Ciência fundamental https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br O que pensam os jovens cientistas no Brasil? Thu, 02 Dec 2021 15:29:05 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 A idade da Terra e o abismo do tempo https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/11/03/a-idade-da-terra-e-o-abismo-do-tempo/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/11/03/a-idade-da-terra-e-o-abismo-do-tempo/#respond Wed, 03 Nov 2021 18:57:52 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/caxito-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=577 Por Fabrício Caxito

Sem vestígio de um começo, sem perspectiva de um fim

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“A mente pareceu rodopiar ao olhar tão fundo no abismo do tempo…” Assim o cientista e matemático John Playfar resumiu sua perplexidade quando, em 1788, o amigo James Hutton o levou até Siccar Point, um penhasco na Escócia. O naturalista, químico, médico e geólogo Hutton ocuparia uma posição central no iluminismo escocês do século XVIII, ao lado de figuras como Joseph Black, Adam Smith, David Hume, James Watt e Benjamin Franklin.

O ser humano havia muito já se perguntava sobre a idade da Terra. Já Aristóteles, ao observar que trechos de terra acabaram se tornando mar e vice-versa, havia interpretado o fenômeno como prova de que mudanças observadas na superfície terrestre indicavam um enorme tempo geológico, talvez infinito. Esta ideia de um tempo cíclico e infinito, porém, logo começa a ser desafiada pelos epicuristas, contemporâneos de Aristóteles, que acreditavam num tempo linear, com começo, meio e fim.

Na Idade Média e no Renascimento foram feitas várias tentativas para estimar a data do começo da Terra. O arcebispo James Ussher foi o responsável pela mais famosa delas, de 1658 –partindo da contagem retroativa das gerações da Bíblia, ele concluiu que o mundo havia surgido no dia 23 de outubro de 4004 a.C.

Para aqueles que conheciam e estudavam o mundo natural, porém, esses números eram fantasiosos. Em 1666, Nicolau Steno, médico anatomista da corte de Fernando II de Médici, apresentou uma explicação para as chamadas glossopetrae, ou pedras-língua, rochas de formato triangular imersas no interior de outras rochas na natureza. A explicação para a ocorrência dessas pedras era controversa: Plínio, o Velho, achava que elas haviam caído do céu em noites de lua; Athanasius Kirchner, contemporâneo de Steno, falava de uma “virtude lapidificante”, que com o tempo transformaria todas as coisas naturais em pedra. Steno foi o primeiro a apresentar a interpretação correta: as glos­sopetrae são de fato dentes fósseis de tubarão solidificados em novas rochas. Com o avanço dos estudos de campo e o reconhecimento de diversas camadas com conteúdo fóssil distinto, os cientistas consideraram modestas as estimativas de Ussher e outros religiosos: para o desenvolvimento, e mesmo a extinção, de todas aquelas formas de vida, meros 6 mil anos eram uma idade equivocada.

E aqui entra em cena James Hutton. Em 1875, ele apresentou à Sociedade Real de Edimburgo suas ideias sobre o tempo necessário para a formação da superfície terrestre, mas a recepção de suas hipóteses não foi das mais calorosas. Em busca de provas, Hutton decide empreender uma série de viagens de campo na Escócia, durante as quais descobre diversas evidências.

Em Siccar Point, por exemplo, camadas de rochas com mergulhos diferentes são separadas por uma superfície que os geólogos chamam de “discordância”. Por mergulho, entende-se o ângulo com o qual que cada camada de rocha faz com a superfície da Terra. Hutton foi o primeiro a interpretar corretamente o significado disso. O conjunto de rochas inferior, abaixo da discordância, teria se depositado horizontalmente em um fundo de oceano, lago ou outro tipo de bacia sedimentar. Depois, este conjunto de rochas precisaria ter sido soerguido acima do nível do mar e sofrido uma inclinação de suas camadas devido à deformação no momento de soerguimento, como se fossem levantadas por uma retroescavadeira.

Hoje sabemos que isso ocorre sobretudo nas zonas em que duas placas tectônicas se encontram, formando as cadeias de montanhas. Após o soerguimento das rochas, estas começam a ser erodidas pela ação do vento, da chuva e outros agentes intempéricos. Uma vez que a montanha é erodida até a base, nova bacia sedimentar pode se formar por cima dela, e novos sedimentos podem se acumular horizontalmente sobre a superfície que marca a linha erosiva da cadeia de montanhas. Estes sedimentos que se depositam por cima da superfície podem, por sua vez, ser também soerguidos posteriormente e sofrer erosão, recomeçando assim o ciclo. Hutton reconheceu o enorme significado das discordâncias: o tempo geológico devia ser muito mais extenso do que se pensava, dados os diversos ciclos de deposição, soerguimento, erosão, deposição, soerguimento…

E qual é a resposta para a pergunta inicial de Aristóteles, dos epicuristas, de Ussher, Steno e tantos outros? Por métodos de datação utilizando o decaimento radioativo, hoje sabemos que a Terra tem na verdade cerca de 4,5 bilhões de anos. Você consegue imaginar o que significa este número, ou, assim como Playfar, sua mente parece também “rodopiar ao olhar tão fundo no abismo do tempo”?

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Fabrício Caxito é professor de geologia e aluno de filosofia na UFMG.

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Como a Terra construiu a Amazônia? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/09/06/como-a-terra-construiu-a-amazonia/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/09/06/como-a-terra-construiu-a-amazonia/#respond Mon, 06 Sep 2021 10:09:00 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/amazonia-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=526 Por Pedro Val

Uma conspiração geológica de 3 bilhões de anos

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A Amazônia ocupa 0.5% da superfície da Terra, mas abriga esmagadores 10% da biodiversidade mundial. Imensidão ecológica dessa grandeza não se constrói da noite para o dia. Como ela ocorreu?

Do limite costeiro atlântico ao limite andino, as rochas que sustentam o continente sob a Amazônia foram sendo amalgamadas de leste para oeste, como um engavetamento de carros. Ao longo de 3 bilhões de anos e até aproximados 900 milhões de anos atrás, cerca de seis pequenos continentes se tornaram o que hoje é a parte setentrional da América do Sul. Esse ambiente superestável (que as geociências chamam de cráton) é o primeiro “fator-Amazônia”. Com tanta estabilidade e rochas tão antigas expostas à superfície, os nutrientes que nelas existem vão se perdendo ao longo do tempo para a água da chuva e dos rios. Assim, a riqueza dos solos que recobrem estas rochas é muito maior a oeste da região, onde se encontram as rochas mais jovens. Desta configuração nasce um gradiente ecológico que se reflete em organismos com diferentes resistências ecológicas, forçando uma diversidade longitudinal.

No centro da Amazônia formou-se um corredor abaulado de oeste a leste, acumulando toneladas de sedimentos de origem fluvial e marinha de maneira alternada. Esta sequência se repetiu durante centenas de milhões de anos, preenchendo as depressões e dando origem às bacias sedimentares. Hoje estas rochas compõem o substrato da outra metade espacial da região, dos Andes ao Atlântico. O casamento desse substrato de rochas com o gigantesco volume de água e o clima local faz dos rios amazônicos verdadeiras serpentes a meandrar incessantes. Daí outro fator-Amazônia: condições propícias para separar e misturar populações de organismos aquáticos. Uma receita pronta para a biodiversidade.

Faltam, ainda, alguns elementos-chave, como a combinação do litoral atlântico e os Andes. Devido à tectônica de placas, o continente sulamericano encontrava-se grudado no continente africano há aproximados 250 milhões de anos. Como um zíper, a tectônica de placas iniciou o afastamento entre a América do Sul e a África no limite sul, que culminou na formação do oceano Atlântico. Há cerca de 110 milhões de anos, instalou-se um litoral na borda leste do que hoje é a Amazônia e, com isso, a foz do Amazonas. No entanto, ainda assim não havia um rio que atravessasse todo o continente. A Amazônia possuía duas grandes bacias hidrográficas, uma a leste, outra a oeste, fronteiriça ao atual estado do Amazonas, de norte a sul. Para juntá-las, outra conspiração geológica se urdiu. Em paralelo à lenta migração do continente rumo a oeste, toda a trama das placas tectônicas se rearranjava sob o Pacífico em função do fluxo mantélico no interior do planeta, a centenas de quilômetros de profundidade. Há aproximados 50 milhões de anos, formou-se a placa de Nazca, que desde então colide com o continente sulamericano. De tal colisão resultou o soerguimento dos Andes, fechando a lista de fatores-Amazônia. Os Andes começaram a soerguer na região da Bolívia e no sul do Peru nos últimos 20 a 30 milhões de anos, mas somente atingiram suas altitudes atuais nos últimos 10 milhões de anos.

Com seus majestosos quatro a seis quilômetros verticais, o peso das montanhas abaulou toda a região do sopé andino e até mesmo a região central da Amazônia. A depressão continental decorrente propiciou a entrada de águas marinhas pela Venezuela. O resultado foi um ambiente pantanoso que mistura água doce e água salgada, o “berço da vida”, segundo alguns pesquisadores. Cientificamente conhecido como lago Pebas, esta grande depressão continental perdurou aproximados 15 milhões de anos. A existência e as características desse lago são ainda fortemente debatidos por cientistas.

Os sedimentos oriundos dos Andes em franco soerguimento e erosão foram preenchendo o Pebas, empurrando-o cada vez mais para leste. Uma vez preenchida a depressão, rios conseguiram atravessar a Amazônia, de oeste a leste e, assim, em algum momento nos últimos 9 milhões de anos, formou-se a Amazônia como é hoje. Como sabemos disso? É nesse período que a pilha de sedimentos submersa no offshore logo a leste da foz do Amazonas começou a receber sedimentos tipicamente andinos e não mais das rochas antigas do cráton. E qual seria a idade da Amazônia? Além da proposta de 9 milhões de anos, há duas outras hipóteses principais: ela teria 6 milhões de anos ou 2.5 milhões de anos. Assim como o lago Pebas, o debate da idade da Amazônia é vigoroso.

A grande conexão fluvial propiciou que a fauna acumulada por milhões de anos a oeste se dispersasse para o leste. Há 2.5 milhões de anos, o planeta intensificou as variações em sua órbita que deram o gatilho para os famosos ciclos glaciais do Pleistoceno. Este foi o corolário das mudanças cíclicas na escala de milhares de anos no volume de água da Amazônia, modificando a rede fluvial e criando ciclos climáticos que afetariam o padrão de secas e cheias desde então.

Foram necessários 3 bilhões de anos de eventos geológicos para que a Amazônia chegasse ao que é hoje. Uma conspiração geológica sem paralelos.

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Pedro Val é geólogo e professor na Universidade Federal de Ouro Preto.

Em 2020 e 2021, o Painel Científico para a Amazônia – SPA, sob os auspícios da Sustainable Development Solutions Network, se reuniu para elaborar o primeiro relatório científico integrado sobre a Amazônia. Este texto é inspirado no Capítulo 1 desse documento, de autoria de Pedro Val e colaboradores. O relatório completo pode ser obtido em: https://www.theamazonwewant.org/

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Quando o sertão foi mar https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/08/24/quando-o-sertao-foi-mar/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/08/24/quando-o-sertao-foi-mar/#respond Tue, 24 Aug 2021 10:12:03 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/caxito-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=517 Por Fabrício Caxito

A separação da Pangeia formou um oceano. Será que não houve outros?

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A teoria da tectônica de placas, que ganhou força a partir dos anos 50 do século passado, revolucionou o modo como se olhava o mapa-múndi, com suas separações estanques de massas de água e massas terrestres. Pioneiros como o meteorologista alemão Alfred Wegener e o geólogo sul-africano Alexander du Toit lançaram mão de evidências como o encaixe das linhas da costa da América do Sul e da África, além da presença de rochas e fósseis similares nos dois continentes, e levantaram a hipótese de que, até cerca de 130 milhões de anos atrás, essas duas massas eram unidas em um só continente, a Pangeia. A descoberta da cisão da Pangeia a partir do período jurássico, gerando um novo oceano, o Atlântico, semeou a ideia de que, com o tempo, as massas continentais se deslocam, numa eterna dança de continentes que ocasionou a abertura e fechamento de oceanos e a criação de novas cadeias de montanhas onde duas massas continentais colidiram uma com a outra.

Se a América do Sul e a África se separaram, como suspeitaram Wegener e Du Toit, por que no passado não poderia ter havido, entre os continentes e oceanos, configurações que não conseguimos mais distinguir devido aos ciclos de abertura e fechamento que se sucederam no tempo geológico? Hoje sabemos que a Terra tem cerca de 4,5 bilhões de anos, tempo suficiente para diversos oceanos terem aberto e fechado, e diversos fragmentos de continentes terem colidido e formado supercontinentes em posições bem diferentes das atuais.

Uma pista para desvendar esse quebra-cabeça é procurar, nos continentes atuais, traços de antigos oceanos que se espremeram e se fecharam quando as massas continentais colidiram. A dificuldade de empreender essa pesquisa, porém, se deve, entre outras razões, à dificuldade de encontrar pedaços de antigos oceanos dentro dos continentes.

O fundo dos oceanos é constituído de rochas bastante densas, majoritariamente os basaltos, uma rocha escura muito rica em minerais de ferro e magnésio, bem diferente dos granitos que caracterizam os continentes, ricos em sílica e alumínio, elementos mais leves. Ainda bem que, em algumas situações muito específicas, pedaços de basalto que antes integraram o fundo oceânico acabaram se enfiando em meio às rochas do continente, ficando assim preservados para futuras investigações.

Isto ocorreu, por exemplo, nas zonas de subducção, que são aquelas em que uma placa tectônica entrou por baixo da outra e afundou para o manto terrestre. Neste movimento, pedaços de basalto do fundo do oceano podem ter se desprendido da placa submersa e subido à placa em que estava o continente que havia ficado por cima. Os pequenos pedaços de basalto acabaram ficando conservados como lascas sobre os granitos e rochas sedimentares continentais. Ou seja, estas rochas são muito diferentes de suas vizinhas. Elas têm uma coloração verde-escura específica dos basaltos e outras rochas associadas a eles, e por isto foram chamadas de ofiolitos, do grego “ophios” (serpente) e “lithos” (rocha).

Encontrar ofiolitos em campo e pôr a mão em um pedaço preservado de um antigo oceano é uma alegria enorme para os cientistas. Foi o que aconteceu na região de Monte Orebe, sertão na divisa entre Pernambuco e Piauí, quando, em 2014, um grupo de pesquisadores, do qual faço parte, encontrou e descreveu um pedaço de um oceano de cerca de 820 milhões de anos atrás e o nomeou “ofiolito Monte Orebe”. O estudo foi publicado na revista “Geology” e ajudou a desvendar a configuração de antigas placas tectônicas, continentes e oceanos no nordeste do Brasil.

Curiosamente, a região de Monte Orebe fica logo ao norte da barragem de Sobradinho, na Bahia. E foi a construção da barragem que inspirou a famosa canção de Sá e Guarabyra (por sua vez inspirada nas profecias de Antônio Conselheiro): “O sertão vai virar mar, dá no coração/ o medo que algum dia o mar também vire sertão”.

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Fabrício Caxito é professor de geologia e aluno de filosofia na UFMG.

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O que esperar da grande revolução astronômica https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/02/10/o-que-esperar-da-grande-revolucao-astronomica/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/02/10/o-que-esperar-da-grande-revolucao-astronomica/#respond Wed, 10 Feb 2021 14:05:11 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/ilustra_thiago_serrapilheira_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=322 Por Thiago Gonçalves

Promessas dos telescópios que vêm por aí

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Estamos à beira de uma revolução em nosso entendimento sobre o universo. Nos próximos 10 anos, assistiremos à inauguração de telescópios e observatórios que nos permitirão ver mais longe e mais detalhadamente. Mas, ainda que munida de novos olhos, a ciência não trabalha apenas com dados –vale-se de modelos e teorias. E é a partir de estudos que se constroem instrumentos que vão confirmar os modelos aventados.

Para compreender como funciona esse processo, tomemos como exemplo o telescópio James Webb, prometido para meados da década passada. Com novas câmeras e um espelho de 6,5 metros de diâmetro, 4 metros maior que o do revolucionário Hubble, ele foi desenhado para observar as primeiras galáxias do Universo. Se lembrarmos que a luz tem uma velocidade finita, podemos concluir que quanto mais distante um objeto, mais tempo a luz leva para chegar a nós, e mais antigo é o objeto observado. O Hubble , que reescreveu a astronomia nos últimos 30 anos, foi crucial para quebrar récordes, mas não alcançou às primeiras estrelas, às primeiras galáxias. Diversos modelos preveem as características desses fósseis cósmicos, mas sem dados não há como avaliar qual é o correto.

Tal feito caberá ao James Webb, com o qual poderemos não só ver a primeira geração de estrelas no Universo, mas também encontrar nossas origens cósmicas e tentar entender como tudo começou. Mas não só. Ele também poderá investigar as atmosferas de planetas ao redor de estrelas diferentes do Sol. Nos últimos anos, descobrimos milhares de planetas, muitos deles semelhantes à Terra, simplesmente medindo a diminuição do brilho da estrela quando o planeta passa na frente dela.

Já a descoberta de vida é muito mais difícil. Uma das principais estratégias consistiria em medir a alteração da luz da estrela quando ela atravessa a atmosfera planetária. Para tanto, seria necessário um telescópio com enorme sensibilidade –e mais uma vez o James Webb figura com potencial de protagonizar essa descoberta.

E ele não virá sozinho. Até 2029, serão inaugurados três telescópios colossais: o Magalhães Gigante, com 24 metros de diâmetro; o Trinta Metros (de nome autoexplicativo), e o Europeu Extremamente Grande, com impressionantes 39 metros de diâmetro. (Hoje os maiores do mundo têm 10 metros.)

Em conjunto, esses observatórios terrestres poderão acompanhar as descobertas espaciais, oferecendo pistas como o movimento de estrelas ou a composição química das primeiras galáxias, ajudando a compreender os processos físicos que culminaram na primeira geração de estruturas no cosmos. Ao criar novos instrumentos, porém, devemos estar abertos ao que não esperamos encontrar –é a tal serendipidade.

Alexandre Fleming e Henry Becquerel, responsáveis pela descoberta da penicilina e da radioatividade, respectivamente, ilustram a surpresa positiva do inesperado. Para ambos, os avanços se deram por acaso, se bem que decorreram de técnicas com as quais eles já trabalhavam –e os dois estavam permeáveis a evidências que à época fugiam da compreensão.

O mesmo pode ser dito de Fritz Zwicky, que na década de 1930 descobriu a matéria escura. Seus estudos, no entanto, foram descreditados por seus pares, e a matéria escura só foi levada a sério a partir da década de 1970, com Vera Rubin.

Outros astrônomos tiveram melhor sorte. Arnold Penzias e Robert Wilson observaram pela primeira vez a radiação cósmica de fundo (uma confirmação observacional do Big Bang); Jocelyn Bell e seu supervisor Anthony Hewitt descobriram os pulsares, remanescentes energéticos de estrelas mortas; as equipes lideradas por Adam Riess, Brian Schmidt e Saul Perlmutter viram as primeiras evidências da energia escura. Todos esses trabalhos obtiveram resultados imprevisíveis, e todos foram agraciados com o prêmio Nobel .

O importante com a revolução tecnológica é manter a mente aberta. Os novos telescópios poderão observar fenômenos inéditos, e os cientistas deverão esperar o inesperado.

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Thiago Gonçalves é astrônomo no Observatório do Valongo/ UFRJ e divulgador de ciência.

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Nesta notícia, nenhum asteroide se choca com a Terra https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/01/26/nesta-noticia-nenhum-asteroide-se-choca-com-a-terra/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/01/26/nesta-noticia-nenhum-asteroide-se-choca-com-a-terra/#respond Tue, 26 Jan 2021 10:22:06 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/serrapilheira_renatafontanetto_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=314 Por Renata Fontanetto

Títulos caça-cliques mais desinformam do que comunicam os processos da ciência

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Que atire a primeira pedra (ou meteorito) quem nunca se deparou com um título sensacionalista sobre astronomia. No dia 7 de janeiro, um jornal informou que, segundo a Nasa, o asteroide 2009 JF1, de 130 metros de diâmetro, poderia se chocar com a Terra em 6 de maio de 2022. No dia seguinte, Thiago Signorini Gonçalves, professor no Observatório do Valongo (OV) da UFRJ e membro da Sociedade Astronômica Brasileira, foi ao Twitter dizer que o objeto tem 0,026% de chance de colidir com o planeta e que, na realidade, ele tem 13 metros.

Notícias que pintam a astronomia com as tintas do fim do mundo, ou que apenas pensam na conversão de tráfego on-line para um site –a famosa tática “caça-cliques”– prestam um desserviço: “Transformam o noticiário científico num sensacionalismo que não tem a ver com a pesquisa, separando o público mais ainda da comunidade científica”, diz Gonçalves. Para o astrônomo, que estuda a formação e evolução de galáxias, o propósito seria mais impressionar do que informar: “Estamos perdendo a chance de apresentar o que é o método científico”.

E quais seriam as chances reais de um asteroide colidir com a Terra? Depende. Um objeto é considerado potencialmente perigoso se, ao passar próximo à órbita da Terra, chegar a uma proximidade menor do que 20 vezes a distância até a Lua e caso tenha mais de 100 metros de diâmetro. O monitoramento é efetuado, entre outros, por astrônomos que trabalham com a mecânica celeste e estudam a dinâmica das órbitas dos objetos que estão no Sistema Solar. Diana Andrade, também pesquisadora no OV, tem entre seus objetos de estudo os meteoritos. Com o grupo Meteoríticas, ela viaja o Brasil com outras pesquisadoras em busca de materiais caídos do céu para analisá-los em laboratório.

“Entre Marte e Júpiter, existe um cinturão com muitos asteroides, a maioria com diâmetros pequenos, menores que 100 metros. Há três grupos que têm órbitas próximas à da Terra: Apollo, Atenas e Amor. Os Objetos Próximos à Terra (NEOs, na sigla em inglês) são muito estudados porque duas destas classes –Atenas e Apollo– podem cruzar com a nossa órbita e oferecer algum tipo de risco”, explica a astrônoma. Isso não significa que eles cairão no planeta, mas apenas que as trajetórias precisam ser monitoradas. “A própria atmosfera terrestre consome objetos pequenos por meio do atrito ocasionado por sua entrada. Ele não chegará aqui ou, então, chegará em pedaços menores”, esclarece.

No site da Nasa, existe uma lista com corpos celestes em constante monitoramento. O 2009 JF1 está lá, em quarto lugar. A página traz muitos termos técnicos, mas uma coluna, a última, comunica de forma simples e objetiva, utilizando a escala de Torino. Criada pela União Astronômica Internacional, a escala informa se um corpo próximo à órbita da Terra é perigoso, se pode cair e qual seria o grau de devastação no planeta. De zero a dez, cada número informa o potencial risco, onde zero significa baixíssimo risco de colisão e dez, colisão certa, com destruição em escala global. Atualmente, na última coluna a maioria dos objetos apresenta risco zero.

“Mesmo que um objeto seja sinalizado nos níveis um, dois, três ou quatro, é possível enquadrá-lo no nível zero a partir de novas observações”, informa a astrônoma. Do nível cinco em diante, os corpos são considerados grandes e muito próximos à Terra, o que motivaria um esforço internacional para estudá-los e, se for o caso, buscar minimizar os danos decorrentes do impacto. Eventos dos últimos três níveis são raros –o último acontecimento no nível dez foi o provável asteroide que contribuiu para a extinção dos dinossauros há cerca de 66 milhões de anos.

Se a probabilidade é pequena, grande é a importância de investir nesse tipo de ciência básica. Na opinião de Gonçalves, a ciência não é imediatista, mas uma atividade a longo prazo. “À medida que vamos entendendo, podemos aplicar o conhecimento de formas que a gente nem esperava”, observa. Astronomia, para ele, tem a ver com origens: a do universo e a do nosso lugar nele.

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Renata Fontanetto é jornalista, coordenadora do Núcleo de Mídias e Diálogo com o Público do Museu da Vida, da Fiocruz.

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Água mole, pedra dura, tanto bate… https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/06/17/agua-mole-pedra-dura-tanto-bate/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/06/17/agua-mole-pedra-dura-tanto-bate/#respond Wed, 17 Jun 2020 15:40:03 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/agua-mole.-pedro-val.-catarina-bessell.web_.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=150 Por Pedro Val

Pode o clima acelerar os motores tectônicos da Terra?

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Pergunte a qualquer geocientista: fixadas todas as variáveis, qual rio escava mais rápido seu leito rochoso – aquele nas montanhas tropicais bolivianas ou aquele outro nas montanhas semiáridas da Argentina? A resposta será praticamente unânime: os rios tropicais. Faça a mesma pergunta, só que numa sala de geocientistas que estudam a evolução das paisagens. O grupo vai se dividir. Acontece que essa questão, tão simples e de resposta intuitiva, é extensamente debatida entre pesquisadores da área.

A divergência não é à toa, uma vez que hoje existem mais de 3 mil medidas de taxas de escavação de terreno no mundo inteiro e uma única variável é capaz de explicar 40% delas: o declive do terreno. Andes, Himalaias, Alpes Suíços, quanto mais íngreme, maior a erosão, e não importa o volume da chuva. Os outros 60% se atribuem a relações complexas entre chuva, tamanho dos grãos nos rios, vegetação, estabilidade do solo, resistência da rocha no substrato, entre outros. Por serem complexas, nenhuma dessas variáveis consegue explicar a erosão de maneira tão robusta quanto o declive.

Três mil medidas. Chutando por baixo, toda essa pesquisa deve ter custado ao menos 1 milhão e meio de dólares. Bem aplicados, pois esse investimento é motivado por excelentes perguntas. Uma delas é identificar se um clima mais úmido, por meio de seu pressuposto controle nas taxas de escavação, seria capaz de erodir a superfície de montanhas mais rápido do que elas levantam pelas forças tectônicas. Essa rápida remoção reduziria a massa que sustenta as montanhas, ou seja, diminuiria a sua altura e a profundidade de suas raízes crustais. Com menos massa, é menor a resistência que essa crosta oferece à colisão com a placa tectônica do outro lado. Com menor resistência, a placa que mergulha de volta para o manto abaixo das montanhas o faz mais rápido e com mais facilidade, aumentando a velocidade de convergência entre as placas. É uma hipótese fascinante –o clima seria capaz de afetar o motor do nosso planeta. Um verdadeiro duelo de titãs.

Se os dados negam tão claramente a ação da chuva na erosão, por que o debate segue? Bom, para complicar, há uma impressão digital da chuva na forma das paisagens. A quantidade de rios em um dado espaço, o ângulo de confluência entre dois rios, a declividade dos rios e das vertentes, a vegetação, são todas variáveis correlacionadas ao clima. O clima controla a forma, mas não a capacidade de escavação. Sim, os 3 mil dados das taxas de escavação escancaram um dilema.

Após duas décadas de investigação sobre o desempenho da chuva na erosão, geomorfólogos agora começam a se voltar para uma conjectura adormecida: o que controla a taxa de erosão provocada pela chuva é a vegetação, que estabiliza o terreno e permite alto declive sem aumentar a taxa de erosão. Esta é uma hipótese elegante: há de existir uma “zona perfeita”, como uma goldilocks zone, em que a erosão atinge seu máximo ao longo de um aumento moderado da chuva, mas, ao passar disso, o desenvolvimento de vegetação propiciado pelo clima mais úmido leva a uma queda na taxa de erosão. De fato, são todos argumentos intuitivos, pois ainda não encontramos essas relações de maneira robusta.

Na prática, o que se sabe é que a velocidade com que as forças tectônicas levantam as montanhas é que dita a velocidade com que os rios as erodem. Basta um pouquinho de água que isso já é possível. E se houver pouca água, a gravidade se encarrega do serviço com deslizamentos de terra propiciados pelos terremotos. De uma maneira ou de outra, haverá erosão. Mas então qual é o papel da chuva? Na verdade, o que agora se investiga não é mais quanto chove, mas de quanto em quanto tempo vem aquela tempestade capaz de carregar os sedimentos do tamanho certo para escavar as rochas, já que são os sedimentos que fazem isso, não a água. O foco agora se voltou para o que chamamos de “tempo”, em vez do clima.

A busca continua.

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Pedro Val é geólogo e professor na Universidade Federal de Ouro Preto

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Como a vida se recupera das extinções em massa https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/04/16/como-a-vida-se-recupera-das-extincoes-em-massa/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/04/16/como-a-vida-se-recupera-das-extincoes-em-massa/#respond Thu, 16 Apr 2020 17:36:22 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/ilustra-texto-adriana.-Julia-Debasse-web.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=97 Por Adriana Alves

O planeta já viveu cinco grandes extinções –e uma sexta está a caminho. Mas a vida sempre parece prosperar

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But still, I will rise.” Se a vida pudesse dar uma resposta às extinções em massa pelas quais passou, o verso da poeta norte-americana Maya Angelou cairia como uma luva — “ainda assim, eu vou me erguer”. Repetidos eventos dessa ordem quase dizimaram por completo a vida, e ainda assim diferentes espécies se diversificaram e floresceram após cada um deles.

As mais expressivas extinções são aquelas associadas a atividades vulcânicas anomalamente volumosas, a eras do gelo repentinas ou ainda a efeitos combinados que criaram a tempestade perfeita, como no caso da última, que, ao somar atividade vulcânica intensa e o impacto de um meteoro, varreu os dinossauros da face da Terra.

Estima-se que esse último evento tenha dado fim não apenas aos dinossauros, mas também a 90% dos mamíferos. Em pouco mais de 300 mil anos, os 10% remanescentes deram origem a boa parte dos ancestrais dos mamíferos viventes, dentre os quais os primatas.

Um dos papas da biologia evolutiva, o já falecido paleontólogo e professor de Harvard Stephen Jay Gould, considerava as extinções em massa um dos três fatores determinantes dos grandes saltos evolutivos da vida, e a esses saltos ele chamava macroevolução. Mas há uma “reciclagem” natural da vida: espécies se extinguem e novas espécies surgem, ainda que não ocorram eventos catastróficos ou grandes mudanças ambientais. É a microevolução darwiniana (ou gradualismo), que responde pelas taxas naturais de extinção (até o surgimento dos humanos ela girava em torno de 5% das espécies, mas já foi de 15% há 300 milhões de anos). No entanto, as mudanças para uma vida progressivamente mais complexa e diversa foram catalisadas pelas experiências disruptivas no design da vida que sucederam as extinções em massa.

O desaparecimento súbito de espécies que outrora dominavam o cenário parece ser o fator que permite a diversificação da vida. Novas oportunidades de ocupação e exploração de ambientes antes tomados por predadores extintos fomentam a desimpedida especialização dos sobreviventes.

Com uma ajudinha de Hollywood e de Jurassic Park, vimos quais seriam nossas chances caso tivéssemos que dividir espaço com dinossauros de grande porte. De uma forma indireta (ou direta, se pensarmos bem), ao dizimar esses predadores, o último grande extermínio no globo permitiu a ascensão dos mamíferos e, por consequência, a evolução dos primatas e o surgimento dos humanos.

Muitos se indagam se a sexta extinção em massa está em curso. Para responder à pergunta é necessário saber o que define uma extinção em massa. Durante tais eventos, as taxas de extinção se aceleram em relação à taxa de surgimento de novas espécies, de modo que 75% das espécies desaparecem num tempo geologicamente curto, tipicamente inferior a 2 milhões de anos. As taxas de extinção atuais para mamíferos, anfíbios, pássaros e répteis estão mais altas ou semelhantes àquelas que produziram os grandes eventos anteriores. Então a resposta para a pergunta é: sim, a sexta extinção em massa está em curso –e com taxas muito semelhantes às do Great Dying, que quase dizimou a vida na Terra há 250 milhões de anos.

À diferença das cinco extinções em massa que o planeta já experimentou, a crise biológica do presente tem uma particularidade: está sendo causada por uma espécie (adivinhe qual) e não por eventos naturais catastróficos. A boa notícia para a vida em geral é que as cinco extinções anteriores têm algo em comum: as espécies dominantes pereceram. É razoável supor que após esta sexta extinção os humanos deixarão de ser a espécie dominante e que os poucos remanescentes evoluirão de modo a conviver de forma mais harmônica com as demais espécies que coabitam o planeta.

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Adriana Alves é geóloga e professora da USP

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O que de fato sabemos sobre o aquecimento global? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/03/25/o-que-de-fato-sabemos-sobre-o-aquecimento-global/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/03/25/o-que-de-fato-sabemos-sobre-o-aquecimento-global/#respond Wed, 25 Mar 2020 15:23:05 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/ilustra-texto-adriana.-Julia-Debasse.baixa_.png https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=79 Por Adriana Alves

Pistas deixadas no registro geológico da Terra mostram que sim, temos responsabilidade pelas mudanças climáticas

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Uma das perguntas recorrentes sobre aquecimento global é se a atividade humana é de fato culpada pelo aumento alarmante da temperatura. A dúvida é pertinente, pois tanto eras do gelo quanto períodos de clima tórrido são fenômenos naturais que refletem a intrincada dinâmica da Terra. Como os cientistas têm creditado o aumento de temperatura à ação antrópica?

O pouco que sabemos sobre essas alterações no clima se baseia nas pistas deixadas no registro geológico. Por exemplo, o período Criogeniano (kryos = gelo em grego) ocorreu entre 850 e 630 milhões de anos atrás e coincidiu com o surgimento da vida complexa. Acredita-se que, ao retirar gás carbônico (CO2) da atmosfera para utilizá-lo como combustível metabólico, os recém-chegados seres multicelulares teriam desencadeado a longa era do gelo que se seguiu.

Em contrapartida, erupções vulcânicas de grande porte podem transferir massivas quantidades de enxofre e gás carbônico para a atmosfera. Tais gases têm efeitos climáticos opostos, já que o enxofre causa reflexão da radiação solar e diminuição considerável das temperaturas (os chamados invernos vulcânicos), ao passo que o CO2 provoca o já conhecido efeito estufa, com aumento gradativo e duradouro das temperaturas globais.

As camadas de gelo da Antártica são espessas e registram os últimos 800 mil anos de evolução tanto da composição da água do mar quanto da composição atmosférica. Como as águas oceânicas estão em equilíbrio com a composição atmosférica, ao se determinar a quantidade de CO2 presente em geleiras pode-se inferir a evolução da composição atmosférica ao longo do registro geológico. Vêm daí as pistas para responder à pergunta inicial.

Em todo o registro histórico, as concentrações de CO2 nunca haviam excedido 300 ppm (300 microgramas por quilo de gelo analisado). Entretanto, a partir de 1950, as concentrações subiram vertiginosamente, atingindo algo em torno de 420 ppm em apenas setenta anos. Esse excedente de CO2 não é natural, já que sua composição isotópica (algo como o código de barras de procedência do CO2) é semelhante à produzida via queima de combustíveis fósseis e bastante distinta da composição atmosférica natural. Portanto, as forçantes da natureza (atividade vulcânica ou de degradação de rochas carbonáticas) estão recebendo uma contribuição importante de CO2 não natural (aquele oriundo dos motores a combustão).

Quando pensamos na magnitude dos eventos geológicos, somos confrontados com nossa própria pequenez e insignificância. Entretanto, se lembrarmos que nossa atmosfera atual deve sua composição à fotossíntese (sem as plantas e algas, os níveis de oxigênio atmosférico seriam muito menores) e que o surgimento da vida complexa parece ter desencadeado uma das maiores eras do gelo do registro geológico, é difícil não pensar que a Terra é regida por um tênue equilíbrio entre as dinâmicas externa (sobre a qual desempenhamos papel importante) e interna. Fazendo uma comparação rápida, a atividade vulcânica atual é responsável pela emissão de cerca de 0.4 bilhão de toneladas de CO2/ano, ao passo que a emissão antropogênica supera os 9 bilhões de toneladas por ano.

As atividades humanas representam um desequilíbrio considerável nessa dinâmica. Não apenas queimamos mais combustíveis fósseis, como também desmatamos mais e poluímos mais os oceanos, impedindo que parte desse CO2 emitido pelos motores seja “filtrada” via fotossíntese. Assim, a resposta à pergunta inicial fica clara: sim, temos responsabilidade pelo aquecimento global.

Ainda que o aquecimento global possa ter efeito limitado no funcionamento interno do planeta, as consequências de um aumento drástico na temperatura para a vida na Terra são bem conhecidas. Dentre as cinco extinções em massa pelas quais o planeta passou, pelo menos duas estão diretamente ligadas ao aumento da emissão de CO2 via atividade vulcânica e consequente aumento de temperatura.

Resta saber quais rumos a humanidade escolherá para evitar que a sexta grande extinção em massa ocorra. Para alguns estudiosos essa extinção já está em curso.

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Adriana Alves é geóloga e professora da USP

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