Ciência fundamental https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br O que pensam os jovens cientistas no Brasil? Thu, 02 Dec 2021 15:29:05 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2  Por que o coração bate? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/11/29/por-que-o-coracao-bate/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/11/29/por-que-o-coracao-bate/#respond Mon, 29 Nov 2021 10:21:51 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/coração-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=600 Por Rossana Soletti

A origem dessa estrutura complexa

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O texto abaixo responde à pergunta de Pedro Henrique Nagai, paulistano, 5 anos, para a série “Perguntas de criança, respostas da ciência”.

A batida de um coração tem um simbolismo todo especial: ela significa vida, amor, paixão, ansiedade. Mas quando Pedro Henrique, de 5 anos, pergunta por que o coração bate, a resposta precisa ser reduzida a uma explicação biológica.

Vamos começar pelo coração já pronto, e depois voltamos para o início, quando nosso corpo ainda estava se formando. O coração é uma estrutura complexa, uma obra-prima que tem quatro câmaras: dois átrios, que recebem sangue do corpo e o repassam para dois ventrículos, que então bombeiam o sangue para grandes vasos. E ele produz seus próprios impulsos. Suas batidas são controladas por sinais elétricos que se espalham pelas células das câmaras cardíacas. Os átrios se contraem primeiro, para depois contrair os ventrículos, e assim surge a batida que a gente conhece.

Em geral imaginamos o coração como uma grande estrutura, mas ele não passa de um conjunto de células individuais: células musculares cardíacas formam as camadas de músculo; algumas células ajudam na sustentação e na forma do órgão; células nervosas coordenam os batimentos cardíacos e outras compõem os vasos sanguíneos. E é a interação entre todas elas que confere a habilidade de bombear sangue ao coração, o primeiro órgão funcional a ficar pronto, ainda quando somos um embrião. Uma das maiores descobertas sobre seu desenvolvimento foi constatar que muitas de suas células derivam de uma mesma célula-mãe logo nas primeiras semanas de vida.

À medida que o embrião vai se desenvolvendo, as células se diferenciam e se especializam, num processo comandado por sinais químicos. Algumas enviarão sinais a suas vizinhas, que se transformarão em células cardíacas, e por isso todas as células precursoras precisam estar no lugar certo e na hora certa. Por volta da terceira semana, o embrião é um sanduíche de três camadas e o coração começa a surgir na camada intermediária a partir de dois aglomerados de células que se diferenciam e originam outros tipos celulares.

Num embrião humano com quatro semanas, o coração é um tubo de duas câmaras que depois passará por um dobramento. Nessa etapa as células já fazem uma contração rítmica e há um fluxo de sangue, e essa pressão ajuda o coração a se dobrar e formar as quatro câmaras enquanto o embrião cresce. É por essa pulsação precoce que uma gestante consegue ouvir as batidas do coração do bebê logo nas primeiras semanas de gestação, quando o embrião ainda é muito primitivo.

Se separarmos essas células musculares cardíacas que se contraem e as pusermos em uma placa para serem cultivadas em laboratório, elas poderão reproduzir o batimento cardíaco. Se isoladas na placa, o batimento de cada célula é independente; quando aumentam em número e se encostam, o batimento começa a ser uníssono. Essa habilidade fantástica já foi observada por cientistas há mais de duas décadas e agora as pesquisas continuam, com o intuito de fazer com que essas células pulsantes se desenvolvam num coração de verdade, e de produzir tecido cardíaco a partir da transformação de outros tecidos nossos, como a pele, e encontrar explicações e tratamentos para diversas doenças.

E essas condições não são poucas: como vimos, com toda sua complexidade, depois que o coração está pronto tudo precisa funcionar em harmonia, como numa orquestra. As câmaras e as passagens entre elas precisam funcionar corretamente, as células devem bater no ritmo certo. Caso isso não aconteça, os batimentos podem ficar dessincronizados ou o volume de sangue necessário pode não ser bombeado. É por isso que as alterações cardíacas estão entre os defeitos mais frequentes em recém-nascidos, e que as doenças cardiovasculares estão entre as causas de morte mais comuns.

Há séculos os cientistas procuram compreender essa estrutura fantástica, complexa e poética, no encalço de mais longevidade e qualidade de vida para as pessoas.

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Rossana Soletti é doutora em ciências morfológicas e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Sabemos que as crianças fazem as melhores perguntas, e que a ciência pode ter boas respostas para elas. Todo mês, a série “Perguntas de criança, respostas da ciência” convida um cientista a responder uma dessas questões fundamentais. Você tem uma sugestão de pergunta? Veja aqui como colaborar.

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Em que lugar do cérebro fica a memória? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/08/05/em-que-lugar-do-cerebro-fica-a-memoria/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/08/05/em-que-lugar-do-cerebro-fica-a-memoria/#respond Thu, 05 Aug 2021 10:13:37 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/zimmer-memoria-300x215.png https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=497 Por Eduardo Zimmer

Somos aquilo que decidimos esquecer

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O artigo abaixo responde à pergunta feita por Violeta Reys, de 7 anos, para a série “Perguntas de criança, respostas da ciência”.

Iván Izquierdo, neurocientista argentino naturalizado brasileiro, costumava dizer que “somos aquilo que decidimos esquecer”. Para ele, o esquecimento era o fenômeno biológico mais fascinante da memória. De fato, precisamos esquecer para lembrar. Em um milissegundo consigo lembrar da data de nascimento da minha mãe, mas não preciso acionar sempre essa memória, ela fica guardada em lugares específicos do cérebro. Mas onde?

Para entender as bases neurobiológicas desse fenômeno, dois conceitos são essenciais. O primeiro é que o cérebro é segmentado em regiões que desempenham funções específicas, mas conectadas de modo a nos permitir desempenhar funções cognitivas superiores, como ler, falar e raciocinar. O segundo é relacionado aos tipos de memória: existe a de curto prazo, que guardamos por algumas horas (o número do telefone de uma loja de entregas) e a de longo prazo, que é retida de forma prolongada e pode ser recuperada (o que aconteceu no último Natal), e que podem ser declarativas (“saber que”) e não declarativas (“saber como”). Existem ainda outras classificações, diferentes do ponto de vista biológico, como memória semântica e episódica. O início da expansão do conhecimento a respeito da memória merece ser… lembrado.

Em 1953, o paciente Henry Molaison, conhecido como H.M., foi submetido a uma lobotomia para controlar ataques epilépticos. A epilepsia foi contida, mas H.M. não conseguia formar novas memórias declarativas, embora pudesse formar as de curta duração e não declarativas. Assim: H.M. mantinha uma conversação normalmente, mas assim que o papo terminava e ele começava outra atividade, ele esquecia por completo que aquela conversa tinha ocorrido –esquecia inclusive da pessoa, se fosse uma pessoa “nova”. Era como se ele tivesse sido submetido ao “neuralizador” da trilogia “Homens de Preto”, equipamento fictício utilizado para apagar a memória das pessoas.

O estudo desse caso foi um divisor de águas. E ele ficou a cargo de Brenda Milner, considerada por muitos a fundadora da neuropsicologia, que o apresentou à comunidade científica ainda em 1957. (Hoje, aos 102 anos, a dra. Milner continua na ativa e pode ser vista pelos corredores do Instituto de Neurologia de Montreal no Canadá. Eu mesmo tive a honra de conduzir parte de meus estudos de doutorado nessa instituição, graças ao extinto programa “Ciência sem Fronteiras”. Uma memória inesquecível).

A chave para o entendimento do caso H.M. apontou para as áreas que foram removidas na lobotomia, sobretudo o hipocampo, principal região do cérebro responsável por memórias de curta duração e declarativas. Hoje em dia a neuropsicologia sugere que cada tipo de memória é armazenado em um lugar especial no cérebro. Ou seja, outras áreas além do hipocampo também têm a habilidade de armazenar memórias, como o córtex.

Mas o entendimento de um processo neurobiológico ainda mais fundamental se faz necessário. Seria intuitivo pensar que surgiria um neurônio novo a cada nova memória, ou que um neurônio pudesse acomodar um número limitado de memórias. Ora, como poucos neurônios nascem em cérebros adultos, com a quantidade massiva de informações que recebemos, nosso “HD neuronal” já estaria lotado.

Ambas as hipóteses estão incorretas. A plasticidade do cérebro é que está em questão. Os neurônios formam novas conexões ou até fortalecem conexões prévias com os outros neurônios. Essa conectividade faz com que os disparos elétricos –as sinapses– coordenados por uma série de neurônios formem, retenham, “esqueçam” e permitam a evocação das memórias.

Pode ser que alguns leitores lembrem desse artigo por muito tempo, pode ser que outros já não lembrem dez segundos depois de o lerem. Mas aí a conversa entra em outra região do cérebro, a amígdala, que coordena um dos fenômenos neurobiológicos mais bonitos de nossa vida: a emoção. Ela ajuda a decidir quais memórias a gente deve guardar. Quer fazer um teste? Quem não lembra do primeiro beijo? Eu sei, são tantas emoções…

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Eduardo Zimmer é bioquímico e professor no Departamento de Farmacologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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Por que os humanos têm Alzheimer e os cães não? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/05/12/por-que-os-humanos-tem-alzheimer-e-os-caes-nao/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/05/12/por-que-os-humanos-tem-alzheimer-e-os-caes-nao/#respond Wed, 12 May 2021 10:15:50 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/caes_alzheimer-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=402 Por Eduardo Zimmer

A resposta pode estar nos astrócitos menos evoluídos dos nossos amigos

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Em 1820, a expectativa de vida dos humanos era de cerca de 33 anos. Hoje todo mundo conhece pelo menos uma pessoa centenária (ou conhece alguém que conhece…). Os progressos na área da saúde, associados ao processo evolutivo da espécie, permitiram que alcançássemos idades avançadas. Mas essa evolução tem seu preço: ela veio acompanhada de uma série de doenças relacionadas ao envelhecimento.

Para a pessoa viver a chamada terceira idade com qualidade de vida, é preciso entender essas moléstias que vêm se tornando cada vez mais prevalentes em idosos. O Alzheimer, por exemplo, é a principal causa de demência no mundo, e no Brasil afeta mais de 1 milhão de pessoas –número muitíssimo subestimado, segundo especialistas. Além disso, como não existem medicamentos que consigam impedir a progressão da doença, compreendê-la melhor é uma das prioridades mundiais da pesquisa em saúde.

Para entender essa patologia, nossos melhores amigos, os cães, que já nos ajudam a caminhar quando não enxergamos, a viajar de avião quando sentimos pânico, a nos recuperarmos de quadros neuropsiquiátricos, podem mais uma vez vir em nosso auxílio.

A expectativa de vida desses animais dobrou nos últimos trinta anos. Um cachorro de porte pequeno, que costumava viver cerca de nove anos, hoje pode chegar a espetaculares dezoito anos. Outro fato marcante é como eles vivem. Enquanto trabalho, acompanho o dia a dia da minha cachorra, Baleia (isso mesmo, uma homenagem ao livro “Vidas Secas” de Graciliano Ramos). A rotina dela é muita parecida com a minha: ela tem seus horários para comer, para passear, para dormir e para se distrair com seus brinquedos. No auge dos seus dez meses, ela já responde aos comandos, morre de medo da palavra “não”, e recentemente aprendeu a me avisar quando quer um biscoito.

Será que, quando velhos, esses cães “humanizados” podem desenvolver Alzheimer? Os cães até podem apresentar certo grau de declínio cognitivo, mas raramente manifestam os sintomas graves de demência que acometem a fase final da doença nos humanos. O que nos intriga, porém, é que eles, à semelhança dos humanos, acumulam grumos insolúveis da proteína beta-amiloide no cérebro –minúsculas “pedrinhas” que ajudam a caracterizar o Alzheimer. Acredita-se que essas “pedrinhas” atrapalhem a comunicação entre os neurônios, fazendo com que o cérebro atrofie e que apareçam os sintomas. Apesar da presença desses grumos, os cães não desenvolvem manifestações graves como nós. O que os torna resistentes? O que nos torna vulneráveis? Compreender as diferenças entre o cérebro humano e o canino pode ter grande utilidade para entender e até tratar as enfermidades que afetam o nosso cérebro.

Pouca gente sabe da existência do astrócito, uma célula cerebral que foi primeiramente descrita em meados do século 19 e parece ter evoluído muito mais nos humanos do que nos cães e em outros mamíferos. Em formato de estrela, essa célula especializada é muito abundante no cérebro humano: para se ter uma ideia, o córtex cerebral, que é a nossa região cerebral mais evoluída e que constitui 82% da massa do cérebro, parece ter mais astrócitos do que neurônios. Nos últimos anos, eles, que sempre foram considerados os auxiliares dos neurônios (o Robin da dupla), estão conquistando o papel de protagonista.

Diversos estudos têm demonstrado que essas células podem controlar nossa memória e cognição –cientistas têm conseguido manipular nossa capacidade de lembrar de algo ou não, somente as ativando e desativando. Seriam elas as responsáveis pela vulnerabilidade dos humanos ao mal de Alzheimer? As diferenças entre as características dos astrócitos dos humanos e dos cães podem ajudar, quem sabe, a responder essa pergunta. Uma resposta já temos de antemão –os cães, realmente, são os nossos melhores amigos.

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Eduardo Zimmer é bioquímico e professor no Departamento de Farmacologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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As ovelhas de um olho só https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/04/19/as-ovelhas-de-um-olho-so/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/04/19/as-ovelhas-de-um-olho-so/#respond Mon, 19 Apr 2021 15:55:21 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/serrapilheira_ilustracao_ovelhas_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=379 Por Rossana Soletti

Um caso curioso nos ajuda a responder por que temos dois olhos

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O livro infantil Somos todos extraordinários, da norte-americana R. J. Palacio, conta a história de um garotinho de um olho só que vive como um garoto comum, mas enfrenta olhares espantados e dedos apontados. Ele sabe que não pode mudar seu rosto, mas acredita que as pessoas possam mudar o modo como o enxergam. Terminada a leitura, minha filha de sete anos me perguntou: “Se o menino é extraordinário e se somos todos extraordinários, então por que nós nascemos com dois olhos”?

A pergunta pode ser simples, mas a resposta é um tanto complexa. Comecei por contar a ela uma outra história.

Na década de 50, numa fazenda no interior dos Estados Unidos as pessoas foram surpreendidas pelo nascimento de ovelhas com um olho só. O mistério das ovelhas ciclopes atraiu atenção e muitos palpites, ainda mais depois que outras ninhadas semelhantes aparecerem em fazendas vizinhas. Para resolver essa charada, convocaram os cientistas do Departamento de Agricultura, mas ninguém imaginava que seriam necessários tantos anos de investigação.

A primeira hipótese era de que uma doença genética estivesse causando as alterações, mas após uma série de cruzamentos feitos em laboratório, nada aconteceu: todas as ovelhas nasciam com dois olhos e o rosto típico da espécie. Os pesquisadores observaram então que o nascimento das ovelhas ciclopes obedecia a um padrão sazonal, além de ser restrito aos rebanhos que pastavam em altitudes elevadas.

Foi aí que surgiu a hipótese de que um fator ambiental pudesse estar interferindo na gestação daqueles animais. A identificação desse fator não ocorreu da noite para o dia, é claro. Cerca de dez anos e muitas análises depois, veio enfim a resposta: as ovelhas estavam consumindo uma planta herbácea nativa da região que provocava malformações na cabeça do feto, caso ingerida nas primeiras semanas de gestação.

Pronto, mistério resolvido: era só retirar a planta das pastagens e não nasceriam mais ovelhas ciclopes. Mas, assim como fazem as crianças, os cientistas sempre querem saber os porquês: por que a ingestão dessa planta provocava o nascimento de ovelhas com um olho só? Lá se foram mais alguns anos de pesquisa até o isolamento e a caracterização dos constituintes químicos da planta, com a identificação do culpado, nomeado de ciclopamina.

E foi somente três décadas depois que a outra peça do quebra-cabeças foi desvendada e as coisas começaram a se encaixar: pesquisadores observaram que para o correto desenvolvimento do cérebro, dos olhos e de outras estruturas da face dos animais (incluindo os seres humanos), as células do embrião precisam receber informações, na hora certa, de proteínas que agem como guias sinalizadores em uma via chamada Hedgehog, ou Hh. Quando o embrião ainda é muito menor do que um grão de arroz, os sinalizadores da via Hh atuam nas células que ficam no meio da face, levando as instruções para que elas migrem lateralmente, proliferem e estabeleçam dois campos visuais. Caso essa via seja bloqueada, diversas malformações cerebrais e faciais podem ocorrer, como a ciclopia. E quem é que pode bloquear a via Hh? Eureka, é a ciclopamina!

Tantas décadas de pesquisa e de descobertas nos trouxeram entendimentos que vão além dos processos necessários para a formação dos olhos e da face de ovelhas, ratos ou seres humanos. Compreender o modo como as células se comunicam nos ajuda também a pensar em tratamentos para reajustar células com erros na sinalização. Hoje sabemos que em algumas células tumorais a via Hh pode estar ativada em excesso, e por isso inibidores dessa via, parecidos com a ciclopamina, já são utilizados no tratamento de um tipo de câncer de pele e estão sendo testados para vários outros tipos de câncer.

Assim como na ficção do menino que com apenas um olho nos mostra a beleza da diversidade, a construção do conhecimento científico pode nos levar a caminhos extraordinários.

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Rossana Soletti é professora da UFRGS Litoral e atua principalmente em oncobiologia, morfologia e divulgação científica.

Sabemos que as crianças fazem as melhores perguntas, e que a ciência pode ter boas respostas para elas. Todo mês, a série “Perguntas de criança, respostas da ciência” convida um cientista a responder uma dessas questões fundamentais. Você tem uma sugestão de pergunta ou de pauta para o blog? Veja aqui como colaborar.

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Tal qual o cosmos, a ciência deve englobar tudo e todos https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/01/13/tal-qual-o-cosmos-a-ciencia-deve-englobar-tudo-e-todos/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/01/13/tal-qual-o-cosmos-a-ciencia-deve-englobar-tudo-e-todos/#respond Wed, 13 Jan 2021 10:00:07 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/mulheres_negras_valentina-fraiz.alan-brito.web_-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=304 Por Wyllian Torres

O astrônomo Alan Brito busca uma nova cultura científica

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Desde pequeno Alan Alves Brito sabia que queria ser astrônomo. Aos oito anos, por ocasião da passagem do cometa Halley, ele teve certeza. Em seu quintal na cidadezinha de Valença, ao sul da Bahia, o céu livre da poluição dos centros urbanos alimentava sua curiosidade e dava asas a sua imaginação. “A ciência também é um exercício de criatividade”, ele diz hoje, aos 42 anos.

Brito está à frente de pautas importantes como o antirracismo na ciência e na divulgação científica. Ele compartilha sua experiência em projetos de pesquisa que promovem a equidade racial e de gênero no ensino.

Professor e pesquisador na Universidade Federal do Rio Grande do Sul desde 2014, o astrofísico coordena duas iniciativas. A primeira, “Akotirene: Kilombo Ciência”, busca aumentar a participação de mulheres negras na ciência. Surgiu em 2018 como parte do edital “Elas nas Exatas” –parceria do Instituto Unibanco, Fundo ELAS, Fundação Carlos Chagas e ONU Mulheres. Mesmo com o fim do edital, que durou um ano, o trabalho continua sob sua coordenação e das matriarcas do Morada da Paz, quilombo localizado no município de Triunfo, interior do estado.

Por meio da “pedagogia do encantamento”, o projeto constrói um lugar onde aprender e ensinar se mesclam nas tradições do pensamento africano. Os orixás, divindades da religião iorubá, também são os professores, pois ensinam sobre a natureza e a ancestralidade.

Já o “Zumbi Dandara dos Palmares” é um projeto de pesquisa aplicada que mobiliza uma equipe de professores e pesquisadores de diferentes áreas, sob a coordenação de Brito. A ideia é ambiciosa. “Engloba movimentos sociais, a Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul e 15 escolas –metade delas recebe estudantes dos quilombos urbanos, situados em Porto Alegre, e a outra metade em territórios quilombolas espalhados pelo estado”, diz. O trabalho, que deve durar 18 meses, propõe a elaboração de políticas públicas que abracem a pauta da equidade racial.

Por meio do currículo de ciências da natureza, ele trabalha a etnoastronomia e explora a relação cultural e milenar com os astros. Sua intenção é construir o conhecimento ancorado nos saberes populares dos quilombos, “historicamente inviabilizados por conta do racismo estrutural”, comenta Brito.

O astrofísico ressalta o constante diálogo da astronomia com diversas áreas do conhecimento. Para responder a perguntas sobre, por exemplo, o surgimento das estrelas, precisamos da física para entender o processo da gravidade, e da química para explicar as estruturas moleculares. “A astronomia atrai estudantes de todas as idades. As pessoas são curiosas, querem entender como tudo se formou, o que são galáxias, o que são estrelas. Ela fomenta essa curiosidade científica”, diz Brito.

E mais: a astronomia humaniza os processos da ciência ao nos dar a perspectiva de que todos somos cidadãos e cidadãs do cosmos. “Ela nos traz essa responsabilidade de cuidar do planeta Terra, nessa relação intrínseca do sujeito com a natureza.”

Para Brito, é necessário articular uma nova cultura científica no país, que ajude a pensar uma outra construção de ciência e tecnologia. “A gente precisa de mais observatórios, planetários, museus de ciência que tragam narrativas de todos os povos que passaram pela Terra, ao longo de milênios, que olharam para o céu e contaram histórias”, diz o pesquisador.

Brito não vê, no futuro, como responder às questões da ciência moderna e contemporânea sem uma contribuição direta da astronomia. Afinal, estamos sozinhos? É a astrobiologia, com os avanços das pesquisas na biologia, que contribui na busca dessa resposta, por exemplo. Pluralizar as narrativas também é essencial para construir nossa cosmovisão. A ciência, tal qual o cosmos, deve englobar tudo e todos.

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Wyllian Torres é jornalista.

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A probabilidade não é um monstro https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/04/30/a-probabilidade-nao-e-um-monstro/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/04/30/a-probabilidade-nao-e-um-monstro/#respond Thu, 30 Apr 2020 15:22:51 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/ilustra-texto-gabriela.-Julia-Debasse.web_.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=105 Por Gabriela Cybis

Nossa intuição é notoriamente falha em avaliações que envolvem incertezas. Por quê?

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O apresentador de programa de auditório lhe mostra três portas fechadas. Atrás de uma delas está o carro esportivo de seus sonhos. Atrás de cada uma das outras duas, um monstro. Você escolhe uma. “Tem certeza?”, pergunta o apresentador. Ele vai dar uma dica. Abre uma das duas portas que você não escolheu e surge um monstro. “Agora restam só duas portas”, ele diz. “Você fica com sua escolha ou quer trocar?” E agora, o que fazer? Faz diferença em termos de probabilidades?

Essa charada, conhecida como problema de Monty Hall em honra ao apresentador americano homônimo, foi publicada num jornal dominical americano em 1990, gerando comoção. Mais de 10 mil leitores escreveram para a revista questionando a solução apresentada, um número impressionante considerando o (des)interesse do grande público por problemas matemáticos. Até o famoso matemático Paul Erdös não se convenceu da resposta, mesmo diante da clara demonstração que a prova. A charada ilustra como nossa intuição pode nos levar a convicções falsas, sobretudo em questões relacionadas a probabilidades.

Seres humanos são notoriamente falhos em avaliações que envolvem incertezas. Por exemplo: quem são mais perigosos, mosquitos ou tubarões? Picadas de mosquitos são responsáveis pela transmissão de doenças a milhões de pessoas, das quais morrem mundialmente cerca de 700 mil por ano. Em contrapartida, no mesmo espaço de tempo os tubarões são responsáveis por em torno de dez mortes. Logo, mosquitos são mais perigosos que tubarões, mas seguimos temendo muito mais esses predadores.

Isso faz sentido do ponto de vista evolutivo: quando há risco de tubarões na água, é saudável ter medo. Enquanto essa forte resposta intuitiva nos serviu muito bem em um passado mais selvagem, hoje as condições de vida são mais complexas. Num mundo em que adoecemos lentamente por exposição a carcinógenos ou consumo excessivo de gordura, entre outros, esses simples instintos nem sempre nos servem de guia confiável. Muitas vezes carecemos de noções mais refinadas de risco.

Chamamos de viés cognitivo essas situações em que as pessoas sistematicamente cometem erros de julgamento. Há uma série deles ligados à probabilidade, com nomes como “falácia do jogador” e “viés da negligência da probabilidade”. São conhecidos há décadas pela comunidade científica, que realiza experimentos com grupos de voluntários que se expõem a pegadinhas construídas para evidenciar tais viéses.

Esse conhecimento pode ser utilizado na comunicação mais efetiva de dados envolvendo incertezas, melhorando a qualidade das decisões de profissionais da área da saúde ou no mundo dos negócios. E também pode ser explorado para induzir pessoas a tomar decisões em benefício do interesse de terceiros. Isso não significa, porém, que estamos fadados a cometer repetidamente os mesmos equívocos. Conhecer os erros mais comuns e ter familiaridade com raciocínio lógico e matemático são fortes aliados para evitá-los, embora não os eliminem por completo.

E a solução do problema de Monty Hall, você já sabe qual é? Grande parte das pessoas afirma que não faz diferença trocar ou não de porta após a intervenção do apresentador. Afinal, todas as portas têm a mesma probabilidade de trazer o carro, certo? Errado. O ato de revelar o conteúdo de uma das portas após sua escolha inicial altera as probabilidades da segunda etapa do problema. Assim, trocar de porta após a intervenção do apresentador é a melhor estratégia para conquistar o carro de seus sonhos. Por quê?

Para verificar isso, podemos dividir o problema em dois casos.

Caso 1: Digamos que na primeira etapa você escolhe a porta certa (isso ocorre com probabilidade 1/3); nesse caso, quando na segunda etapa você trocar de porta, acabará sempre com uma porta errada.

Caso 2: Digamos que inicialmente você escolhe uma das portas erradas (o que ocorre com probabilidade 2/3); nesse caso, quando o apresentador remover uma porta com monstro, restará apenas a porta correta.

Portanto, concluímos que a estratégia de trocar de porta na segunda etapa lhe dá as maiores chances de voltar para casa com seu carrão, probabilidade 2/3, para ser precisa.

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Gabriela Cybis é bióloga, professora de Estatística na UFRGS, atua em modelagem estatística para genética.

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Por que não existe uma única vacina contra a gripe? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/03/18/por-que-nao-existe-uma-unica-vacina-contra-a-gripe/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/03/18/por-que-nao-existe-uma-unica-vacina-contra-a-gripe/#respond Wed, 18 Mar 2020 14:50:06 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/ilustra-texto-gabriela.-Sandra-Jávera-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=74 Por Gabriela Cybis

Vírus em constante mutação exige vacinas sazonais

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Quando você entra em contato com certas doenças infecciosas pela primeira vez, seu corpo cria uma memória imunológica. Caso no futuro ele se depare com o mesmo patógeno, o sistema imune saberá como protegê-lo. As vacinas se servem desse mecanismo de memória, apresentando ao organismo pedaços ou versões enfraquecidas dos agentes infecciosos. Assim, nosso sistema imune adquire o treinamento necessário para nos salvaguardar do patógeno, sem que corramos o risco e o sofrimento de contrair a doença.

As vacinas estão entre as mais importantes descobertas da medicina, sendo responsáveis pela completa erradicação da varíola e pelo controle de diversas outras doenças. A tríplice viral é um ótimo exemplo: duas doses na infância conferem proteção para toda a vida contra caxumba, rubéola e sarampo. O recente retorno de vários casos de sarampo está fortemente associado a uma queda no número de pessoas que buscam imunização.

O caso da gripe, porém, é diferente. Todo ano é lançada uma nova vacina que deve ser tomada para manter o nível de proteção, pois a gripe é um vírus de rápida evolução. Essa evolução é tão rápida que se você pega gripe num ano, há uma boa probabilidade de que a defesa adquirida não seja eficaz contra as versões do vírus que irão circular no ano seguinte.

Como o vírus da gripe está em constante mudança, é fundamental que, para ser efetiva, a vacina seja fabricada com base nas variantes que circulam logo após sua aplicação. O problema é que, como ela demora um tempo para ser produzida, precisamos projetá-la mais de meio ano antes de sua distribuição. Ou seja: não basta conhecer as variantes do vírus hoje ativas. Para planejar uma vacina efetiva, é preciso identificar quais das variantes atuais mais se assemelham àquelas que encontraremos na próxima temporada de espirros. Isso é, precisamos prever o futuro.

Qualquer pessoa que acompanha a Bolsa de Valores ou já tentou comprar moeda estrangeira para uma viagem sabe como é difícil antecipar a situação do dia de amanhã, o que dizer daquela que se apresentará dali a seis meses. Realizar previsões confiáveis está entre os problemas mais desafiadores da ciência. Assim como o bom investidor se cerca de informações sobre as condições do mercado para embasar suas decisões, para fundamentar o design da vacina os cientistas reúnem uma grande quantidade de informações que retratam a situação atual do vírus. Colhem amostras do vírus da gripe ao redor do mundo, registrando o local e a data de coleta. Identificam as sequências genéticas para acompanhar o ritmo da sua evolução. Além disso, como a interação do vírus com o sistema imune é fundamental para a vacina, quantificam quão semelhantes ou diferentes os vírus são nesse quesito.

Mas como extrair sentido desses dados? O que as sequências genéticas de fato podem nos dizer? Comparando-as, podemos determinar quais variantes do vírus são mais próximas ou mais distantes umas das outras, e com os métodos estatísticos adequados podemos até reconstruir a “genealogia” da gripe e identificar em quais linhagens a evolução ocorre de modo mais rápido. Com base em amostras de vírus do passado e informações bioquímicas das proteínas da gripe, é possível mapear as regiões das sequências que são os motores da evolução viral em cada temporada. É crucial, pois, desenvolver métodos estatísticos, geralmente envolvendo um grande componente computacional para integrar dados tão diferentes e deles extrair conhecimento que auxilie no design da vacina.

E assim, todo ano, a Organização Mundial da Saúde reúne um grupo de especialistas que, de posse dos dados disponíveis e do resultado dos estudos mais recentes, seleciona as variantes do vírus que serão empregadas para produzir a vacina do ano seguinte. É uma aposta. Apoiada em dados e na melhor ciência disponíveis, mas uma aposta. (Esse exercício deverá ser repetido anualmente, até que novas tecnologias o tornem obsoleto.)

E qual o resultado dessa aposta? Bem, todo ano milhares de vidas são salvas e milhões de pessoas deixam de ser infectadas devido à ação da vacina. Pouco não é.

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Gabriela Cybis é bióloga, professora de Estatística na UFRGS, atua em modelagem estatística para genética

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Simulando epidemias https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/02/27/simulando-epidemias/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/02/27/simulando-epidemias/#respond Thu, 27 Feb 2020 17:33:07 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/02/sims-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=60 Por Gabriela Cybis

Como a modelagem matemática lida com a dispersão de vírus, do corona a zumbis

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Logo que surge uma epidemia viral, começam a ser divulgadas informações sobre o número de novos casos e mortes, e quais as cidades onde se encontram os infectados – primeiro concentradas próximo ao ponto de origem, e gradativamente se espalhando em uma onda que ameaça tomar conta do globo. Nos últimos anos vimos esse filme algumas vezes: em 2002, o SARS que se propagou para dezessete países; em 2009, a gripe suína (H1N1) que se tornou pandêmica atingindo todos os continentes; em 2013, a ameaça da gripe aviária. E agora acompanhamos o desenrolar da epidemia do novo coronavírus.

O que pode ser feito para conter a dispersão do vírus? Governos adotam medidas como fechar escolas; medir a temperatura de passageiros que desembarcam nos aeroportos; proibir a entrada de pessoas vindas de regiões afetadas; restringir o tráfego aéreo; cancelar eventos públicos de grande porte, como as comemorações do ano-novo chinês. Mas como avaliar o efeito real dessas ações? Considerando o impacto econômico e social dessas medidas restritivas, será que o ganho em termos de contenção da epidemia compensa?

A resposta a essas questões é complexa e depende de uma série de fatores. Nem todos os vírus são iguais, e seu modo de transmissão, a facilidade com que infectam novas pessoas, os períodos de latência e a letalidade variam. Além disso, condições sociais, demográficas e até climáticas podem afetar a dinâmica do vírus.

Como não temos bola de cristal, a melhor forma de entender como esses fatores se combinam para determinar o curso da epidemia são os modelos matemáticos que costumam dividir a população em três subgrupos: suscetíveis (quem nunca pegou a doença e, se entrar em contato com ela, pode contraí-la); infecciosos (quem carrega o vírus e, se entrar em contato com pessoas suscetíveis, pode transmiti-lo); removidos (quem não participa mais da dinâmica de infecções, pois ou já se recuperou – e está imune – ou morreu).

Para estudar o progresso da epidemia e traçar estratégias de contenção, os modelos acompanham a rede de interação entre esses grupos, em graus variáveis de detalhe. Nos Estados Unidos, por exemplo, um modelo para doenças tipo gripe utiliza dados de censo, levando em conta mapas, padrões de locomoção, idade e interações no trabalho, na escola e em casa. Simula-se assim um enorme ambiente no qual os agentes (indivíduos) seguem suas rotinas de modo similar ao jogo The Sims. Cada vez que um indivíduo suscetível interage com um infeccioso, ele tem certa probabilidade de contrair a infecção. A simulação é repetida várias vezes para identificar o curso mais provável da epidemia e os resultados das intervenções de controle.

Uma ressalva importante é que o modelo é apenas tão bom quanto seus pressupostos. Se ele não capturar bem o processo de transmissão do vírus, as conclusões vão reproduzir essas falhas.

Afinal, o que aprendemos com esses estudos? A aleatoriedade desempenha um papel importante no curso de várias epidemias. Os modelos podem nos dar estratégias de vacinação em grupos etários, por exemplo privilegiando as crianças, já que o ambiente escolar é propício à circulação do vírus. Propostas combinadas, com ações como distribuição estratégica de antivirais, alterações de comportamento individual e fechamento seletivo de escolas podem obter alto grau de sucesso.

Certas estratégias (o recolhimento de profissionais do local da epidemia, entre outros) podem ter efeito oposto ao desejado. E, claro, tudo isso depende das condições específicas do vírus em questão. O importante é que dispomos de ferramentas científicas para nos ajudar a avaliar o efeito de cada ação, agindo quase como uma bola de cristal que nos ajuda a vislumbrar o resultado de cada escolha (e suas margens de erro).

Na interface entre a cultura pop e a modelagem epidemiológica, encontramos quem? Os zumbis. Diz a tradição que humanos mordidos por zumbis acabam virando zumbis. Eles se encaixam perfeitamente no modelo suscetíveis (humanos), infecciosos (zumbis) e removidos (mortos), e compõem um case lúdico para o ensino desses modelos para as novas gerações de epidemiologistas.

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Gabriela Cybis é bióloga, professora de Estatística na UFRGS, atua em modelagem estatística para genética

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Em busca de Adão e Eva https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/01/23/em-busca-de-adao-e-eva/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/01/23/em-busca-de-adao-e-eva/#respond Thu, 23 Jan 2020 05:00:18 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/01/ilustr-texto-gabriela-catarina-bessell-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=28 Por Gabriela Cybis

Em algum momento do passado, uma mulher foi a última ancestral comum, na linhagem materna, de todos os seres humanos vivos

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Você já parou para pensar em seus ancestrais? Eles ajudam a contar um pouco a história de quem somos. Mas quantos são eles? Bem, a gente tem um pai e uma mãe, quatro avós, oito bisavós, dezesseis tataravós etc. A cada geração que recuamos, o número de ancestrais duplica. Assim, há dez gerações, em torno do ano 1690, você teria 2^10=1024 ancestrais, alguns dos quais podem ter presenciado o fim do Quilombo dos Palmares. Há 1200 anos, quando teve início a era das excursões vikings, você teria mais de 68 bilhões de ancestrais.

Esse número é claramente absurdo, uma vez que a população humana não chegava a 300 milhões no ano 800 DC. Como conciliar essa aparente contradição? É simples: vários desses ancestrais devem ter sido a mesma pessoa, o que significa que houve uma grande quantidade de endocruzamentos na história da humanidade. Somos todos parentes, uns dos outros e de nós mesmos.

Nesse contexto, talvez seja mais interessante investigar não quantos ancestrais distintos nós temos, mas sim aqueles que temos em comum. A chave para esta questão está na genética. Mas estudar ancestralidade compartilhada é incrivelmente complexo, dada a maravilhosa balbúrdia da reprodução sexuada. Para simplificar a questão, buscamos um modelo em que a recombinação de material genético de pai e mãe não dificulte a análise do passado.

Um bom exemplo é o DNA mitocondrial. Mitocôndrias são organelas celulares que carregam seu próprio material genético, e que são herdadas apenas na linhagem materna. Você recebeu suas mitocôndrias da sua mãe, que por sua vez as recebeu da mãe dela, e sucessivamente, sem a complicação de interação com as linhagens paternas. Assim, a ancestralidade compartilhada pela linhagem materna pode ser reconstruída comparando o DNA mitocondrial de várias pessoas.

Esses dados são analisados à luz de um modelo que reproduz matematicamente as probabilidades de encontro de diferentes linhagens ancestrais. O modelo começa no presente e olha para o passado, partindo do pressuposto de que cada pessoa da geração atual herdou suas mitocôndrias de uma pessoa da geração anterior. É possível que duas pessoas compartilhem a mesma ancestral na geração anterior –são irmãos–, ou há duas gerações –são primos–, ou há mais tempo ainda.

Ao estender esse argumento a um conjunto maior de indivíduos, a teoria das probabilidades nos garante que, se esperarmos tempo suficiente, é inevitável que todos os seres humanos vivos chegaremos a um único ancestral comum. Essa dinâmica representa o processo de “coalescência”, decorrente do modelo de Wright-Fisher, um dos modelos mais clássicos da genética de populações.

Aqui, cabe uma curiosidade: se revertermos o sentido do tempo para esse argumento, também é possível garantir que, se esperarmos tempo suficiente, em algum momento do futuro, alguma mulher viva hoje será a ancestral –dará origem– a todos os seres humanos do planeta. Isso, é claro, se a humanidade não for extinta antes.

A consequência surpreendente deste argumento é que, em algum momento do passado, existiu uma mulher que foi a última ancestral comum, na linhagem materna, de todos os seres humanos vivos hoje. Vale ressaltar que essa figura, batizada de Eva mitocondrial, não vivia isolada: era contemporânea de diversas outras pessoas. Enquanto todos nós somos descendentes dela na linhagem materna, e portanto dela herdamos nossas mitocôndrias, provavelmente também herdamos material genéticos dessas outras pessoas.

Na busca da mãe primordial, foram realizados diversos estudos que combinam derivações teóricas do processo de coalescência e análises genéticas do DNA mitocondrial. Estima-se que a matriarca tenha vivido há aproximadamente 150 mil anos, em algum ponto da África subsaariana, possivelmente em região próxima ao rio Zambezi.

Caminho semelhante pode ser percorrido para linhagens masculinas. Assim como as mitocôndrias são herdadas das nossa mães, o cromossomo Y, presente apenas nos homens, é herdado por meio da linhagem paterna. Ao estudar a ancestralidade compartilhada pelo cromossomo Y, chega-se ao pai de toda a humanidade. Esse ancestral comum de todos as pessoas vivas hoje recebe o nome de Adão do cromossomo Y. Estudos divergem quanto à sua datação, estimando que ele teria vivido entre 200 mil e 120 mil anos no passado, também na África subsaariana. Infelizmente, a natureza parece carecer de romantismo: é muito provável –quase certo, para ser mais preciso– que Adão e Eva nunca tenham se conhecido.

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Gabriela Cybis é bióloga, professora de Estatística na UFRGS, atua em modelagem estatística para genética

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