuais e gerar gametas, e, portanto, os filhotes gerados vão carregar o gene de interesse. Ou seja, serão animais geneticamente modificados ou transgênicos.

Como uma dessas bolas com efeito, a tarefa de gerar pássaros transgênicos nos reservou várias surpresas. Alguns milhares de ovos foram injetados, e nada de pássaros transgênicos. Enfim, usando um vírus altamente concentrado, fomos bem-sucedidos. Aquele mesmo vírus, porém, em concentrações bem mais baixas, podia infectar células de inúmeros organismos. Estaríamos usando a chave errada?

Junto com o prof. Claudio Mello, da Oregon Health & Sciences University, fomos espiar o genoma dos pássaros canoros e constatamos que o receptor da chave empregada pelo vírus estava bastante modificado. Este foi o primeiro resultado inesperado, porque o LDLR, a fechadura, era até então considerado comum a todos os vertebrados. Alterações nele diminuem a captação de colesterol, aumentando os níveis de colesterol no sangue. O famoso colesterol alto.

O LDLR de pássaros apresentava lacunas em relação ao de outros animais. Uma comparação mostrou que o vírus infectava muito bem as células de galinha e muito mal as dos pássaros. Quando colocamos um LDLR intacto nestas duas espécies, confirmamos que ele facilitava a entrada viral em células de pássaros e não fazia diferença nenhuma nas de galinha, que já tinham seu próprio receptor intacto. O receptor alterado dos pássaros parece oferecer proteção contra o vírus. O que é ótimo para o pássaro e péssimo para gerar animais transgênicos.

Bem, pássaros não voam por aí tendo ataques cardíacos por causa de colesterol alto… Então veio a segunda surpresa. Uma vez que alterações no LDLR aumentam o colesterol em humanos, roedores e peixes, precisávamos aferir essa taxa nos pássaros canoros. Medimos o colesterol das duas aves (passarinho e galinha) e o comparamos com o de humanos. O exame de sangue revelou que não havia LDL no passarinho, o tal colesterol ruim. Isso é surpreendente, porque partículas de LDL são consideradas o principal carreador de colesterol. Mas tinha muito colesterol de alta densidade (HDL), o dito do bem. Parece então que o receptor divergiu, mas o sistema de transporte do colesterol também mudou. Não necessariamente nesta ordem.

O interessante é que pássaros canoros parecem ter resolvido o problema do mau colesterol com um mecanismo de transporte diferente, muito saudável, com altos níveis de HDL e nenhum LDL. Como isso ocorreu ainda não sabemos, mas vamos continuar seguindo essa bola com efeito e ver até onde ela nos leva. A explicação pode trazer novas ideias sobre a relação do colesterol e doenças cardiovasculares, e como esta questão pode ter sido resolvida na natureza.

Esse é o processo de muitas descobertas científicas: cheio de surpresas e nem sempre seguem uma linha reta.

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Tarciso Velho é neurocientista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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O que nossa fala e o canto do sabiá têm em comum https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/07/21/o-que-nossa-fala-e-o-canto-do-sabia-tem-em-comum/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/07/21/o-que-nossa-fala-e-o-canto-do-sabia-tem-em-comum/#respond Wed, 21 Jul 2021 10:20:44 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/sabias-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=483 Por Tarciso Velho

Aves canoras nos ajudam a entender a gagueira e outros distúrbios da linguagem

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Em geral, começamos a falar naturalmente. Imitamos o que ouvimos dos pais, dos amigos, de quem estiver por perto. Ou seja, modificamos as vocalizações de acordo com o que ouvimos. Aprendemos, erramos, ensaiamos de novo. E disso resulta um sistema de comunicação único no mundo animal, a linguagem falada. Ela é singular, universal, uma característica biológica nossa.

No entanto, um seleto grupo de animais compartilha conosco o que chamamos de aprendizado vocal: eles aprendem ouvindo e copiando outros animais da espécie. Para surpresa de alguns, este grupo não inclui os grandes primatas, mas outros animais: mamíferos aquáticos (baleias, golfinhos, pinípedes), morcegos, pássaros, e possivelmente elefantes e o sagui-de-tufos-brancos. Não são todas as aves, porém, que aprendem suas vocalizações, apenas pássaros canoros, beija-flores e papagaios

Mas por que isso nos interessa? Porque um processo biológico tão particular como o aprendizado vocal deve ser meticulosamente estudado. Seja para melhor entender distúrbios de linguagem, seja para satisfazer nossa curiosidade.

Cerca de 5% das crianças americanas, por exemplo, têm algum tipo de distúrbio da fala, dos quais 20% são de gagueira. Não se conhece a causa da maioria deles. Além disso, estimativas sugerem que cerca de 40% de crianças diagnosticadas com autismo, cujas causas são em grande parte desconhecidas, são consideradas não verbais.

É fundamental, portanto, entender as bases neurobiológicas da aquisição da fala e os componentes genéticos nela envolvidos. Até então, estudos em humanos ajudaram a compreender o processo e caracterizar cuidadosamente as fases de aquisição da fala. Observou-se que mutações genéticas raras estão associadas a defeitos no aprendizado e na produção da fala, incluindo gagueiras persistentes e apraxias, mas ainda não se esclareceu completamente como estas mutações influenciam no funcionamento do cérebro. É importante também destacar que o ambiente influencia o aprendizado, tanto que aprendemos diferentes línguas, desenvolvemos sotaques regionais, formamos nosso vocabulário a partir do nível de educação etc. Mas ainda não está claro como o ambiente influencia o funcionamento dos circuitos cerebrais envolvidos na fala, ou mesmo se e quais fatores ambientais contribuem para distúrbios da fala.

Nos últimos cinquenta anos, os pássaros canoros se tornaram objeto de busca das bases neurobiológicas do aprendizado vocal. Eles também começam a cantar ouvindo seus pares adultos. Aprendem, erram, ensaiam de novo. Tanto que o sabiá da sua rua tem um canto diferente do da rua de baixo. Sabiás paulistas provavelmente possuem um dialeto diferente dos gaúchos. E isso é um produto direto do processo de aprendizado e do modelo utilizado.

Humanos e pássaros canoros precisam de uma audição intacta para aprender e manter as vocalizações –crianças com problemas auditivos apresentam dificuldades no aprendizado vocal. A perda da audição em adultos acarreta deterioração da fala, como alterações na entonação e no ritmo.

Os pássaros, como nós, possuem um período crítico de aprendizado, quando o cérebro é particularmente sensível e eficiente para adquirir uma língua (ou duas, ou três). Depois essa capacidade cai drasticamente e com o tempo vamos ficando mais limitados. Por isso, tantos de nós acham difícil enfrentar uma segunda língua na maturidade. Ainda que nos tornemos fluentes em um segundo idioma, continuamos falando com sotaque. E esse sotaque tem origem sensorial: conforme somos expostos à língua nativa, deixamos de perceber sons que não lhe são comuns. Não conseguimos reproduzir certos sons da segunda língua porque não conseguimos perceber esses sons. Nosso sistema auditivo sofreu um comprometimento neural, condição também compartilhada pelos pássaros.

Apesar do enorme progresso nas últimas décadas, pouco sabemos sobre as bases genéticas desse processo. Quais genes são importantes? Existem aqueles exclusivamente envolvidos no aprendizado vocal ou estamos atrás de genes genéricos e a fala é apenas uma das muitas propriedades que emergem do cérebro? Ainda não temos as respostas, mas a partir de modelos animais como aves canoras e sua manipulação genética certamente as teremos.

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Tarciso Velho é neurocientista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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Que segredos estão escritos nas estrelas? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/06/24/que-segredos-estao-escritos-nas-estrelas/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/06/24/que-segredos-estao-escritos-nas-estrelas/#respond Thu, 24 Jun 2021 10:14:05 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/farinaldo-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=455 Por Murilo Bomfim

Na física de astropartículas, descobertas surgem do que não podemos ver

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Qualquer um que tenha contemplado um céu cheio de estrelas já matutou sobre esses pontos de luz. Talvez procure as Três Marias ou tente entender se determinada luzinha é estrela ou planeta. Mais raro é se perguntar a respeito da área escura onde as estrelas flutuam.

Hoje se sabe que essa área não é um imenso vazio. Tem matéria, a tal matéria escura. Um dos grandes desafios da ciência é desvendar a composição das partículas dessa matéria, tarefa dificultada justamente por essas partículas não emitirem luz. Ou seja: não conseguimos enxergá-las.

Entender mais sobre a matéria escura é abrir espaço para uma revolução na ciência. A física tem um modelo padrão para partículas elementares que explica o comportamento de todas as partículas… menos as partículas de matéria escura. Decifrar o mistério pode dar novas direções à ciência, sobretudo no campo da cosmologia, astronomia e astrofísica.

Poucos pesquisadores no mundo se debruçaram sobre a questão. Um deles foi o brasileiro Farinaldo Queiroz.

Quando o filho de Francisco Farinaldo Queiroz entrou no curso de física da Universidade Federal da Paraíba, em 2002, o mundo acadêmico lhe parecia uma matéria escura. “No início, achei que não daria conta de me formar. Quando vi uma disciplina de seis créditos, não entendia que era uma referência à carga horária. Achei que custaria seis reais por semestre, ou por aula, o que seria difícil de bancar”, lembra.

Ao longo da graduação, tudo foi ficando mais claro: ele entendeu o que eram créditos e aprendeu física de partículas quando conseguiu uma bolsa de iniciação na área. Logo tomou gosto pelo tema, aprofundado no mestrado e no doutorado –com direito a premiação da Sociedade Brasileira de Física como melhor tese em 2013.

À época, o cientista teve uma sacada que marcou o início de sua trajetória meteórica. Sabe-se que, para cada partícula, há uma antipartícula –com atributos semelhantes, como a massa, mas com características opostas, como a carga elétrica. Se partícula e antipartícula se chocam, o que ocorre aleatoriamente, há emissão de fótons (ou raios gama).

Em seus estudos, Queiroz entendeu que, se fosse possível captar um sinal destes fótons, haveria grandes chances de que as partículas de matéria escura fossem de um tipo específico, as chamadas WIMPs (Weakly Interacting Massive Particles, ou partícula massiva de baixa interação).

O físico conseguiu captar um raio, e o trabalho foi bem sucedido. Mas o resultado é apenas uma boa hipótese. Com possibilidades restritas de pesquisas no país, ele buscou um pós-doutorado na Universidade da Califórnia. Seu desejo por desvendar a matéria escura rendeu um financiamento da Nasa, o que acabou por lhe abrir portas para pesquisar e lecionar em universidades europeias.

Após observar o universo a partir de outros países, o físico foi selecionado para atuar como cientista em um local muito mais próximo de sua origem paraibana: a Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

As ambições, no entanto, seguem astronômicas. Hoje ele é um dos poucos no mundo que tentam desvendar as particularidades da matéria escura pelo método específico da análise de estrelas de nêutrons. Presentes em diversas galáxias, essas estrelas têm massa superior à do Sol, mas têm um raio muito menor.

Esta grande densidade gera um forte campo gravitacional, ou seja: tudo que passa por uma estrela de nêutron é engolido. Ocorre que, no ciclo de vida da estrela, sua temperatura reduz gradativamente. Caso se registre algum aumento, Queiroz e seus colegas apostam na entrada de partículas de matéria escura nas estrelas. Pela mensuração da temperatura, é possível inferir a natureza das partículas.

A ideia é animadora e desafiante. Sobretudo porque exige um trabalho multidisciplinar: Queiroz entende de física de partículas, mas precisa de quem entenda de astrofísica e de astronomia (para medir a temperatura das estrelas de nêutrons, por exemplo).

“Estamos competindo com outros grupos internacionais, vendo quem chega primeiro”, diz o cientista. “Se tivermos sucesso, você nos verá na cerimônia do prêmio Nobel.”

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Murilo Bomfim é jornalista.

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O exorcismo mais famoso da física https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/08/20/o-exorcismo-mais-famoso-da-fisica/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/08/20/o-exorcismo-mais-famoso-da-fisica/#respond Thu, 20 Aug 2020 15:51:11 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/rafael-chaves-catarina-bessell-demonio.web_-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=190 Por Rafael Chaves

A teoria da informação resolveu um paradoxo centenário

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Nada na natureza contraria a segunda lei da termodinâmica. A não ser uma criatura imaginada pelo físico James Maxwell em 1871. Por violar uma aparente lei básica da física, ela ficou conhecida como “o demônio de Maxwell”.

A segunda lei implica que, na ausência de um agente externo, o fluxo de calor sempre se dá do quente para o frio, e nunca vice-versa. Ao colocarmos uma cerveja morna na geladeira, ela cede calor para o ar frio e gela.

Vista de outra forma, essa lei implica que a entropia, a medida da desordem de um sistema, nunca diminui. Voltemos à cerveja. Quanto mais quente, mais velocidade e liberdade têm suas moléculas e, portanto, maior a desordem e a entropia. Por isso, num dia de verão uma cerveja gelada logo esquenta fora do gelo. É o universo em seu caminho irreversível de aumento da entropia. Para contrariar essa tendência, é preciso gastar energia. Para que a geladeira transfira calor de seu interior frio (ordenado) para o ambiente externo quente (desordenado) e assim possa gelar a cerveja, ela precisa da energia elétrica (um agente externo).

Voltemos ao demônio de Maxwell. Imagine-o no meio de uma caixa dividida em dois compartimentos conectados por uma pequena janela, a qual ele pode abrir sem despender energia. No compartimento esquerdo há gás frio, no direito, o mesmo gás a uma temperatura maior. Se abrirmos a janela que separa os gases, eles tenderiam a se misturar e atingir uma temperatura intermediária de equilíbrio. Ou seja, conforme a segunda lei, o gás quente cederia calor ao gás frio. O demônio, entretanto, pode reverter esta lógica.

Microscopicamente, segundo a teoria termodinâmica, um gás é composto de moléculas que se movem em diferentes velocidades. Quanto maior a velocidade média dessas moléculas, maior será a temperatura do gás. O demônio observa essas moléculas e, sempre que uma molécula mais rápida/quente do gás frio vem em sua direção, ele abre a janela, permitindo sua passagem para o gás quente. Em contrapartida, moléculas mais lentas/frias do gás quente têm sua passagem franqueada em direção ao gás frio. Assim, com o tempo, o gás inicialmente frio esfria ainda mais e o gás quente fica ainda mais quente. Ocorre um fluxo de calor do frio para o quente sem que se gaste nenhuma energia — uma clara violação da segunda lei!

A primeira peça desse quebra-cabeças foi encontrada por acaso em 1948, quando o matemático Claude Shannon se fez uma pergunta aparentemente sem conexão com o problema: o que é informação?

Pense em duas moedas: uma sempre cai como cara; a outra cai aleatoriamente, ora dá cara, ora coroa. Antes de jogar a primeira, já conhecemos o resultado, não aprendemos nada. Ao jogar a segunda, ao contrário, nossa incerteza é máxima, e ao observar o resultado aprendemos algo novo. A informação pode ser entendida tanto como a incerteza que temos antes de observar um evento ou como o conhecimento que obtemos após essa observação. A informação se relaciona à incerteza, e como incerteza se relaciona a desordem, temos aqui, ainda que forma rudimentar, a primeira conexão entre informação e entropia.

A segunda peça para a resolução do paradoxo foi encontrada em 1961, novamente por acaso, quando o físico Rolf Landauer percebeu que a informação não é apenas um conceito abstrato; para ser representada, ela precisa estar associada a um sistema físico. Assim, ela está sujeita às leis naturais, em particular à segunda lei da termodinâmica. Como consequência, para se apagar informação, seja uma letra no papel ou um bit em um disco rígido, alguma energia sempre será dissipada.

O demônio de Maxwell foi enfim exorcizado quando, em 1982, o físico Charles Bennett percebeu que o diabo tem que memorizar informação sobre as moléculas do gás. Após adquirir informação sobre uma molécula e permitir o fluxo de calor do frio para o quente, para continuar seu ciclo demoníaco a criatura terá que apagar sua memória. Pelo princípio de Landauer, esse processo de apagamento sempre dissipa uma quantidade de energia igual ou superior à energia gerada pela ação do demônio, salvaguardando assim a segunda lei.

Uma vez encontrada, a solução do paradoxo parece quase óbvia. Mas para tanto foi necessário que um novo campo de pesquisa, a teoria da informação, fosse concebido. Quando consideradas no mundo do muito pequeno, regido pela mecânica quântica, as interconexões entre informação e termodinâmica prometem feitos ainda maiores.

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Rafael Chaves é físico e pesquisador do Instituto Internacional de Física da UFRN

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Mais perto da internet quântica graças a uma brasileira https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/07/29/mais-perto-da-internet-quantica-gracas-a-uma-brasileira/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/07/29/mais-perto-da-internet-quantica-gracas-a-uma-brasileira/#respond Wed, 29 Jul 2020 10:30:29 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/Serrapilheira_SJ_samurai_f_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=172 Por Clarice Cudischevitch

Samuraí Brito quase desistiu, mas acabou na capa da “Physical Review Letters”

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A internet quântica ainda não existe, mas é questão de tempo. Por ora, graças a uma mulher, brasileira, nordestina, descobrimos que as fibras óticas que hoje suportam a internet não darão conta da comunicação quântica em escala global.

Essa mulher é Samuraí Brito, autora principal de um estudo pioneiro que foi capa de uma das publicações sobre física mais importantes do mundo, a “Physical Review Letters”. A descoberta, embora soe pouco animadora, é importante para entendermos a estrutura necessária para operacionalizar a internet quântica, aquela que garantirá segurança absoluta na troca de informações. Ao mostrar as propriedades estatísticas de uma rede que ainda nem existe, a física abriu caminhos para as pesquisas que a tornarão possível.

Desde criança ela sabia que queria ser cientista. Uma das cinco mulheres na turma de cinquenta alunos na graduação em física na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a jovem se desafiava para superar suas próprias expectativas e se destacar em meio aos “meninos superpoderosos”, como ela diz. “A gente cresce num ambiente tão machista que acha que os nomes de sucesso sempre serão dos homens, e acaba querendo ser igual a eles.”

Ao se casar e engravidar ainda nos primeiros anos da faculdade, sentiu os olhares de reprovação. “Alguns professores falaram que eu deveria largar a física, como se não pudesse ser mãe e fazer ciência ao mesmo tempo. Não ouvi de ninguém ‘não desista’. Sumi por dois anos e quando voltei não era mais ninguém ali.”

Após concluir a licenciatura, ela se inscreveu no processo seletivo para o mestrado. Foi reprovada. Como teve gente que passou com notas mais baixas que as dela, Brito procurou o coordenador para entender o que tinha acontecido. Ele respondeu que não tinha explicação. Ela então decidiu cursar o bacharelado e se propôs a tirar nota máxima em todas as disciplinas. Dito e feito.

Uma das matérias obrigatórias para ser admitida no mestrado era física quântica, o terror dos alunos. Sem os pré-requisitos para se matricular no curso, Brito pediu para seguir as aulas como ouvinte. Foi uma das melhores alunas da turma. “No final do semestre, um professor me perguntou: ‘Você é casada? Tem filhos? Não estou entendendo suas notas. Não esperava esse rendimento’.” Foi convidada a ingressar no mestrado por, agora sim, “ter o perfil”.

Única aluna da turma no mestrado a tirar A em todas as disciplinas, na seleção do doutorado ela passou em primeiro lugar e conseguiu a melhor bolsa do CNPq, fundamental para que pudesse se manter financeiramente. No início do doutorado, outra gravidez inesperada. Como a qualificação seria pouco depois do parto, ela fez as provas no puerpério. Passou.

Samuraí é um nome indígena e significa “fruta doce”. Seu avô paterno era descendente de índio, mas foi a avó, cigana, que sonhou que viria uma neta e que a criança teria esse nome. Sua mãe tinha certeza de que teria um menino, e na época não havia dinheiro para o ultrassom.

Ela estudou em escolas públicas a vida toda. No ensino médio, queria ingressar na escola técnica e, sem dinheiro para o curso preparatório, participava de aulões promovidos por vereadores num ginásio em Natal. “Tínhamos que anotar nossas dúvidas num papel, amassar numa bolinha e jogar no palco. Os professores pegavam algumas e respondiam”, conta. “Fora o preconceito machista, não tive nenhuma decepção na carreira. Nunca me arrependi de ter escolhido essa área.”

Cada vez mais interessada pela relação entre a informação quântica e a teoria das redes (em geral aplicada à física clássica), Brito chegou ao pós-doc no Instituto Internacional de Física, em Natal. Integra o grupo de Rafael Chaves, com quem publicou o paper que foi parar na capa da PRL.

No estudo, a pesquisadora propõe o primeiro modelo de redes para a internet quântica e, por meio de simulações numéricas, prova que para criá-la precisaremos de uma estrutura diferente da atual. Seu grupo, no entanto, não parou por aí. Eles já cogitam uma solução alternativa para operar a internet do futuro: satélites distribuidores de emaranhamento quântico. São cenas de um próximo paper.

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Clarice Cudischevitch é jornalista, coordenadora do blog Ciência Fundamental e gestora de comunicação no Instituto Serrapilheira.

Esta coluna foi produzida especialmente para a campanha #CientistaTrabalhando, que celebra o Dia Nacional da Ciência. Ao longo do mês de julho, colunistas cedem seus espaços para abordar temas relacionados ao processo científico, em textos escritos por convidados ou por eles próprios.

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A resposta certa a uma pergunta errada https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/07/15/a-resposta-certa-a-uma-pergunta-errada/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/07/15/a-resposta-certa-a-uma-pergunta-errada/#respond Wed, 15 Jul 2020 18:36:14 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/Serrapilheira_duvida_sj_final_web.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=165 Por Rafael Chaves

Ao contrário do que se pensa, nem toda informação pode ser copiada

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Quem nunca baixou um arquivo de texto, música ou filme? Quem nunca fotocopiou um livro ou uma apostila? O número de mensagens recebidas e reencaminhadas via Whatsapp também atesta que copiar informação parece corriqueiro e trivial. Só que não é bem assim. No mundo regido pela mecânica quântica, as coisas nem sempre são o que parecem. E o teorema da não-clonagem deixa patente que a informação contida em sistemas quânticos nem sempre pode ser reproduzida. Conhecer a descoberta desse teorema e suas implicações nos oferece um recorte muito peculiar de como a ciência evolui.

Antes de mais nada, é preciso falar de uma peça essencial da teoria quântica, o emaranhamento — uma correlação tão forte entre sistemas físicos que, mesmo que eles estejam muito distantes um do outro, os faz operar, num certo sentido, como um ente único e inseparável. Além de seu caráter crucial na teoria, o emaranhamento é um recurso para o processamento de informação, possibilitando, por exemplo, algoritmos quânticos exponencialmente mais rápidos do que qualquer computador, sejam os do presente ou do futuro.

Em 1982, o físico norte-americano Nick Herbert se serviu do emaranhamento quântico para propor um protocolo de comunicação, ao qual ele deu o nome de FLASH. Os cálculos eram simples e pareciam estar de acordo com as regras da mecânica quântica, ao menos as conhecidas até então. O protocolo FLASH, porém, permitia a comunicação instantânea entre duas partes, não importava a distância entre elas — uma clara violação da teoria da relatividade de Einstein, outra pedra fundamental de nosso entendimento da natureza. Herbert enviou seu artigo a um periódico bem conceituado, e ele foi analisado por dois especialistas. Um deles, o físico israelense Asher Peres, recomendou a publicação do paper dizendo que ele “estava obviamente errado”, mas a busca por esse erro “iria levar a um significante progresso no nosso entendimento da física”. O artigo foi publicado e, de fato, não demorou para que o erro fosse descoberto. Nem mesmo Peres poderia prever o avassalador progresso que se seguiria.

No protocolo FLASH, é vital que a informação contida em sistemas quânticos — sejam elétrons ou as partículas de luz chamadas fótons — possa ser copiada à vontade. Para a informação a que estamos acostumados, sequências de bits compostos de zeros e uns, isso procede. Na quântica, entretanto, isso deixa de valer, como demonstrou o teorema da não-clonagem descoberto logo depois de Herbert publicar seu artigo. Um bit quântico, o qubit, pode estar em uma superposição de estados, como se pudesse ser zero e um ao mesmo tempo, e na verdade não ser nem um nem outro. A superposição somada a outras propriedades básicas da teoria quântica evidencia que apenas os qubits “clássicos”, o zero e o um podem ser copiados, ao contrário de todos os outros infinitos estados intermediários entre eles.

Além de seu aspecto primordial, mostrando como propriedades aparentemente óbvias deixam de valer na quântica, a não-clonagem foi essencial no desenvolvimento da área da informação quântica que busca compreender as vantagens e limitações de utilizar sistemas e algoritmos quânticos para processar informação. No contexto da comunicação, essa aplicação é quase que evidente e está no cerne da criptografia quântica, cuja segurança é garantida pelas próprias leis da física. Como um hacker pode vir a roubar uma informação que não pode ser copiada? A não-clonagem também têm consequências para a física de objetos muito grandes e massivos – como quando explica o que pode acontecer com a informação na fronteira de buracos negros.

A prova do teorema da não-clonagem é simples, e talvez seja o artigo mais curto de física teórica já publicado na prestigiosa revista “Nature”. O teorema poderia ter sido descoberto décadas antes, mas foi preciso que alguém violasse a teoria da relatividade para ele ser notado. Nunca se sabe o que uma pergunta fundamental, ainda que fadada ao fracasso, poderá provocar. E é por isso que se deve continuar a fazê-las.

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Esta coluna foi produzida especialmente para a campanha #CientistaTrabalhando, que celebra o Dia Nacional da Ciência. Ao longo do mês de julho, colunistas cedem seus espaços para abordar temas relacionados ao processo científico, em textos escritos por convidados ou por eles próprios.

Rafael Chaves é físico e pesquisador do Instituto Internacional de Física da UFRN

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Estará a Lua no céu quando ninguém está olhando? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/07/01/estara-a-lua-no-ceu-quando-ninguem-esta-olhando/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/07/01/estara-a-lua-no-ceu-quando-ninguem-esta-olhando/#respond Wed, 01 Jul 2020 15:21:42 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/ilustra-texto-rafael-chaves.-catarina-bessell.web_.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=157 Por Rafael Chaves

A mecânica quântica parece contradizer algumas de nossas ideias mais fundamentais

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A teoria quântica, nascida no começo do século passado para explicar o comportamento da natureza em suas escalas mais ínfimas, passou por todos os testes experimentais a que foi imposta, sendo considerada a mais completa e bem-sucedida teoria física. Entretanto, algumas das suas predições são bastante contraintuitivas e até mesmo paradoxais.

Uma destas predições é o famoso princípio da incerteza de Heisenberg. Formulado pelo físico alemão em 1927, tal enunciado levanta restrições para que se conheçam simultaneamente as propriedades de um sistema físico. Se determinamos a posição de uma partícula, ficamos impossibilitados de aferir sua velocidade. O conceito de que um sistema físico apresenta propriedades bem delineadas e que o objetivo de um experimento é revelá-las deixa, pois, de fazer sentido.

Essa nova imagem da realidade, “borrada”, era algo que mesmo alguns dos fundadores da teoria quântica não podiam aceitar. Ficou famosa uma tirada de Einstein, quando o colega Pascual Jordan lhe disse: “Observações não somente perturbam o que vai ser medido, elas o produzem […] Nós compelimos o elétron a assumir uma posição bem definida […] Nós próprios somos os responsáveis por produzir os resultados das medições que observamos”. Einstein respondeu com a pergunta: “Você realmente acredita que a Lua só existe quando olhamos para ela?”.

Procurando fundamentar a insustentabilidade desta visão na qual o observador assume o protagonismo e a realidade física deixa de existir, Einstein e mais dois colaboradores, Podolsky e Rosen, argumentaram que, apesar de correta, a teoria quântica seria incompleta. Em 1935, baseados em três hipóteses aparentemente naturais, eles demonstraram o que ficou conhecido como “Paradoxo EPR”. A primeira hipótese é a do realismo  –a realidade física existe, a Lua está lá em cima independentemente de alguém observá-la. A segunda é a do livre-arbítrio –o sujeito pode escolher qual propriedade de um sistema físico observar. Finalmente, a hipótese da localidade –sistemas físicos a grandes distâncias, por exemplo, em lados opostos do universo, não podem se influenciar mutuamente. Com estas hipóteses na ponta do lápis, o trio EPR provou que existiriam elementos de realidade que não eram descritos pela quântica e que, portanto, ela não poderia ser a teoria final para a descrição da natureza.

Neste ponto você pode estar se indagando se isto tudo não parece mais metafísica do que física. E não seria o único. Por muito tempo a maioria dos físicos não se importou com esta aparente incompletude, numa atitude que com bom humor poderia ser chamada de “cale a boca e calcule”, já que a quântica permitia estimar com grande precisão tudo que era observado experimentalmente.

A situação começou a mudar em 1964, quando o irlandês John Bell provou que as hipóteses que o trio EPR considerava naturais implicavam limites – conhecidos como “desigualdades de Bell” – nas correlações que podem ser observadas em um experimento realizado por dois observadores distantes. A mecânica quântica, entretanto, não respeita esses limites. Para salvar a imagem do mundo que tanto agradava a Einstein, a teoria quântica não só teria que ser incompleta como também precisaria ser incorreta.

Pulando cinco décadas de história, em 2015, três diferentes experimentos finalmente comprovaram, de maneira irrefutável, o teorema de Bell. Assim, ficou atestado que as três hipóteses do trio EPR não podem coexistir: ao menos uma delas – realismo, livre-arbítrio ou localidade – é incompatível com a forma como a natureza funciona, goste Einstein ou não. Ou seja, se salvaguardamos a ideia do livre-arbítrio e da localidade (sem as quais a própria ideia de uma ciência objetiva é posta à prova), necessariamente temos que abandonar o conceito de realismo.

Talvez a Lua de fato não exista quando ninguém a está olhando…

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Rafael Chaves é físico e pesquisador do Instituto Internacional de Física da UFRN

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Um mundo pequeno https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/06/03/um-mundo-pequeno/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/06/03/um-mundo-pequeno/#respond Wed, 03 Jun 2020 15:42:57 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/Serrapilheira_rede_final_web.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=136 Por Rafael Chaves

Você pode ser muito mais próximo do Einstein ou da Beyoncé do que imagina

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Certamente você já ouviu falar da teoria dos “seis graus de separação”– bastam seis laços de amizade para que duas pessoas possam se conectar. Entre você e o presidente de um poderoso país ou um surfista na Austrália existem no máximo cinco intermediários. Dados os 7 bilhões de habitantes humanos do planeta e as distâncias geográficas entre eles, que o mundo seja tão “pequeno” parece uma ideia absurda. Absurda, porém correta.

O escritor húngaro Frigyes Karinthy foi o primeiro a aventar tal hipótese, num conto publicado na década de 1920. Até meados da década de 60, a ideia deste mundo estreito não passava de ficção, uma lenda urbana. Isso mudou em 1967, quando o psicólogo americano Stanley Milgram executou um elaborado experimento de envio de cartas entre desconhecidos e descobriu que a distância média entre as pessoas era próxima dos seis graus de separação fantasiados por Karinthy. E, para surpresa geral, essa propriedade passou a ser identificada nas mais variadas redes: de computadores, de interconexões entre neurônios, de estradas e aeroportos e até mesmo redes biológicas. É um fenômeno que parece estar em quase todas as redes e, como estas são onipresentes na natureza, podemos dizer que o mundo pequeno está em praticamente todo lugar.

Similaridades entre diferentes sistemas são o sonho de físicos e matemáticos, que enxergam em um padrão aparentemente universal a chave para desvendar os mecanismos fundamentais sobre os quais a natureza opera. Existiria uma regra universal para descrever sistemas tão diversos?

Em 1959, antes do experimento de Milgram, os matemáticos húngaros Paul Erdős e Alfréd Rényi já haviam proposto um modelo universal de redes que incorporava essa propriedade do mundo pequeno. Naquele modelo, todos os nodos da rede –fossem pessoas, neurônios, aeroportos etc– eram igualitários, todos tinham a mesma chance de se conectar entre si. Dado este caráter intrinsecamente probabilístico, as chamadas “redes aleatórias” nos mostraram que a separação entre dois nodos quaisquer era proporcional ao logaritmo do número total de nodos da rede. O logaritmo era a chave por detrás do mundo pequeno, já que ele transforma números grandes em pequenos. Por exemplo, o logaritmo de 1 milhão nos dá exatamente o mítico grau seis. Mesmo que o mundo tenha bilhões de pessoas, o logaritmo garante que a separação entre elas ainda assim será muito acanhada.

Mas uma rede social pode de fato ser descrita como aleatória? Caso fosse, a chance de você ser amigo de um monge no Tibet ou de um colega do maternal é a mesma. A possibilidade de dois de seus amigos serem amigos entre si é extremamente pequena, desprezível até. Além disso, neste modelo todos teriam basicamente o mesmo número de amigos  –blogueiros, celebridades ou você (se é que você não é famoso). Claramente, redes sociais e outros tipos de redes não operam de modo tão aleatório.

De forma a reproduzir da maneira mais fidedigna todas essas nuances, dois outros cientistas, também húngaros, Albert-László Barabási e Réka Albert, propuseram em 1999 o chamado “modelo de redes livre de escala”, que desde então tem encontrado as mais variadas aplicações, desde na segurança de redes de computadores ao estudo de redes celulares e biológicas, e mesmo na otimização de estratégias de negócios e campanhas publicitárias. Mais recentemente, no meu grupo de pesquisa, utilizamos esse modelo para entender a “internet quântica”, uma rede na qual a troca de informações é fundamentalmente segura e mais eficiente. Por detrás de comportamentos tão diversos e complexos, muitas vezes temos regras universais e extremamente simples.

O modelo, aplicado à rede de contágio de transmissão de uma doença, permite entender como um vírus originário no outro lado do mundo chegou ao Brasil na velocidade a que assistimos. Bastaram apenas seis apertos de mão. A única forma de parar a contaminação neste momento é quebrar os links da rede.

Se puder, fique em casa.

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Rafael Chaves é físico e pesquisador do Instituto Internacional de Física da UFRN

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O sorvete, a criminalidade e a Covid-19 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/04/23/o-sorvete-a-criminalidade-e-a-covid-19/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/04/23/o-sorvete-a-criminalidade-e-a-covid-19/#respond Thu, 23 Apr 2020 18:59:05 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/ilustra.-texto-rafael-chaves.-Valentina-Fraiz.web_.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=101 Por Rafael Chaves

Inferir relações de causa e efeito é uma tarefa central mas dificílima em ciência

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Uma busca rápida na internet por “correlações espúrias” trará resultados surpreendentes. O consumo de sorvete e o número de crimes violentos, por exemplo, têm uma correlação quase perfeita ao longo das estações do ano. Seria a extinção do sorvete a chave para acabar com a criminalidade?

O problema desta solução é confundir correlação com causalidade. A origem desta correspondência não é uma relação de causa e efeito, mas sim uma causa comum. Neste caso, a temperatura. Em dias ensolarados, não só mais pessoas saem às ruas – portanto, estão mais sujeitas a cometer e sofrer crimes –, como também maior é vontade de se refrescar. Este fato, apesar de anedótico, traz à tona um problema central em ciência: como estimar relações de causa e efeito a partir de dados observados? Na pandemia atual de Covid-19, é urgente descobrir se um determinado tratamento é a causa da melhora da doença.

Vamos supor que um doente tomou certo remédio e melhorou. Pode parecer promissor, mas devemos ser cautelosos. Talvez o paciente fosse melhorar independentemente do remédio. Para evitar falsas conclusões, devemos realizar um experimento controlado – um grupo de pessoas recebe a droga, e ao outro, o grupo de controle, não se ministra o remédio em questão, ou então se oferece um placebo. Caso os dois grupos mostrem resultados similares quanto à melhora, teremos um indicativo claro da não eficácia do tratamento, certo?

Infelizmente, mesmo em experimentos controlados ainda não podemos ter tanta certeza. Por exemplo, pessoas com mais saúde, portanto com maior chance prévia de recuperação, são menos inclinadas para testar uma droga experimental: elas poderiam melhorar de qualquer modo, com ou sem o remédio. Ao contrário, pessoas em condições extremas, com maior potencial de não resistir à doença, serão mais suscetíveis a aceitar o tratamento. Mesmo que o remédio fosse eficaz, porém, essa eficácia ficaria mascarada pela administração a pessoas cujas chances de melhora já são muito baixas.

Para minimizar a incerteza do efeito causal de um tratamento, há o chamado experimento controlado aleatório. Tal como antes, temos dois grupos, mas cujos membros são escolhidos aleatoriamente, de modo que cada um seja uma amostra fiel da população e todas as suas possíveis pré-condições (social e física, idade, sexo, comorbidades etc). Se sob estas condições o grupo que recebe o tratamento mostrar uma melhora significativa em comparação com o grupo de controle, teremos uma indicação clara da eficácia do remédio. Estes experimentos são considerados o “padrão de ouro” no estudo de relações causais, mas ainda assim estão sujeitos a incertezas e dificuldades. Por exemplo, o efeito placebo nos mostra que mesmo pacientes no grupo de controle (sem receber tratamento) podem ter melhoras induzidas pelo simples fato de imaginarem estarem sendo tratados. Questões éticas também se aplicam. Se acreditamos que uma droga tem o potencial de cura, como podemos privar o grupo de controle de suas benesses?

Apesar de todas estas dificuldades, este problema ainda é um dos mais simples quando falamos de causa e efeito. O que dizer das relações de causalidade em complexas redes biológicas ou sociais? Em meados da década de 90, uma teoria matemática da causalidade começou a ser desenvolvida, nos mostrando como e sob quais condições podemos estimar relações de causa e efeito, e desde então ela tem encontrado aplicações nas mais variadas áreas do conhecimento. Mas, apesar de todo seu sucesso, essa teoria também tem os seus limites.

Na física quântica, devido ao fenômeno do emaranhamento, a teoria clássica da causalidade falha ao tentar distinguir as relações de causa e efeito genuínas das correlações “espúrias”. Pesquisadores ao redor do mundo (entre os quais me incluo) ainda quebram a cabeça tentando descobrir como, e se de fato é possível, descrever de forma causal o mundo quântico.

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Rafael Chaves é físico e pesquisador do Instituto Internacional de Física da UFRN

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