Ciência fundamental https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br O que pensam os jovens cientistas no Brasil? Thu, 02 Dec 2021 15:29:05 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Os dados (não?) mentem https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/07/16/os-dados-nao-mentem/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/07/16/os-dados-nao-mentem/#respond Fri, 16 Jul 2021 13:16:43 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/imagem-ciência-de-dados-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=480 Por Edgard Pimentel

Correlações, causalidades e conclusões espúrias

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Uma boa estratégia para obter informações sobre o mundo, e se preparar pra enfrentá-lo, é observar. Dar uma conferida no tempo e apanhar um guarda-chuva, olhar pros lados antes de atravessar a rua. Buscamos os dados, analisamos e tomamos decisões. O processo parece simples, mas às vezes é bem complicado. Os dados podem ser muitos, são passíveis de imprecisões, os métodos de análise nem sempre se revelam os mais adequados e, sobretudo, nossa pergunta pode estar errada. Afinal, contra dados, há argumento?

Tales de Mileto, reputado por inaugurar uma cosmologia independente dos mitos, é também referido como um ávido observador –segundo a lenda, ele chegou a cair num poço enquanto caminhava observando as estrelas. Mas, munido de dados, ele teria previsto um eclipse e determinado a data dos solstícios. E, segundo Aristóteles, ele teria prenunciado colheitas favoráveis e até concluído que a Terra era redonda.

Não estava sozinho, Tales. Hiparco, Eratóstenes e Ptolomeu são apenas alguns que reuniram observações e dados para responder a perguntas fundamentais sobre o mundo. A acurácia do modelo ptolomaico é impressionante, mesmo operando sob a hipótese do geocentrismo. A própria queda do paradigma geocêntrico e a revolução copernicana, ou as leis de Kepler, se beneficiaram dos dados obtidos pelo dinamarquês Tycho Brahe no complexo situado na ilha de Ven.

Nestes casos, um conjunto de observações levou a previsões. Mas não é clara a conexão entre os dados e os fenômenos previstos. Teria sido causalidade? Será que condições meteorológicas no inverno causariam boas colheitas nas estações seguintes? Ou apenas haveria uma forte correlação entre estes fatos?

Causalidade é sutil, e está ligada à ideia de implicação. Aparece quando um fato leva a outro: uma bola de bilhar se choca com outra e causa seu movimento; o vapor numa caldeira aciona um mecanismo. No universo dos dados a ideia é a mesma. Suponha que aumentos nos gastos do governo causem aumentos do nível de demanda agregada, e por consequência do emprego. Então, sempre que os dados indicarem que houve o primeiro, podemos esperar pelo segundo. Mais ainda, podemos usar o primeiro para produzir o segundo. Causalidade está muito próxima da ideia de uma regra, ou um modelo.

Correlação é diferente. Pode ser fruto da causalidade ou mero produto do acaso –e pode ser espúria! No livro “Spurious Correlations”, Tyler Vigen reúne exemplos divertidos de correlações. O número de doutores em engenharia civil nos EUA é altamente correlacionado ao consumo de queijo muçarela. Já o número de doutores em ciência da computação é fortemente correlacionado às vendas de HQs. Um favorito: o número de estudantes matriculados nas universidades norte-americanas corresponde quase perfeitamente ao número de acidentes domésticos causados por quedas de televisores.

E daí? Ora, correlações elevadíssimas podem ocorrer mesmo entre fatos não relacionados. E podem ser úteis: se soubermos que no próximo ano haverá muitos doutores em engenharia, será que vale a pena investir em muçarela? E se aumentar o número de calouros nas universidades, não seria o caso de prestar mais atenção aos televisores em casa? Não que exista uma regra que prescreva a relação entre estes fatos. Ainda assim, olhar pros dados pode nos indicar um caminho.

Até aqui a discussão é, digamos, platônica; os dados estariam corretos e descreveriam exatamente o que esperamos. Na realidade, as coisas não funcionam bem assim. Veja os censos do IBGE de 1991 e 2000. Os dados de cada questionário (microdados) contêm informação muito valiosa. Em particular, nos permitem comparar várias dimensões da vida econômica e social no país em dois momentos. Mas há alguns detalhes.

A moeda nacional não era a mesma em 1991 e 2000, tampouco o número de municípios no país. Ou seja, apesar da correção dos dados e do exame de analistas muito experientes, há sutilezas que podem levar a imprecisões se os atores do processo não estiverem articulados. Como no caso recente sobre vacinas supostamente vencidas, em que um esforço multidimensional para informar levou profissionais a revisitar dados e conclusões, e a forma como eles são obtidos. Do ponto de vista da análise de dados, o aprendizado e o refinamento que resultam desses processos se tornam patrimônio social e melhoram a vida das pessoas.

Seja pela causalidade, seja por meio de correlações inimagináveis, ou até pela estranheza das conclusões, os dados estão lançados. Basta perguntar.

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Edgard Pimentel é matemático e professor da PUC-Rio.

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Elementar, senhores juízes: a matemática e a espionagem https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/07/08/elementar-senhores-juizes-a-matematica-e-a-espionagem/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/07/08/elementar-senhores-juizes-a-matematica-e-a-espionagem/#respond Thu, 08 Jul 2021 10:35:35 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/enigma-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=470 Por Edgard Pimentel

A criptografia no sistema de justiça

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O trabalho de um matemático é parecido com o de um detetive, um espião ou um promotor. Em matemática, começamos com algumas suspeitas, certas pistas e um pouco de intuição. Depois de um tempo vem a descoberta e as evidências que a sustentam. Mas o sentido inverso desta comparação pode ser bem interessante: a matemática dos agentes secretos, da segurança nacional e até mesmo dos tribunais.

Mensagens secretas existem desde que as pessoas começaram a se comunicar. E a necessidade de proteger seus conteúdos está na origem de uma importante área da matemática, a criptografia. Este conjunto de técnicas tem dois objetivos, duais: de um lado, desenvolver regras que permitam codificar mensagens com segurança; do outro, obter estratégias para quebrar esses códigos.

Um exemplo elementar é a chamada cifra de César, que o historiador romano Suetônio assim descreveu: escreve-se a mensagem secreta e então substituem-se as letras A por D; B por E; C por F, e assim por diante. Substituímos uma letra qualquer por aquela que ocupa três posições adiante no alfabeto. Mas e quando as letras acabam? O que fazer com o X ou o Z? Simples: o X será substituído por A; o Y será trocado por B, e o Z por C. Ora, identificar o fim e o início de uma lista está bastante presente na matemática. A noção de aritmética modular, ou congruência, devida ao alemão Gauss, é uma formalização desta ideia.

A cifra de César é um exemplo de criptogafia por substituição. Um modo de fortalecer uma cifra de substituição é recorrer a mais de um alfabeto (letras e números, digamos), a chamada cifra polialfabética. Um bom exemplo é a cifra de Hill, que associa cada letra a um número e usa álgebra linear para produzir mensagens cifradas por meio da multiplicação de matrizes. São polialfabéticos os sistemas de criptografia Enigma e Purple que a Alemanha e o Japão utilizaram na Segunda Guerra Mundial.

Mais recentemente, matemática de extrema sofisticação entrou em campo. Descobriu-se que um sujeito capaz de guardar segredos é o logaritmo discreto (não se trata de uma piada!). O logaritmo discreto pode ser definido em qualquer grupo. E calculá-lo em alguns grupos pode ser muito difícil. Assim, um código cuja chave depende de resolver logaritmos discretos sobre estes grupos é mais difícil de ser quebrado. Aqui, entram em cena números primos muito (muito!) grandes e curvas que nos lembram a orla de Copacabana.

Decifrar mensagens secretas é descobrir verdades, e este exercício se manifesta também nos tribunais. A admissão de evidências baseadas em DNA deve-se à teoria das probabilidades. Os treze pares de genes usados para identificação variam tanto que a chance de duas pessoas distintas dividirem os mesmos pares é inferior a 1 em 400 trilhões. Já a análise estatística dos fragmentos de alguns projéteis foi utilizada para tentar responder se havia ou não um segundo atirador em Dallas, naquela sexta-feira de novembro de 1963.

Mas se servir da matemática nos tribunais não é unanimidade. Em artigo publicado na “Harvard Law Review”, Laurence Tribe, que é professor emérito de direito constitucional naquela universidade, trata o tema com cautela. O problema? O uso da matemática como peça infalível poderia acarretar erros no sistema de justiça.

No fim do século XIX, o militar francês Alfred Dreyfus foi acusado de fornecer informações secretas ao exército alemão. A análise estatística de sua grafia em um memorando comprovaria sua culpa. Em 1904, os matemáticos Darboux, Appel e Poincaré entraram em campo e revisitaram a análise estatística da tal grafia. A conclusão desses notáveis foi que a análise era amadora e decorria do mau uso das probabilidades. E estava equivocada.

Mas o recado deste trio é muito mais profundo: para ser útil de verdade, e melhorar a vida das pessoas inclusive em dimensões secretas, a matemática precisa ser feita (e usada) com decoro.

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Edgard Pimentel é matemático e professor da PUC-Rio.

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Dois rabinos se encontram na lousa https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/05/29/dois-rabinos-se-encontram-na-lousa/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/05/29/dois-rabinos-se-encontram-na-lousa/#respond Sat, 29 May 2021 10:24:41 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/catarina-talmud-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=428 Por Edgard Pimentel

Um passeio pela matemática na tradição judaica

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Pensar matemática (ou sobre ela) é natural. Como consequência, várias sociedades se dedicaram ao tema, ao longo dos tempos. Por exemplo, são diversas as contribuições dos gregos e os avanços da matemática árabe. Há ainda os feitos da matemática oriental, e a matemática subsaariana, que informa a matemática egípcia, ou o conhecimento matemático pré-colombiano. E há a tradição matemática judaica.

O Talmud, palavra que em hebraico significa estudo, é um conjunto de livros que abordam diversos aspectos da vida judaica. Escrito ao longo dos séculos 1 e 6 e impresso pela primeira vez na Veneza do século 16, ele é composto de seis grandes partes que se desdobram em mais de sessenta tratados. De forma muito simplificada, a obra registra a Torá oral e sua interpretação.

Uma das discussões no Talmud é sobre o número Pi, que é definido como a razão entre o comprimento de uma circunferência e seu diâmetro. Este número aparece em situações variadas, da engenharia civil à navegação aeroespacial, passando pelas telecomunicações. No Talmud, pode-se ler que um círculo cuja circunferência é igual a três palmos terá um palmo de diâmetro. Ou seja, que o número Pi é igual a 3. O surpreendente é que o texto parece antecipar a incorreção de tal assertiva, e como justificativa cita o livro bíblico de Reis I. É aqui que um quebra-cabeça importante se instala.

Por um lado, o texto bíblico afirma que Pi vale 3; por outro, os sábios, ou rabinos, do Talmud conhecem aproximações de Pi que contrariam este fato. Mais ainda, suspeitam ser impossível determinar este número de modo cabal. Como conciliar a afirmação bíblica –supostamente blindada– e o conhecimento disponível sobre o tema? Inúmeras tentativas se apresentam, mas a mais curiosa sustenta que a escolha do valor 3 serviria para simplificar os cálculos: seria mais fácil entender um valor “redondo”. Mais ainda: para finalidades rituais, o valor 3 seria suficiente.

É apenas em 1168 que um dos principais intelectuais da tradição judaica medieval, Maimônides, oferece uma resposta ao dilema de seus antecessores. Em um de seus comentários ao Talmud, Maimônides afirma que o número Pi é irracional, que 3,14 é uma aproximação conhecida “e aceita pelas pessoas educadas”, e finalmente decide que, uma vez que conhecer o número todo é impossível, a escolha por utilizar sua parte inteira –ou seja, o número 3– era justificada.

A importância de Maimônides para a matemática judaica extrapola este caso particular. Em seu Guia dos Perplexos, ele menciona –sem demonstrar– propriedades geométricas que havia aprendido na versão em árabe das Cônicas, de Apolônio. Como esta obra não havia sido traduzida para o hebraico, matemáticos da tradição judaica se dedicaram a estabelecer, de forma independente, tais propriedades. Surgiram então, variadas demonstrações dos fatos mencionados por Maimônides.

O interesse da intelectualidade judaica pela matemática pode ter se iniciado a partir de questões da observância religiosa –para saber, por exemplo, como construir estruturas de acordo com os preceitos da tradição. Mas rapidamente tornou-se independente. Em 1321, Levi ben Gershon publica a obra Maaseh Hoshev [A arte de calcular]. Em muitos aspectos, este texto parece aqueles utilizados hoje: uma parte teórica, seguida de aplicações e uma lista de problemas.

Antes ainda, Ibn Ezra, em seu Livro dos Números, de 1146, fornece diversos exemplos para discutir importantes fatos sobre séries numéricas. E também no século 12 é Abraham Bar Hiya que nos ensina a calcular a área do círculo tratando-o como um… triângulo! Bar Hiya pensava o círculo como um disco de vinil: se o cortássemos longitudinalmente e abríssemos suas ranhuras, teríamos um triângulo cuja altura é o raio do círculo e cuja base é seu diâmetro. Seu método foi formalizado rigorosamente apenas na década de 90 do século passado.

Na tradição judaica, a matemática aparece de diversas maneiras: no estudo do número Pi, no interesse por somas e aproximações de números importantes, na busca pelo pensamento rigoroso, e em muitos outros níveis. A propósito, como em qualquer sociedade, em qualquer ponto do tempo.

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Edgard Pimentel é matemático e professor da PUC-Rio.

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Quando a arte é um problema de matemática https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/02/03/quando-a-arte-e-um-problema-de-matematica/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/02/03/quando-a-arte-e-um-problema-de-matematica/#respond Wed, 03 Feb 2021 13:19:50 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/arte_linoca_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=319 Por Edgard Pimentel

O binômio de Newton é tão belo como a Vênus de Milo

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A matemática tem inspirado e favorecido a arte. Perspectiva, proporção e simetria, por exemplo, são fundamentais nas artes plásticas. E o cravo foi bem temperado com uma boa pitada matemática. As bandeirinhas de Volpi, os azulejos de Athos Bulcão, o cubismo… Mas, e o contrário? Será que a arte inspira a matemática?

Vem do outro lado do Atlântico uma evidência da conexão entre arte e matemática. Segundo Fernando Pessoa, “o binômio de Newton é tão belo como a Vênus de Milo”, só que as pessoas não se dão conta disso. Aqui, a arte empresta seus ideais como uma seta que aponta para beleza do objeto matemático. Mas talvez se possa ir adiante.

Em 1954, o Congresso Internacional de Matemáticos (ICM, International Congress of Mathematicians) ocorreu em Amsterdã. Do programa constava uma exposição de Escher, cuja obra tem caráter fortemente geométrico. Basta ver suas escadas finitas que parecem sempre subir. Ou o revestimento de um plano com uma única figura (e.g. um peixinho alado) por meio de transformações matemáticas, sem deixar nenhum espaço vazio. O peixinho é uma região fundamental para um grupo de simetria –transformações do peixinho que resultam nele próprio.

Naquele congresso, Escher teve a oportunidade de se aproximar de cientistas como os matemáticos Harold Coxeter e o vencedor do Nobel Roger Penrose, também físico. A troca de cartas com o primeiro o inspirou a finalizar as obras “círculos-limite”: uma mesma figura se replica no interior de um círculo, ficando cada vez menor à medida que se aproxima das bordas.

Mas o contrário também teria lugar: as obras do artista teriam motivado, ao menos em parte, Roger Penrose e seu pai, Lionel Penrose. Em um artigo de 1958, publicado no The British Journal of Psychology, pai e filho discutem ilusões de ótica e a percepção de formas impossíveis. Uma das duas referências do trabalho é o catálogo da exposição de Escher, aquela de 1954.Talvez Escher e seus “parças” sejam uma via de mão dupla para a inspiração entre arte e matemática.

Por outro lado, será que a matemática poderia responder a alguma pergunta importante da arte?

Datar uma obra que não tem registro cronológico é tarefa relevante para a história da arte. Ou entender se, e como, o estilo de um/a artista se alterou com o tempo. E a matemática pode ajudar a desvendar essas questões. Como? Tratando uma pintura como um objeto matemático, uma função. E decompondo essa função em unidades menores. O estudo dessas unidades menores é uma chave que destrava informações sobre o/a artista em questão.

Uma ferramenta muito eficiente nesse sentido são as ondaletas: funções muito especiais que, como o nome sugere, parecem ondinhas, pequeninas e bem-comportadas. E extremamente poderosa –a ponto de o formato JPEG depender delas. Quando uma pintura é analisada por meio de ondaletas, o resultado é um conjunto de números que carregam informações sobre a pintura.

Na década passada, os museus Van Gogh e Kröller-Müller puseram à disposição de um estudo multidisciplinar mais de cem fotografias de alta resolução das obras de Van Gogh. Combinando ondaletas com aprendizagem de máquina, um grupo de cientistas obteve informações surpreendentes. Eles encontraram evidências, por exemplo, de que o número de pinceladas de Van Gogh é maior no período em que ele está em Paris e não em Arles. Uma das pesquisadoras-líder daquele grupo era a matemática belga Ingrid Daubechies.

Em 2018, o ICM aconteceu no Rio de Janeiro. Na ocasião, Daubechies discorreu acerca do estudo das obras de Van Gogh e de outros problemas da arte que motivaram pesquisas matemáticas. Dentre eles, a pesquisadora falou dos desafios por trás da remoção de rachaduras em uma pintura, capaz de revelar um texto de Tomás de Aquino em uma peça dos irmãos Van Eyck.

Arte, matemática e ciência devem ter muito mais em comum do que nos salta aos olhos –afinal, são formas de elaboração do espírito humano. Tomara que haja cada vez mais gente que se dê conta disso.

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Edgard Pimentel é matemático e professor da PUC-Rio.

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A matemática da formação de um par perfeito https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/07/08/a-matematica-da-formacao-de-um-par-perfeito/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/07/08/a-matematica-da-formacao-de-um-par-perfeito/#respond Wed, 08 Jul 2020 15:20:29 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/pares.-edgard-pimentel.-catarina-bessell.web_.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=160 Por Edgard Pimentel

Será que existe uma receita para formar duplas infalíveis?

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Arroz e feijão, Lisboa e o Tejo, Simon e Garfunkel, Ullmann e Bergman, John e Yoko. Pares, duplas, casais. Qual o segredo por trás de alguns pares que parecem perfeitos? Será que existe uma receita para formar duplas infalíveis? E será que a matemática tem alguma coisa a ver com isto?

Nos anos 60, havia um problema importante no sistema de saúde norte-americano, a respeito da alocação de médicos e médicas que haviam acabado de se formar em hospitais de todo o país. Como não eram nem os profissionais nem os hospitais que escolhiam quem iriam para onde, com frequência muitos médicos e médicas acabavam em locais que consideravam menos preferíveis, enquanto os hospitais não conseguiam contratar suas melhores opções.

Motivados por este problema – e por diversas outras questões que frequentam o imaginário matemático –, David Gale e Lloyd Shapley propuseram uma regra para a formação de pares. O que ficou conhecido como algoritmo de Gale-Shapley é uma receita que, se seguida, garante que os pares formados não se veem incentivados a se romper. Ou seja, um/a profissional não é capaz de trocar de hospital sem acabar em um cenário pior.

Gale e Shapley fundavam assim uma importante área de pesquisa em matemática, a teoria de matching, de central importância à teoria dos jogos. Eles haviam demonstrado que se houver dois grupos que têm um interesse mútuo (hospitais e médico/as, professores e escolas, pessoas e pessoas) é possível alocar integrantes de um grupo a integrantes do outro, sem que eles manifestem uma propensão a realocações. Para tanto, bastaria que cada um listasse os integrantes do outro grupo segundo sua ordem de interesse. E o algoritmo se encarregaria do resto.

Por falar em grupo, David Gale e Lloyd Shapley pertenceram a uma seleção de mentes verdadeiramente brilhantes, por assim dizer. Estudantes de doutorado na Princeton da virada dos anos 40 para os 50, tiveram como mentor Albert Tucker, que também orientara John Nash. Diz-se que foi Gale quem sugeriu um dos ingredientes fundamentais ao desenvolvimento do famoso equilíbrio de Nash.

Uma curiosidade sobre o método: ele opera por candidatura e descarte. Ou seja, integrantes de um grupo se candidatam a integrantes do outro. E os últimos decidem com quem permanecem pareados com base nas candidaturas que receberam. É possível provar em termos matemáticos que o grupo que se candidata tem um resultado melhor.

A teoria continuou a atrair a atenção de vários pesquisadores ao longo dos anos. No começos dos anos 80, durante um estágio de pós-doutorado na Universidade da California em Berkeley, a pesquisadora brasileira Marilda Sotomayor envolveu-se com a área. É desta época seu primeiro trabalho, dentre alguns, em colaboração com David Gale.

Alguns anos depois, em 1990, Marilda publicaria junto com o economista norte-americano Alvin Roth um dos livros clássicos da área, que acabou por contribuir para a divulgação do tema e atrair a atenção de diversos cientistas. Até hoje a teoria de matching continua a se desenvolver, com aplicações diversas a problemas em ciências da vida e à economia. Não por acaso a área foi agraciada com o prêmio Nobel de Economia de 2012.

É certo que o segredo para formar duplas perfeitas tem diversas camadas de adorável desafio. Mais verdade ainda é que parte da graça está em não haver receita. Mas quando o assunto é a curiosidade humana e a matemática, bem, este é um matching made in heaven.

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Texto atualizado no dia 17 de agosto de 2020

Esta coluna foi produzida especialmente para a campanha #CientistaTrabalhando, que celebra o Dia Nacional da Ciência. Ao longo do mês de julho, colunistas cedem seus espaços para abordar temas relacionados ao processo científico, em textos escritos por convidados ou por eles próprios.

Edgard Pimentel é matemático e professor da PUC-Rio

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Onde fica, quanto é ou quanto dura o infinito? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/06/24/onde-fica-quanto-e-ou-quanto-dura-o-infinito/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/06/24/onde-fica-quanto-e-ou-quanto-dura-o-infinito/#respond Wed, 24 Jun 2020 10:00:03 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/infinito.-edgard-pimentel.-valentina-fraiz.web_.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=153 Por Edgard Pimentel

Seja na filosofia, poesia ou matemática, ele intriga a humanidade

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Um lugar muito, muito longe, um número muito, muito grande, um tempo muito, muito longo. O que será isso que chamamos infinito? Ele aparece na filosofia, na poesia e na matemática, em variados contextos. Ora tentamos entendê-lo, ora utilizá-lo.

Os gregos ocuparam-se do infinito. Zenão, por exemplo, fala dele em um de seus paradoxos, aquele sobre o dia em que Usain Bolt perde a prova dos cem metros rasos para uma tartaruga. A ideia é que se ambos largam na mesma posição, mas as passadas de Bolt são cada vez menores –infinitamente menores–, o velocista poderia correr para sempre sem nunca alcançar a linha de chegada. A tartaruga teria tempo de terminar a prova, e até mesmo espocar uma garrafa de champanhe.

Parece simples, mas a ideia de um corpo que se movimenta para sempre em direção a algo, sem alcançar seu alvo, chamou a atenção de Aristóteles. Em sua “Metafísica”, o filósofo introduziu os conceitos de potencialmente infinito (inacabado) e verdadeiramente infinito (algo completo). E foi com essa dicotomia que ele explicou o paradoxo.

Mas o infinito não é prerrogativa da ciência ou da filosofia. O poeta italiano Giacomo Leopardi se aventurou a explicá-lo por comparação com o aquilo que é finito. Em seu poema “O infinito” (uma das traduções para o português é de Vinicius de Moraes), ele não diz o que é o infinito, mas elenca atributos que ele parece não ter.

E se o assunto é atributos do infinito, temos que falar da sua utilidade. Leibniz e Newton o utilizaram. Se comparamos a distância percorrida por uma bicicleta com o tempo de percurso, falamos da sua velocidade média. Entretanto, a velocidade instantânea de um objeto –aquela que se refere a cada instante– é mais delicada: precisamos considerar distâncias e intervalos de tempo infinitamente pequenos. Não por acaso a disciplina fundada por estes gigantes é chamada cálculo infinitesimal: Zenão é um exemplo recorrente em meu curso de cálculo.

A matemática dedicou-se formalmente ao infinito com Georg Cantor (1845-1918) e sua teoria dos conjuntos, que envolve profunda abstração. E foi navegando nestas águas que ele se deu conta da existência de mais do que um único infinito! E ainda mais: da existência de infinitos com tamanhos diferentes.

Vejamos: os números naturais –1, 2, 3, e por aí vai– formam um conjunto infinito. Mas o que distingue esse conjunto é que podemos contar seus elementos. Um infinito que se pode contar é o menor de todos. Mas há ainda infinitos maiores, ou que não podemos contar.

Outra curiosidade: se a quantidade de números naturais é infinita, mas podemos contá-los, vamos dispô-los numa caixa. Da caixa, retiramos os números pares. Quantos números sobram? A pergunta torna mais sofisticado o trivial “Maria tem quatro laranjas…” e dá origem a uma coisa surpreendente: sobram tantos números quanto antes havia. Ou seja, há tantos números pares quanto ímpares. E se reunimos os dois, acabamos com a mesma quantidade. É como se dividir uma quantidade infinita pela metade resultasse no mesmo infinito.

Outra aventura é conhecida como hotel de Hilbert. Vamos imaginar um hotel com infinitos quartos, todos ocupados. O que acontece se um turista desavisado chegar? A primeira resposta é que ele estaria sem sorte. Mas não é bem assim: se mudarmos o hóspede do quarto 1 para o quarto 2, e o hóspede do quarto 2 para o 3 e assim por diante, o primeiro quarto ficará vazio e todos terão onde passar a noite. Em um hotel infinito, mesmo que totalmente ocupado, sempre cabe mais um.

Atualmente, o infinito tem sido útil na área de equações diferenciais (quem se lembra?). A estratégia é tratá-lo como o pote de ouro no fim do arco-íris: ligamos uma equação ao infinito. Seguindo o arco-íris, chegamos ao pote e apanhamos algum ouro. Não podemos trazer tudo, mas o que trazemos é suficiente: a informação vinda do infinito resolve problemas atuais, fundamentais, da área.

Seja utilizando-o ou apenas contemplando suas sutilezas, o infinito continuará a encantar e intrigar a humanidade, digamos, infinitamente.

Edgard Pimentel é matemático e professor da PUC-Rio

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O barato da natureza, mais barato na matemática https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/05/20/o-barato-da-natureza-mais-barato-na-matematica/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/05/20/o-barato-da-natureza-mais-barato-na-matematica/#respond Wed, 20 May 2020 17:22:13 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/ilustra-edgard-pimentel.-Catarina-Bessell.web_.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=126 Por Edgard Pimentel

A natureza parece sempre perseguir a economia de energia. Mas isso é intencional?

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Por que uma bolha de sabão é redonda? Há algum motivo para os favos de uma colmeia serem hexagonais? A resposta mais curta é: porque é mais barato. Por mais curiosa que fosse uma bolha de sabão cúbica, seu custo seria elevadíssimo. No caso da colmeia, o formato hexagonal minimiza a quantidade de cera necessária para construir a estrutura. Estes são dois exemplos de fatos da natureza em que a alternativa mais barata prevalece.

Outro exemplo. Você já se deu conta do desafio que é aplicar um filme adesivo à capa de um livro? Já tentei diversas estratégias para evitar as bolhas de ar que se formam. E fracassei em todas. Na verdade, o problema resulta de um acordo entre os envolvidos: o livro e o filme adesivo. A capa do livro e o filme são feitos de materiais distintos e têm propriedades diferentes. A elasticidade, por exemplo, não é a mesma: cada material estica de um jeito. Como duas coisas que se esticam de forma diferente podem conviver coladas uma à outra? A solução que este par encontrou foi minimizar seu desgaste conjunto. O surgimento de bolhas ao longo da superfície de contato é a configuração que minimiza tal desgaste. Ou seja, a solução parece ser uma combinação de mais eficiente com mais barato.

Agora vamos pensar no processo de gestação dos primatas. É considerado longo. A partir do instante de fixação de um embrião, este é capaz de afetar o funcionamento do corpo da gestante. No fim do corredor, à esquerda de quem entra, está a evolução e a ideia de reprodução a serviço da perpetuação do gene. Juntos, estes fatos sugerem a necessidade de selecionar um embrião antes que ele se desenvolva. Entra em cena o endométrio: uma estrutura adversa para o ambicioso embrião. E o que acontece? Apenas o mais apto – o que quer que isto signifique – vence estas condições e se desenvolve. Quando nenhum candidato passa no teste, o corpo se livra deste material. O ciclo menstrual talvez seja a opção mais barata que a natureza encontrou para equilibrar custos associados à gestação.

Mas será que a natureza faz de propósito? Já se afirmou que a natureza minimiza energia. Ou seja, que estas manifestações resultam de um processo intencional. É claro que uma afirmação tão intensa, e bonita, não é unânime. O matemático Luc Tartar é um dos que refutam esta ideia. Ele argumenta que leis de conservação viajariam pelos fenômenos da natureza. Minimizar energia seria uma consequência dessas leis. Igualmente bela. Intencionais ou não, as configurações que minimizam energia estão presentes na natureza. Além disto, elas aparecem na matemática. Ainda bem.

Vejamos uma área da matemática, a análise de equações diferenciais. Com muitas aplicações em diversas áreas, estas equações nos ajudam a entender alguns fenômenos do dia a dia. O formato de um cubo de gelo num gim-tônica, por exemplo, ou como uma população de eleitores vota, ou ainda quanto investir na Bolsa de Valores. Para cada um desses problemas, existe uma equação diferencial.

E se essa equação estiver ligada a uma configuração que minimiza energia – como a da bolha de sabão –, então o seu estudo é muito simplificado e as respostas que encontramos podem ser muito divertidas, como no caso do cubo de gelo no drinque. Aqui, é possível entender a transmissão de calor entre a bebida e o gelo, o formato da “fronteira” do cubo enquanto derrete, e a temperatura ao longo desta interface.

É verdade que não sabemos se a natureza escolhe economizar ou se minimiza de propósito. Mas sabemos que estas configurações existem. Quando aparecem na matemática, o barato sai quase de graça.

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Edgard Pimentel é matemático e professor da PUC-Rio

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