Ciência fundamental https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br O que pensam os jovens cientistas no Brasil? Thu, 02 Dec 2021 15:29:05 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Ciência não é feita por indivíduos isolados https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/11/17/ciencia-nao-e-feita-por-individuos-isolados/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/11/17/ciencia-nao-e-feita-por-individuos-isolados/#respond Wed, 17 Nov 2021 10:13:28 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/serrapilheira_individuos_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=591 Por Kleber Neves

Como organizar o modo de fazer pesquisa?

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Diz a história que o físico Richard Feyman adotava uma estratégia para sua pesquisa: enumerava uma lista de problemas importantes e não resolvidos, e toda vez que ouvia a respeito de um novo método ou achado, verificava se aquela novidade colaborava para o avanço de um desses tópicos.

Só que ele era físico teórico, e seguir essa estratégia em biologia experimental é mais difícil. Ainda que um resultado recente indique um caminho novo, ou que uma técnica nova pareça útil, os equipamentos são caros e adquirir competência nas técnicas, estabelecer protocolos e aprender os macetes leva meses ou anos de prática.

Disso decorre uma especialização maior, que estreita o leque de técnicas e modelos disponíveis para cada cientista experimental. Como consequência, as linhas de pesquisa não são tão orientadas por uma pergunta fundamental quanto poderiam, mas sim pelas técnicas e modelos já disponíveis, que não são necessariamente os melhores para responder a pergunta. Guiar-se exclusivamente pela pergunta exige uma variedade de abordagens maior do que cabe em um único grupo de pesquisa.

Nessa mesma lógica, é difícil para um laboratório típico descrever sozinho algum achado científico por completo. Antes que a comunidade científica tome como robustos os achados iniciais, eles devem ser confirmados com outras técnicas, modelos, populações e abordagens que, de novo, vão além do que um laboratório consegue acomodar. De um laboratório que testa tratamentos em linhagens celulares, não se espera que ele também confirme os achados em modelos animais ou organize ensaios clínicos com humanos  –esse é o tema de um recente artigo que publicamos na revista Nature.

Se para responder a grandes perguntas ou obter resultados mais consistentes é preciso um esforço coletivo que ultrapassa os limites de um laboratório isolado, então precisamos de maneiras de facilitar a articulação de vários laboratórios em torno de um objetivo compartilhado. A biologia é cada vez mais colaborativa, mas essas colaborações tendem a ser pontuais, não se escoram num plano explícito e mais amplo que orquestre as atividades.

Ter um plano mais abrangente entre laboratórios requer a adoção de outros modelos de governança que não só podem aumentar a burocracia, como vão exigir um equilíbrio entre, de um lado, a missão comum, e, de outro, a autonomia dos grupos de pesquisa individuais. E essa é uma questão delicada: uma das razões que levam as pessoas a ser cientistas acadêmicas é exatamente a liberdade de conduzir uma linha de pesquisa própria.

De qualquer modo, “ciência grande” é um jeito cada vez mais comum de organizar a pesquisa. Exemplos como o Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN)  ou o Projeto Genoma Humano mostram que é possível executar projetos científicos de grande porte, coordenando vários grupos de pesquisa em torno de objetivos comuns. A própria Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade, da qual faço parte, é um exemplo desse tipo de projeto, assim como outras iniciativas recentes —Many Primates, Many Babies, Psychological Science Accelerator— focadas em realizar experimentos multicêntricos.

Um modelo particular é o da Defense Advanced Research Projects Agency, a DARPA, dos EUA, conhecida pelas apostas arriscadas que originaram grandes avanços como a Internet e o GPS, que serve de inspiração a várias outras agências norte-americanas.  A DARPA conta com diretores de programa, especialistas no tema da pesquisa, que não fazem a pesquisa em si: têm um papel executivo, coordenando e distribuindo fundos para pesquisa feita externamente, em diversas instituições.

É importante ressaltar que ciência “pequena”, financiada a partir de grupos de pesquisa individuais, e ciência “grande”, com projetos coordenados entre vários grupos,  não são os únicos formatos possíveis e nem são exclusivos. Pelo contrário, a ciência como um todo se beneficia de uma variedade de modelos de fomento e organização. Uma questão importante e não respondida na “ciência do financiamento da ciência” é em que casos e para quais perguntas científicas esses modelos “grandes” funcionam na biologia.

Se quisermos encontrar maneiras melhores de organizar a ciência, precisamos de dados sobre esses diferentes modelos. Ainda que uma iniciativa num novo formato de fomento venha a falhar, aprenderemos com isso talvez até mais do que se tivesse dado certo. Alguma experimentação institucional já existe nesse sentido: recentemente, o Wellcome Trust lançou o Wellcome Leap, cuja objetivo é ser a “DARPA da saúde”. Cada programa é coordenado por uma pessoa que recruta os esforços de uma dezena de laboratórios pelo mundo. Os ambiciosos desafios desses programas passam por psiquiatria personalizada, desenvolvimento de órgãos em laboratório e uma plataforma para antecipar a transição de células para um estado cancerígeno.

Ciência não é feita por indivíduos isolados. Uma forma de organizar a produção de conhecimento científico que reconheça isso pode contribuir não só para lidar com problemas de reprodutibilidade, mas também para que sejamos realmente guiados pelas grandes perguntas e problemas, e para que a ciência responda a mais perguntas que precisam ser respondidas em vez de simplesmente se limitar a perguntas que conseguimos responder.

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Kleber Neves é biomédico, neurocientista e metacientista. Faz parte da equipe coordenadora da Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade, na UFRJ.

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Levaram nosso meteorito de Marte https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/11/09/levaram-nosso-meteorito-de-marte/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/11/09/levaram-nosso-meteorito-de-marte/#respond Tue, 09 Nov 2021 14:54:44 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/meteorito-alienígena-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=581 Por Diana Andrade

Por que precisamos proteger os fragmentos extraterrestres que caem por aqui?

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Recentemente, a comunidade meteorítica brasileira foi surpreendida com a classificação de um novo meteorito nacional. O fragmento de 4,5 quilogramas, batizado com o nome da cidade onde foi encontrado, Socorro, no interior de Pernambuco, entrou oficialmente para o Meteoritical Bulletin (um banco de dados com informações sobre os novos meteoritos do mundo) no dia 31 de outubro de 2021. Segundo a publicação, a rocha foi encontrada em 2019 por um lavrador que não quis se identificar, e que a princípio não desconfiou da origem extraterrestre de seu achado. Em agosto de 2020, porém, por ocasião da queda de um outro meteorito na cidade também pernambucana de Santa Filomena, ele tomou conhecimento da importância destes fragmentos espaciais e decidiu enviar a peça a um parente que mora em Miami, nos Estados Unidos. Lá, ela foi comprada pelo americano Michael Farmer, um dos maiores comerciantes de meteoritos do mundo. Farmer enviou um pedaço de vinte gramas ao pesquisador Carl Agee, da Universidade do Novo México, para análise e classificação. Após os resultados, ele revendeu sua aquisição a um colecionador anônimo por 800 mil dólares.

Meteoritos são fragmentos de corpos celestes que chegam naturalmente até nós. Por vezes chamados de “sonda espacial do homem pobre”, uma vez que caem de graça no nosso “quintal”,  a maioria deles vem do Cinturão Principal de Asteroides, uma  larga faixa entre Marte e Júpiter. Portadores de informações fundamentais sobre a formação de nosso sistema solar, eles podem nos dar pistas sobre as condições físico-químicas na época do nascimento do nosso sistema planetário, assim como sobre sua evolução. Alguns, mais raros, podem ser provenientes da Lua, de Marte e até mesmo de restos de cometas, a respeito dos quais nos trazem dados diretos. São objetos que vagam pelo nosso sistema planetário, mas que devido a perturbações podem mudar de rota e acabam por colidir com a Terra.

O Socorro é um fragmento proveniente de Marte que a Universidade do Novo México classificou como um shergottito marciano, ou seja, uma amostra daquele planeta. Em todo o mundo são conhecidos apenas 263 meteoritos desse tipo, o que faz dele uma raridade. Não há no Brasil nenhum outro semelhante, seja para estudo científico, seja para ser exposto em universidades ou museus. Ter uma peça assim equivale a ter um objeto capturado por uma sonda enviada a Marte. Desnecessário dizer que sua saída do país representou uma perda do tamanho de um bólido.

Infelizmente, até o momento não existe lei que impeça a saída desses turistas espaciais do território nacional, e portanto não há como recuperar tesouro tão raro e vultoso. Não é a primeira vez que meteoritos brasileiros são enviados para fora antes que nossos cientistas possam estudá-los e antes que instituições brasileiras possam decidir se querem ficar com eles.

A comercialização do Socorro é mais um episódio que reforça a necessidade da criação de leis que protejam esse patrimônio de enorme importância científica para a comunidade acadêmica. Com o intuito de apresentar uma solução para o problema, criou-se uma comissão, formada por especialistas de diferentes instituições brasileiras, que busca apresentar a nossos governantes um projeto de lei a ser votado com urgência.

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Diana Andrade é pesquisadora no Laboratório de Análise de Material Espacial (LAMEsp) do Observatório do Valongo/ UFRJ.

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O Nobel que urge e que arde https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/13/o-nobel-que-urge-e-que-arde/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/13/o-nobel-que-urge-e-que-arde/#respond Wed, 13 Oct 2021 14:21:38 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/serrapilheira_pimenta_horizontal-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=553 Por Marília Zaluar P. Guimarães

A experiência de trabalhar com um (futuro) vencedor do prêmio

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“Então pedi a meus alunos e pós-docs que provassem os extratos das diferentes pimentas que produzimos, e constatamos que os que mais ardiam provocavam uma corrente maior no VR1.” Em fevereiro de 1998, aluna de doutorado do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da UFRJ, eu estava em Buenos Aires para um curso de duas semanas de biologia molecular aplicada à neurociência. Ouvi essa frase de David Julius, um dos ganhadores do prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia anunciado no último dia 4 de outubro. Ele nos contava como tinha sido o trabalho que descrevia a descoberta do receptor TRPV1 (então nomeado VR1), publicado no ano anterior. E então o professor abriu um sorriso largo, meio travesso, que arrancou gargalhadas da turma. Perplexa pela complexidade da pesquisa, que acompanhava com dificuldade, pude apreciar seu humor fino e irônico, com o qual mais tarde me familiarizaria.

Naquele dia pensei que queria fazer meu pós-doutorado com o dr. Julius, a quem nos referíamos carinhosamente por DJ. Começamos a conversar sobre essa possibilidade e acabei me candidatando a uma bolsa Pew Latin American Fellows. Em setembro de 2000 eu chegava à nada-ensolarada-apesar-de-ser-na-Califórnia São Francisco, onde me juntei a um time pequeno de pós-docs e alunos de doutorado.

No trabalho seminal sobre o TRPV1, Julius e colaboradores mostraram pela primeira vez como um sinal potencialmente doloroso pode se converter em uma mudança elétrica dos neurônios sensitivos. Já se sabia que substâncias pungentes como a capsaicina, presente em pimentas como a malagueta, excitavam esses neurônios. Mas como? Eles conseguiram clonar, ou obter múltiplas cópias de um gene que chamaram de VR1, responsável por codificar uma proteína capaz de conferir às células a capacidade de responder à capsaicina (evidentemente, a células desprovidas de tal habilidade). Aí viram que se tratava de uma proteína da superfície dos neurônios que permite a passagem de eletricidade na presença de determinados estímulos. Ou seja, ela traduz o sinal doloroso para a língua que os neurônios entendem muito bem.

Continuando a estudar esse clone, os pesquisadores constataram que ele também promovia respostas a temperaturas acima de 43 graus centígrados e que era modulado positivamente por prótons, ou soluções ácidas. Hoje sabemos que múltiplas vias de sinalização e moléculas exógenas, como por exemplo toxinas de aracnídeos, agem sobre essa proteína. Esses achados foram muito importantes para compreender a fisiologia da dor e têm potencialmente um impacto grande na busca de novos medicamentos analgésicos, uma vez que o TRPV1 é central em vários tipos de dor. Além da dor aguda, ele participa da dor inflamatória e da neuropática, essa última de difícil controle com os fármacos correntes.

Mas voltando ao trabalho de 1997. Com uma das células que eles fizeram produzir o VR1/TRPV1, registraram as variações elétricas induzidas pelos extratos de pimentas. Viram que quanto mais picante a pimenta, mais capsaicina, mais corrente elétrica. Eles precisavam mostrar essa atividade dos extratos nesse artigo, com as fotos das pimentas correspondentes? Provavelmente não, a atividade da capsaicina pura ou moléculas correlatas seria mais do que convincente. Mas foi um experimento de uma elegância marcante, traço presente na maioria das publicações do grupo liderado por Julius desde então.

Julius é reconhecido pelo cuidado com a escrita de seus artigos, sempre relatando os resultados de maneira muito clara e direta, sem recorrer a subterfúgios como falácias de lógica ou “torturas” da estatística. E ele prima por publicar poucos artigos por ano, dois ou três, mas sempre de alto impacto. Além disso, ao escolher as perguntas científicas, ele é de uma clareza de foco admirável, sobretudo aos olhos de uma pessoa dispersiva como eu. Por todas essas características profissionais e pessoais, e pelo conjunto de sua obra desde 1997, não foi surpresa quando pipocaram inúmeras mensagens informando que ele tinha sido laureado com o Nobel no dia 5. Já sabíamos que esse dia viria, e aliás esse Nobel urgia. E arde meu orgulho de ter trabalhado com esse pesquisador admirável.

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Marília Zaluar P. Guimarães é professora associada do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ e pesquisadora colaboradora do IDOR.

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O controle da malária pode estar no cardápio de um protozoário https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/06/o-controle-da-malaria-pode-estar-no-cardapio-de-um-protozoario/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/06/o-controle-da-malaria-pode-estar-no-cardapio-de-um-protozoario/#respond Wed, 06 Oct 2021 10:09:29 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/serrapilheira_malaria_blog_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=541 Por Fabio Gomes

Como o Plasmodium monta um exército especializado na transmissão da doença

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Há décadas, uma questão vem intrigando os pesquisadores da malária: como o Plasmodium, o protozoário causador da doença, coordena sua multiplicação e monta um exército de células altamente especializadas na infecção dos mosquitos que a transmitem? Na pesquisa sobre esse fenômeno pode estar a chave para o combate a esse mal que mata mais de 400 mil pessoas por ano no planeta.

Os principais sintomas da doença começam dias depois da picada do mosquito, quando o Plasmodium infecta e rompe nossas hemácias, as células sanguíneas responsáveis pelo transporte de gases. Na verdade, o que induz a febre típica da malária é esse rompimento de células, que ocorre em “ciclos de replicação” – daí a febre periódica da pessoa infectada. Ao longo desse ciclo, enquanto a maior parte dos parasitos se multiplicam em novas células que infectarão novas hemácias, outros se diferenciam em gametócitos, forma do invasor especializada na infecção de mosquitos. Os mecanismos desse processo não são bem compreendidos, mas alguns estudos sugerem que o apetite desses organismos é parte da equação.

Como outros parasitos, o Plasmodium utiliza os nutrientes do corpo do seu hospedeiro. As hemácias que eles infectam estão repletas de hemoglobina, proteína que se liga às moléculas de oxigênio e as transporta por nosso corpo. A hemoglobina presente na célula infectada é uma importante fonte de alimento para ele, mas não oferece um cardápio completo. Assim, ele vai buscar outros alimentos fora da célula infectada, incluindo outras fontes de aminoácidos, lipídeos e açúcares.

A glicose, o principal açúcar usado como fonte de energia, é um desses nutrientes “capturados”, e ao que tudo indica é peça central da coordenação da multiplicação do invasor. Em uma pesquisa com macacos infectados, pesquisadores constataram que uma dieta com teor reduzido de açúcares (hipocalórica) levava a uma redução das taxas de proliferação do Plasmodium. No entanto, outros nutrientes também participam da coordenação do ciclo de vida desse protozoário. Em um estudo recente, cientistas de Harvard e da Universidade de Glasgow apontaram para o papel da lisofosfatidilcolina durante a produção dos gametócitos. Importante componente de nossas membranas e do sangue, esse lipídeo também atua na regulação de nossa resposta imune. Ao longo da progressão da malária, ocorre uma redução dos níveis de lisofosfatidilcolina e de outros lipídios são consumidos à medida que a infecção progride. O usurpador detecta essa redução e, quando a lisofosfatidilcolina atinge um nível muito baixo, surgem as formas capazes de infectar os mosquitos.

Ao que tudo indica, o parasito identifica quando ele já retirou muitos recursos do hospedeiro e precisa migrar para um novo. Ainda faltam, porém, muitas peças nesse quebra-cabeça. Por exemplo, parece haver diferenças na dinâmica de formação de gametócitos entre as diferentes espécies de Plasmodium. Também existe uma sofisticada coordenação genética desse processo, e os cientistas ainda não entendem perfeitamente como o apetite dessas espécies coordena essa mecânica. Por outro lado, essas pistas incentivam novos estudos para refinar esse entendimento.

A administração de fármacos capazes de agir e matar os gametócitos é essencial para o controle da malária. No entanto, as principais drogas hoje disponíveis podem causar a destruição de hemácias em pessoas com deficiência da enzima G6PD, doença que afeta cerca de 400 milhões de pessoas no mundo. A necessidade do uso cuidadoso dessas drogas, incluindo a implementação de testes para triagem dessa deficiência, acaba limitando a administração do medicamento. Desvendar os mecanismos associados ao desenvolvimento da infecção e à formação de gametócitos pode ser um passo fundamental para identificar novos fármacos que possam bloquear esse processo e a infecção de novos mosquitos.

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Fabio Gomes é professor do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da UFRJ e membro do Laboratório de Ultraestrutura Celular Hertha Meyer. Twitter: @plasmovet

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Quantas galáxias existem no universo? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/07/03/quantas-galaxias-existem-no-universo/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/07/03/quantas-galaxias-existem-no-universo/#respond Sat, 03 Jul 2021 10:22:22 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/galáxias-em-um-universo-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=465 Por Thiago Signorini Gonçalves

O desafio de fazer um censo do cosmo

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O artigo abaixo responde à pergunta feita por Penélope Alves, 6 anos, baiana, que quer ser astrônoma, para a série “Perguntas de criança, respostas da ciência”.

A pergunta pode parecer trivial, mas a resposta é complexa, senão desconhecida. Estimativas variam entre 200 bilhões e 2 trilhões, e esse valor assim alto já justifica nossa ignorância.

Para começar, quantas galáxias já foram catalogadas? Como determinar quantas são, se há centenas de projetos astronômicos, cada um mapeando uma parte do céu? O Levantamento de Energia Escura, um dos maiores, uma colaboração internacional com participação brasileira, recentemente anunciou um total de 226 milhões.

Muitas vezes, porém, elas não passam de borrões em uma imagem. Um algoritmo de computador sugere que seja uma galáxia, mas a identificação dos astros –sobretudo os menos brilhantes– é imprecisa. O que para um telescópio é uma galáxia, para outro pode ser uma estrela.

Levando tudo isso em conta, somando os esforços dos diferentes projetos e as possíveis duplicatas, podemos supor que temos um catálogo de alguns bilhões de galáxias catalogadas. Um número muito distante do total de talvez mais de um trilhão. Como chegamos então a este valor?

Nesse ponto, estamos sujeitos a estimativas estatísticas. Imaginemos uma campanha presidencial: não podemos perguntar a todos os eleitores do país em quem eles pretendem votar, e as pesquisas dependem de uma amostra de alguns milhares para prever como dezenas de milhões se comportarão nas urnas.

A definição dessa amostra é fundamental. O voto de eleitores do Sudeste do Brasil provavelmente será distinto daqueles do Nordeste: não se pode fazer a pesquisa em um único estado e projetar o resultado para o país todo. Da mesma forma, não podemos contar as galáxias em uma região do céu e supor que aquele número se aplique a todo o universo.

Como, então, fazer um censo do universo? Um dos grandes problemas é que as galáxias mais numerosas são as menos luminosas, de difícil detecção, portanto. Quanto mais poderoso o telescópio, melhor nossa capacidade de observar uma galáxia — mas qual é o limite de sensibilidade dos observatórios? Quais são as menores galáxias do universo? Para responder, devemos conhecer intrinsicamente o processo de formação desses sistemas, o que em muitos aspectos ainda é um mistério.

A Segue 2, distante de nós cerca de 100 mil anos-luz, ilustra essa diversidade. Ela brilha com intensidade de apenas oitocentas vezes a luminosidade do Sol; em comparação, a Via Láctea tem o brilho de 100 bilhões de estrelas. No entanto, a massa total de Segue 2 é 500 mil vezes a massa do Sol, o que, combinado com o seu brilho fraco, indica a presença de enorme quantidade de matéria escura, que não emite luz. Como essa galáxia se formou? Quantas iguais a ela existem? São incógnitas que afetam as estimativas do total de galáxias no cosmo.

A questão fica mais complexa se pensamos em distâncias consideradas grandes mesmo para os astrônomos. Conseguimos ver vários tipos de galáxias vizinhas, como Andrômeda ou as Nuvens de Magalhães, mas a bilhões de anos-luz, só vislumbramos as mais brilhantes.

Isso não seria um problema se as galáxias tão distantes fossem idênticas às nossas vizinhas. A velocidade da luz é finita, porém. Se uma galáxia está muito distante, isso significa que a luz levou muito tempo, bilhões de anos, até, para chegar aqui. Estamos vendo o universo em sua infância.

Podemos supor que as galáxias no passado eram as mesmas de hoje? De jeito nenhum. Continuando com a analogia das pesquisas eleitorais, imagine se perguntássemos a opinião política dos eleitores da década de 60 sobre candidatos à eleição de 2022! Os movimentos políticos estão em constante evolução, e não podemos admitir que a população se comporte de maneira idêntica em épocas tão distintas.

Da mesma maneira, o universo distante reflete determinado momento da evolução de galáxias, e a contabilidade deve ser calculada à parte. Como fazer isso se só vemos a ponta do iceberg, somente as galáxias mais luminosas? Telescópios mais poderosos poderão responder com precisão –tomara que o James Webb, a ser lançado no final do ano, possa nos ajudar.

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Thiago Gonçalves é astrônomo no Observatório do Valongo/ UFRJ e divulgador de ciência.

Sabemos que as crianças fazem as melhores perguntas, e que a ciência pode ter boas respostas para elas. Todo mês, a série “Perguntas de criança, respostas da ciência” convida um cientista a responder uma dessas questões fundamentais. Você tem uma sugestão de pergunta ou de pauta para o blog? Veja aqui como colaborar.

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A roupa invisível da revisão por pares https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/06/19/a-roupa-invisivel-da-revisao-por-pares/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/06/19/a-roupa-invisivel-da-revisao-por-pares/#respond Sat, 19 Jun 2021 10:15:20 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/rei_nu-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=450 Por Olavo Amaral

Crivo de qualidade da ciência acadêmica emana autoridade, mas significa pouco

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Pode apostar: em qualquer discussão sobre dados científicos, cedo ou tarde alguém vai invocar o argumento do “artigo revisado por pares”, seja para dar crédito a uma afirmação, seja para desacreditá-la, caso a revisão não tenha acontecido.

O crivo da revisão por pares –a aprovação por pesquisadores independentes antes da publicação de um artigo– é tido como um bastião da pesquisa científica há décadas (ou mais de um século, dependendo da área), e para muitos delimita o que é considerado “ciência” e o que não é.

Em uma imagem icônica da Marcha pela Ciência em Washington, em 2017, vê-se em frente ao Capitólio um cartaz onde se lê “In peer review we trust”, numa alusão ao “In God we trust”. A substituição, porém, equivale a trocar uma crença dogmática por outra.

“Revisado por pares”, afinal, significa apenas que algumas pessoas –em geral duas ou três– analisaram um artigo e não viram razão para negar sua publicação. Como o processo costuma ocorrer a portas fechadas, não sabemos quem são essas pessoas, nem que opiniões emitiram, tampouco o que elas se deram ao trabalho de verificar.

Afora isso, os revisores não costumam ser treinados para a tarefa nem ter um direcionamento sobre o que revisar e não são pagos ou recompensados por seu trabalho, tendo assim pouco apoio ou estímulo para se dedicar ao parecer. Não surpreende que a concordância entre diferentes revisores seja mínima e por vezes beire o aleatório.

Como se não bastasse, eles atuam somente ao final do processo científico, quando problemas na coleta de dados já são irremediáveis. Pior ainda, trabalham com base no relato dos autores, e geralmente não têm acesso aos dados originais, o que os impede de detectar a maior parte dos erros e omissões que podem acontecer ao longo de um projeto.

Se nada disso faz você desconfiar de que algo está errado, imagine a aplicação da mesma lógica em outras áreas. Se uma companhia aérea lhe dissesse que delega seu controle de qualidade a dois ou três especialistas que examinam um relatório de algumas páginas sobre a construção de um avião já pronto, você embarcaria?

A confiança da comunidade científica na revisão por pares é ainda mais desconcertante dada a parca evidência sobre o impacto do processo na literatura científica. Comparações entre preprints –artigos postados antes da revisão por pares– e suas versões revisadas mostram que as diferenças de qualidade são pequenas, e que tanto o texto como as conclusões principais raramente mudam.

Quanto à função de filtro, o fracasso do sistema se revela ainda mais contundente. Artigos sem sentido, com erros crassos ou conclusões absurdas, elaborados com intenção jocosa, invariavelmente acabam aceitos em algum lugar. O problema é agravado pelos ditos “periódicos predatórios” –revistas que cobram por publicação e tem seus lucros maximizados pela ausência de rigor.

A pandemia de Covid-19 é fértil em exemplos da fragilidade do sistema. Revistas teoricamente revisadas por pares publicaram bizarrices como a de que a tecnologia 5G poderia produzir o SARS-CoV2. Enquanto isso, periódicos com editores ligados ao Institut Hospitalo-Universitaire Méditerranée Infection de Didier Raoult se transformaram numa vitrine enviesada de estudos defendendo o uso da hidroxicloroquina.

Seria fácil atribuir o problema a publicações de baixa qualidade, mas o escândalo mais notório da pandemia atingiu o Lancet e o New England Journal of Medicine, as revistas médicas mais respeitadas do mundo, que se viram obrigadas a retratar artigos com dados suspeitos de fabricação por parte da empresa Surgisphere.

O fato não surpreende: ainda que periódicos tradicionais costumem ser mais seletivos ao aceitar artigos, não há nada de tão diferente em seus processos de revisão. Além disso, a pressão para publicar nestas revistas pode estimular cientistas a dourar a pílula para tornar seus resultados mais atraentes. Com isso, usar a “publicação de impacto” como critério de qualidade não resolve o problema: visibilidade e confiabilidade, afinal, são coisas distintas.

No episódio da Surgisphere, críticos foram rápidos em apontar culpados, como o viés dos editores ou a pressa dos revisores. No fundo, porém, o responsável é o próprio sistema de revisão, que, sem acesso aos dados ou ao processo pelo qual foram obtidos, não tem capacidade de identificar fraudes bem feitas.

Se a revisão por pares não serve de régua, o que podemos chamar de “cientificamente comprovado”? A melhor resposta, um tanto tautológica, talvez seja “o consenso científico”. Mas identificá-lo nem sempre é óbvio. Posições de instituições e sociedades científicas são uma aproximação disso, mas elas têm seu lado político –que em casos como o das associações médicas brasileiras costuma flertar com o sindicalismo— e estão longe de ser isentas de viés.

A verdade é que não temos formas institucionais eficientes de demarcar o que é ciência confiável, o que faz uma falta enorme no debate público. Isso fica evidente no bater de cabeça de agências de checagem de fatos para lidar com as dezenas de artigos favoráveis e contrários ao tratamento precoce da Covid, uma questão complicada demais para ser resumida em “#fato” ou “#fake”.

Há muito a fazer, assim, para construir um selo de confiabilidade que vá além do “revisado por pares”. Isso só será alcançado, porém, se superarmos a crença de que dois ou três revisores examinando um PDF são o bastante para aferir a qualidade de um processo complexo como a pesquisa científica.

Exemplos de sucesso não faltam: auditorias, certificações e procedimentos- padrão são parte da rotina de aeroportos, construções civis e hospitais, e é de se perguntar por que são tão raros em instituições acadêmicas. E mesmo empreendimentos como a Wikipedia possuem processos de revisão e correção mais elaborados e robustos do que a anêmica e pouco transparente revisão por pares de artigos científicos.

Sem formas melhores de controle, a pesquisa acadêmica seguirá vulnerável a fraudes, erros e vieses, alimentando charlatanices com o carimbo de “cientificamente comprovado”. Essa é apenas a consequência natural de acreditar em um processo em que ninguém enxerga o que está sendo feito. Como na história infantil, o rei está nu sob a roupa invisível da revisão por pares, e às vezes é preciso uma criança, ou uma pandemia, para nos forçar a admiti-lo.

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Olavo Amaral é professor do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis da UFRJ e coordenador da Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade.

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Mais calor, mais doenças https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/05/21/mais-calor-mais-doencas/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/05/21/mais-calor-mais-doencas/#respond Fri, 21 May 2021 10:18:58 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/camilo-mosquitos1-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=418 Por Fabio Gomes

O aquecimento global redistribui enfermidades transmitidas por mosquitos

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Os efeitos do aquecimento global já se fazem sentir: estudos sugerem que observamos um aumento da temperatura média global em torno de um grau Celsius desde o início da Revolução Industrial. Esse aumento, aparentemente pequeno para o leigo, já se reflete numa frequência alarmante de eventos climáticos extremos, tais como secas prolongadas que acarretam importantes perdas de produção agrícola. Se a tendência atual se mantiver, até o final do século poderemos ter acrescentado até quatro ou cinco graus Celsius à temperatura mundial, com consequências que poderão inspirar uma batelada de filmes-catástrofe. Resta saber se haverá espectadores.

Um dos efeitos pouco discutidos do aquecimento global é a redistribuição de enfermidades transmitidas por mosquitos, sobretudo os Anopheles, causadores da malária; e os Aedes, mais especificamente o Aedes aegypti e o Aedes albopictus, encarregados de alastrar vírus como os da dengue, da zika e da chikungunya.

Não é preciso ser especialista em mapas para constatar que é nas zonas mais quentes que se concentram esses insetos. Além de fatores históricos e socioeconômicos, tal adensamento também tem a participação direta da biologia dessas criaturas: como em outros invertebrados, a temperatura de seu corpo varia conforme a temperatura do ambiente, regulando assim sua fisiologia e afetando traços como longevidade, fecundidade e imunidade. De fato, em um estudo de 2019, um grupo de pesquisadores concluiu que diferenças entre a riqueza de países (PIB) explicam apenas 5% da distribuição atual de casos de dengue, enquanto que fatores como temperatura e pluviosidade tiveram um peso bem maior, 68% e 13%, respectivamente.

A alta adaptação dos insetos nessas áreas tropicais foi determinante em diversos empreendimentos humanos ao longo da história. Se a baixa aclimatação dos transmissores da malária no Sul dos Estados Unidos e na região do Mediterrâneo europeu colaborou para a erradicação da doença naquelas regiões, a dificuldade em controlar a população de vetores e o número de casos de malária e febre amarela foram fundamentais para a desistência dos franceses em construir o Canal do Panamá, e posterior transferência dos direitos para os americanos.

Com o aumento da temperatura, regiões hoje mais temperadas passarão a apresentar características propícias à proliferação de mosquitos, expandindo a sua zona de ocupação. A extensão desse espalhamento vai depender da intensidade do aquecimento global e de seu impacto sobre padrões de chuvas, além de fatores como o tamanho das áreas de desmatamento e o adensamento da ocupação humana. De qualquer modo, regiões hoje pouco afetadas pela malária ou a dengue estarão mais expostas a essas enfermidades. Pesquisadores dos Estados Unidos previram que até 1 bilhão de pessoas na Europa, Ásia e América do Norte passarão a enfrentar infecções transmitidas por Aedes caso o aquecimento global não seja controlado.

No Brasil, prevê-se uma multiplicação de zonas onde os mosquitos encontram condições favoráveis de reprodução ao longo do ano, o que aumentaria o número de casos de moléstias e a pressão sobre o sistema de saúde. Incluem-se aí estudos que previram a expansão na região amazônica da distribuição de vetores associados à transmissão da malária causada por Plasmodium falciparum, parasita responsável pela forma mais letal da doença. Diversos outros estudos com foco na África apontaram resultados semelhantes de expansão da ocupação desses animais. No entanto, em algumas regiões da África subsaariana, as temperaturas poderão se tornar tão altas a ponto de abreviar a longevidade dos mosquitos, que não vão dispor de tempo hábil para transmitir as doenças. Nesse cenário, a incidência de malária poderia até mesmo ser reduzida em algumas regiões.

Assim, parece haver consenso na previsão de emergência (ou reemergência) dessas enfermidades em locais hoje não afetados, e um aumento de casos em regiões hoje endêmicas. Em comum, todas as previsões sugerem que as consequências da expansão territorial de mosquitos vetores podem ser gravíssimas, visto que boa parte dessas regiões é habitada por uma população sem defesas imunes originadas pela exposição prévia a esses males e sem um sistema de saúde e vigilância treinado para acompanhar, identificar e tratar essas doenças.

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Fabio Gomes é professor do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da UFRJ e membro do Laboratório de Ultraestrutura Celular Hertha Meyer.

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O nome disso é evolução https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/05/08/o-nome-disso-e-evolucao/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/05/08/o-nome-disso-e-evolucao/#respond Sat, 08 May 2021 10:25:58 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/henning-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=399 Por Frederico Henning

O vírus está se adaptando a nós por seleção natural e por enquanto segue passos previsíveis

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“Mutações” e “variantes” se tornaram palavras frequentes na imprensa, lançando sobre a sociedade algumas perguntas importantes: as vacinas continuarão funcionando? As pessoas poderão ser reinfectadas? O vírus está mais perigoso? Outro dia um especialista explicava em uma entrevista que “surgem mutações e algumas se tornam variantes de maior propagação”. Pois bem, esse processo tem nome e sobrenome: evolução por seleção natural. Ouvimos com frequência que as novas variantes são as culpadas pelo descontrole da pandemia. Mas a evolução é mesmo imprevisível?

As pessoas costumam associar a evolução das espécies às grandes transformações que ocorrem nas formas de vida ao longo de muito tempo. Geralmente se pensa que a evolução leva ao “progresso” dos organismos em direção à perfeição ou complexidade. Na realidade, a evolução opera de forma contínua a passos curtos e o “progresso” ou “adaptação” devem ser vistos como “a resolução de problemas imediatos”. Para um coronavírus, progresso é aumentar a taxa de transmissão. Não há direção para a evolução no longo prazo, pois os rumos da vida mudam devido a alterações drásticas no ambiente, como por exemplo a queda de meteoros. No entanto, na escala de tempo em que nós vivemos, a evolução é surpreendentemente previsível.

A evolução adaptativa ocorre sempre que houver duas coisas: mutação e seleção natural. A primeira parte, a mutação, ocorre ao acaso e sozinha não torna os organismos mais adaptados. Cada vez que um vírus se multiplica, um em cada cem mil nucleotídeos –representadas pelas letras A, C, U e G que formam a sequência genética de RNA– é copiado de modo errado, resultando em mutações aleatórias. Mas há alguma regularidade no caos. Não podemos prever qual letra será trocada por outra em um evento de mutação, mas sim quantas mutações irão ocorrer a cada geração. Como o genoma do vírus é constituído de 30 mil letras, cada novo vírus tem uma chance de cerca de 30% de ser mutante.

Devido a esta regularidade, podemos comparar as sequências genéticas de organismos atuais e inferir quanto tempo se passou na evolução com base no número de diferenças entre elas. Este “cronômetro de mutações” é a principal ferramenta usada nas investigações científicas para saber de onde o vírus se originou, como chegou e se espalhou no Brasil e também para monitorar o aparecimento e dispersão das novas variantes.

A segunda parte da equação, a seleção natural, explica por que alguns desses mutantes dominam a população e “se tornam variantes de maior propagação”. Não é um processo fortuito, tanto que a produção de alimentos tem se beneficiado da previsão de geneticistas há mais de um século. Uma mostra da previsibilidade da seleção natural é que as diferentes linhagens de coronavírus, mesmo isoladas umas das outras, estão evoluindo de forma parecida. Um vírus pode mudar de mais de 150 mil jeitos diferentes, mas as variantes estão acumulando as mesmas mutações que aumentam a transmissão e a evasão da defesa imune. Esta evolução “convergente” –que sai de pontos distintos e chega à mesma resposta– indica os caminhos genéticos pelos quais o vírus evolui, as variantes que devem ser o foco de vigilância e os próximos passos na evolução viral. Sabemos como neutralizar a evolução adaptativa. Se cortarmos a transmissão, particularmente das linhagens contendo mutações compartilhadas, impediremos a ação da seleção natural. Embora as mutações continuem a ocorrer, não haverá o acúmulo daquelas que são boas para o vírus.

Antecipar a evolução é fundamental para que as vacinas mantenham a eficácia frente a novas variantes e até mesmo para fazer o diagnóstico, já que o exame de RT-PCR só detecta a presença do vírus se soubermos parte de sua sequência genética. Portanto, cientistas precisam prever as mudanças genéticas que ocorrerão para interpretar e desenvolver testes que continuem a funcionar à medida que o vírus evolui.

“Há grandeza nesta visão de mundo”, escreveu Darwin ao encerrar seu livro mais famoso. Há grande utilidade também, mas controlar o processo começa por dar nome aos bois e isto se chama evolução.

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Frederico Henning é biólogo e professor na UFRJ, onde coordena projetos de pesquisa, ensino e extensão em genética, genômica e evolução.

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Somos poeira de estrelas https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/06/10/somos-poeira-de-estrelas/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/06/10/somos-poeira-de-estrelas/#respond Wed, 10 Jun 2020 14:52:25 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/ilustra-texto-karin-corteweb.-Julia-Debasse.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=144 Por Karín Menéndez-Delmestre

Se vivemos no Sistema Solar, como o corpo humano é composto de elementos extrassolares?

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Todos conhecemos essa famosa declaração do astrônomo Carl Sagan, “Somos todos poeira de estrelas”. E, sim, de fato somos compostos de poeira estelar, mas poeira extrassolar, apesar de vivermos no Sistema Solar. Veja o paradoxo — somos daqui, feitos de material que não é daqui.

Foi assim. Instantes após o Big Bang, a temperatura no Universo caiu o bastante para prótons e elétrons comporem os primeiros átomos estáveis de hidrogênio. Apenas uma pequena fração dos átomos formados nessa nucleossíntese primordial é mais pesada que o hidrogênio  –um pouco de hélio, pouquíssimo lítio. Podemos então pensar no Universo como um vasto espaço constituído sobretudo de hidrogênio: é ele que domina a composição das estrelas, do gás no espaço entre as estrelas e do pouco gás que ocupa as distâncias que separam as galáxias. Porém, se você olhar ao seu redor  –sua família, sua vizinhança, o planeta todo–, verá que os elementos que dominam seu entorno são bem variados. Considere que pouco mais de 75% do corpo humano é composto de oxigênio e carbono, e que mais de 98% da atmosfera terrestre é composta de nitrogênio e oxigênio. Se o Universo inteiro é feito sobretudo de hidrogênio, apimentado com um pouco de hélio, teria o Sistema Solar uma composição diferente do resto?

O Sistema Solar como o conhecemos  –com planetas, asteroides, planetas-anões e cometas orbitando ao redor de uma estrela central, o Sol– é o resultado do processo de formação do Sol. Uma grande nuvem de gás colapsou e gerou uma condensação central com densidade e temperatura suficientes para fusionar hidrogênio  –o Sol. Os planetas e outros habitantes do Sistema Solar são o “lixinho” que sobrou desse processo. O curioso é que o Sol, ele mesmo, é composto sobretudo de hidrogênio, com um núcleo de hélio; ao longo de sua vida, não produzirá nenhum outro elemento mais pesado do que carbono e oxigênio.

Na realidade, o material que domina nossa composição e a do planeta é produto de um complexo processo de formação e evolução estelar. As primeiras estrelas se constituíram a partir do colapso de nuvens de gás primordial  –nada além dos elementos mais leves caracteriza essas estrelas pioneiras. No centro delas, as altas temperaturas e grandes densidades favoreceram processos de fusão nuclear onde átomos de elementos leves (por exemplo, hidrogênio) geram átomos de elementos mais pesados (por exemplo, hélio).

Dependendo da massa da estrela (ou seja, da quantidade de gás nas estrelas), a pressão no centro permite a fusão de produtos mais leves para produzir elementos cada vez mais pesados, até o ferro. Esses elementos pesados são subsequentemente lançados ao espaço por meio de ventos estelares e explosões supernovas. A partir desse gás “poluído”, formam-se outras estrelas. Dessa forma, gerações sucessivas de estrelas aos poucos enriquecem o Universo com elementos mais pesados. Daí, a um ritmo de centenas de milhões, até bilhões de anos, surge grande parte dos elementos que compõem os planetas rochosos  –Mercúrio, Vênus, Terra e Marte–, bem como o corpo humano. Portanto, uma estrela como o Sol  –gerada a partir de um gás dominado por hidrogênio, mas com uma pequena fração de elementos mais pesados, produtos de gerações de estrelas passadas– consegue obter material para fabricar planetas como a Terra e os organismos que a habitam.

Então somos, sim, poeira de estrelas, mas não somos poeira de elementos produzidos por nossa estrela. Compostos a partir de material produzido por gerações e gerações de estrelas passadas, podemos dizer que somos poeira alienígena. No Universo, ser “daqui” é ser de toda parte.

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Karín Menéndez-Delmestre é astrônoma, professora do Observatório do Valongo da Universidade Federal do Rio de Janeiro

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A dança entre buracos negros e estrelas em galáxias distantes https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/03/12/a-danca-entre-buracos-negros-e-estrelas-em-galaxias-distantes/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/03/12/a-danca-entre-buracos-negros-e-estrelas-em-galaxias-distantes/#respond Thu, 12 Mar 2020 05:00:41 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/ilustra-texto-karín.-Catarina-Bessell-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=69 Por Karín Menéndez-Delmestre

Para observar buracos negros, é preciso estar atento ao que se passa ao redor deles

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O leitor já se questionou como observamos buracos negros? Se, como se supõe, nem a luz consegue escapar à sua força gravitacional, então como construímos uma imagem real desses objetos? Para enxergar os buracos negros, precisamos ficar de olho no que acontece ao redor deles.

Comecemos pelo básico. Existem buracos negros ditos primordiais (os que se formaram logo depois do Big Bang), mas a maioria deles corresponde ao “cadáver” de uma estrela muito massiva – com pelo menos umas trinta vezes a massa do Sol — que colapsa sobre si mesma. A estrela implode e gera uma densidade muito alta numa região muito compacta, formando um campo gravitacional gigantesco — eis aí o buraco negro.

Se na Terra apenas partículas com uma velocidade que ultrapassa 11,2 km/s são capazes de deixar o planeta, num buraco negro a força de gravidade é tanta que nem a luz (com uma velocidade de 300 mil km/s) consegue escapar. Devido a essa grande força de atração, as partículas de gás que se aproximam do buraco negro (aquelas que ultrapassam o chamado “horizonte de eventos”) são “engolidas”. O leitor deve se lembrar do impacto na mídia que teve o anúncio da primeira imagem de um buraco negro, em 2019 –era precisamente o horizonte de evento, essa borda brilhante, que o poder de vários telescópios terrestres juntos conseguiu capturar.

A luz que forma as imagens capturadas dos buracos negros é a luz emitida pelo gás que orbita nas proximidades desses buracos. Este gás, aquecido pelo atrito, forma um fino disco ao redor do buraco negro, atingindo altas temperaturas e brilhando em diferentes energias, desde o mais “frio” no infravermelho, passando pelo ultravioleta e óptico, até o mais quente, em raios-X. E voilà: eis o potencial de imagens de buracos negros, a depender do telescópio usado.

Com massa equivalente a centenas de milhares, até dezenas de bilhões de massas solares, os buracos negros supermassivos têm a capacidade de alterar significativamente as órbitas das estrelas da vizinhança. Por isso, mesmo se eles não estiverem “engolindo” gás ativamente, podemos detectar sua presença ao observarmos seu efeito nos objetos próximos. Foi assim que soubemos que nossa Via Láctea abriga um buraco negro supermassivo bem em seu centro. Embora seja dormente, ou seja, não esteja “engolindo” grandes quantidades de gás, foi possível detectá-lo ao monitorar seu impacto nas órbitas das estrelas vizinhas, ao longo de mais de uma década, com os maiores telescópios do mundo (no Havaí e no Chile).

Os pesquisadores (entre os quais me incluo) estão empenhados em identificar e estudar buracos negros supermassivos em outras galáxias, pois hoje sabemos que toda galáxia massiva abriga um buraco negro em suas entranhas. Olhando para galáxias distantes, conseguimos ver como elas são palco de uma complexa dança entre o crescimento da massa estelar e o crescimento de um buraco negro supermassivo. Surtos de formação de estrelas se alternam com períodos em que fortes ventos gerados pelo buraco negro supermassivo “desligam” momentaneamente a formação de estrelas. Se quisermos entender como o nosso lar, a Via Láctea, se formou, precisamos entender os detalhes dessa dança.

As imagens de buracos negros nos permitem confirmar muitas das hipóteses sobre a natureza destes objetos, mas, além do horizonte de eventos, apenas podemos nos basear nos modelos teóricos. Para entender verdadeiramente o que acontece num buraco negro, precisamos juntar observações e teoria — o progresso do conhecimento depende tanto de um como do outro. Em 2020, esperamos ansiosamente pelo lançamento do telescópio espacial James Webb. Com um espelho dobrável de 6.5m, será o maior telescópio já lançado ao espaço e nos permitirá descobrir milhares de buracos negros supermassivos. Já estou preparando minha proposta para obter dados.

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Karín Menéndez-Delmestre é astrônoma, professora do Observatório do Valongo da Universidade Federal do Rio de Janeiro

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