Ciência fundamental https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br O que pensam os jovens cientistas no Brasil? Thu, 02 Dec 2021 15:29:05 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 É hora de produzir uma ecologia com a cara do Brasil https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/06/16/e-hora-de-produzir-uma-ecologia-com-a-cara-do-brasil/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/06/16/e-hora-de-produzir-uma-ecologia-com-a-cara-do-brasil/#respond Wed, 16 Jun 2021 10:14:28 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/blog_03_palmeiro_bustamante_crop-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=446 Por Pedro Lira

Referência na área, Mercedes Bustamante aposta em novas formas de pensar os sistemas naturais brasileiros

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“Você pode trabalhar com plantas, bactérias, bichos, mas em última instância está trabalhando com gente.” Essa visão holística foi o que moveu Mercedes Bustamante rumo à ecologia de ecossistemas, área em que ela investiga os impactos causados pelos seres humanos e como nós modificamos as relações entre os seres vivos e o ambiente. Referência no campo há quase 30 anos, a pesquisadora e professora da Universidade de Brasília defende: está na hora de produzirmos nosso próprio corpo teórico em ecologia.

Afinal de contas, somos o país com a maior biodiversidade do mundo e, apesar do reconhecimento internacional das ciências biológicas produzidas aqui, ainda temos muito a crescer na ecologia. Com experiência internacional em gestão de política científica e educacional na ONU, Bustamante aposta em mudanças na academia brasileira. “Estamos há anos testando como se aplicam aos sistemas tropicais teorias geradas lá fora, pensadas para sistemas temperados”, diz. Segundo ela, o salto qualitativo na pesquisa brasileira se dará quando começarmos a gerar um corpo teórico de ideias que vêm do entendimento de nossos próprios sistemas.

“Nós estamos em um cinturão tropical. Isso significa que a pesquisa que for desenvolvida aqui tem um potencial grande de ser replicado na África e Ásia”, explica. “O Brasil tem capacidade científica e técnica para isso, além da experiência necessária em monitoramento ambiental.”

A aposta de Bustamante é embasada pela evolução dos estudos de ecologia no país. Integrante do comitê de biodiversidade da Capes durante os anos 2000, ela explica que programas de pós-graduação mais tradicionais, com foco no trabalho de campo, começaram a se expandir em disciplinas teóricas. “A transformação dos sistemas naturais e a atividade humana são os principais motores dessa evolução. Os estudos da biologia passaram a conversar com outras áreas do conhecimento”, conta.

A lógica é simples. Se o problema passa por aspectos não apenas biológicos, mas sociais e econômicos, a solução também precisa passar por eles.

Mas como unir humanidades, ciências exatas e naturais? A resposta está na interdisciplinaridade. As duas últimas décadas foram marcadas pela exploração de ferramentas capazes de juntar informações de campo a aspectos teóricos. Matemática, computação, modelagem e outras áreas da informação nos permitem lidar com o enorme conjunto de dados biológicos e sociais que foram coletados. Exemplo disso é o desenvolvimento das metodologias de sensoriamento remoto: um levantamento que demandava anos de pesquisa em campo foi abreviado a dias, a partir de dados enviados por satélites.

“O que preocupa os especialistas nesse momento é que estamos vivendo essa expansão da ecologia em um momento de crise no financiamento. Enfrentamos um grave problema de governança que enfraqueceu a sociedade civil e o setor acadêmico.” A especialista lembra que o Brasil tinha um papel central nas negociações sobre mudanças climáticas, mas a nova gestão afetou esse direcionamento.

“Temos uma grande quantidade de dados e ferramentas para trabalhá-los. Como, a partir disso, a gente pensa novos conceitos sobre mudanças climáticas e impactos ambientais? O desafio atual é engajar a comunidade acadêmica nessa questão.” Mais do que vontade dos pesquisadores, no entanto, a ecóloga ressalta a necessidade de espaço nas instituições e sistemas de avaliação. “O momento é de estruturar um corpo teórico.”

O conselho que sempre passa aos alunos é abrir a mente a novas possibilidades. “Os limites da ecologia estão na cabeça do ecólogo. Você não precisa ser especialista em tudo, mas tem que estar apto a dialogar e manejar um conjunto mínimo de ferramentas nesse diálogo.” Por isso, a pesquisadora acredita também na formação em humanidades dos cientistas. “O diálogo com as ciências sociais é importante e será essencial daqui para frente.”

Na natureza, Bustamante lembra que nenhum organismo existe em absoluto isolamento e transpõe esse entendimento para as relações humanas na sua própria área. “Acho que isso se aplica à nossa carreira também. A forma como interagimos e nos conectamos é capaz de absorver pessoas para o nosso trabalho. Só temos a crescer se fizermos essas conexões. Não é fácil, mas é enriquecedor.”

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Pedro Lira é jornalista e social media no Instituto Serrapilheira.

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Alienígenas dos mares: conheça a bioinvasão marinha https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/06/10/alienigenas-dos-mares-conheca-a-bioinvasao-marinha/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/06/10/alienigenas-dos-mares-conheca-a-bioinvasao-marinha/#respond Thu, 10 Jun 2021 13:47:56 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/alienigenas-do-oceano-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=442 Por Larissa Pires-Teixeira

Como a chegada de uma nova espécie pode arruinar o ambiente

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Quem estuda biologia marinha tem observado uma crescente ameaça ao equilíbrio dos oceanos, cujo nome, “alienígenas dos mares”, bem poderia ser título de filme de ficção científica. Poderia, mas não é: o fenômeno é real. Pouco conhecido, mas cada vez mais perigoso. As tais “alien species” atravessam longas distâncias, na maioria das vezes por meio de algum tipo de transporte, pegando carona no casco de embarcações ou em plataformas de petróleo.

Essa viagem que empreendem pode constituir um problema se, ao encontrar condições favoráveis no endereço novo e nele se estabelecer, a inquilina recém-chegada causar quaisquer tipos de dano ao ambiente, sejam imperceptíveis, sejam impactos difíceis de serem revertidos, e a partir daí se tornar uma espécie invasora.

Na maioria das vezes é o ser humano o principal responsável pelo deslocamento das espécies, tanto por terra quanto por mar, de forma proposital ou não. É o caso dos corais invasores do gênero Tubastraea, popularmente conhecidos como coral-sol. Nativos do oceano Pacífico e considerados invasores no mar do Caribe e no golfo do México, navegaram – e chegaram ao Brasil – de carona nas pilastras submersas de plataformas de petróleo, às quais se fixaram.

Pesquisas mais recentes dão conta de espécies transportadas no casco e na água armazenada no interior de embarcações, em boias de navegação, aviões anfíbios ou hidroaviões, e até no lixo marinho flutuante. (Ou seja: o que é jogado no mar não só polui como também pode ser um agente facilitador na introdução de espécies invasoras.) Outras atividades realizadas pelo ser humano que podem propiciar o acesso de uma espécie não nativa são o cultivo em mar aberto de ostras, mexilhões, vieiras, caranguejos, lagostas, peixes ou algas, a oferta de organismos como alimento para outras espécies, e o descarte acidental ou intencional de espécies de aquário. O coral mole Sansibia sp., nativo do oceano Indo-Pacífico, por exemplo, possui uma coloração azul que cativa qualquer apaixonado por espécies marinhas e faz dele um item comum em aquários de água salgada. Infelizmente, em 2017 essa espécie foi encontrada no fundo do mar em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, e pesquisas sugerem que a introdução aconteceu após o descarte ilegal de organismos de um aquário marinho particular.

Os impactos ecológicos da bioinvasão podem ser considerados um dos principais responsáveis pela perda de biodiversidade em todo o mundo. Mas as complicações não se resumem a impactos ambientais, uma vez que a chegada e o estabelecimento de uma nova espécie podem acarretar problemas econômicos e até para a saúde humana. O molusco Isognomon bicolor, por exemplo, nativo do Caribe, introduzido no Brasil na década de 1990, vive na costa rochosa e está matando outras espécies de molusco, inclusive espécies economicamente importantes, usadas para cultivo e alimentação humana. Outro molusco, o caramujo africano Achatina fulica, que é terrestre, foi importado ilegalmente para o Brasil na década de 1980. O objetivo era servir como alimento substituto do famoso escargot, porém, quando os criadores perceberam que o brasileiro não tem o hábito de consumir esse tipo de comida, soltaram os caramujos na natureza. Ocorre que em pouco tempo esse molusco destrói hortas e jardins e pode transmitir doenças como meningite.

Em 2020, um levantamento feito por mim e pelo dr. Joel Creed, outro pesquisador que estuda bioinvasão marinha, identificou 138 espécies marinhas introduzidas no Brasil, cifra que representa um aumento de 160% no número de “alien species” invasivas desde o último levantamento, realizado há dez anos. Existem formas eficientes de evitar ou reduzir os impactos causados pela bioinvasão que, associadas, podem apontar a solução desse problema. Estudar os hábitos das espécies introduzidas e identificar os meios de transporte são algumas das alternativas para impedir novas introduções. Políticas públicas eficientes, conscientização e listas atualizadas de espécies introduzidas também ajudam.

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Larissa Pires-Teixeira é bióloga, professora de ciências e biologia e doutoranda do Programa de Pós Graduação em Ecologia e Evolução da UERJ.

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Biodiversidade brasileira, uma recompensa desconhecida https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/06/02/biodiversidade-brasileira-uma-recompensa-desconhecida/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/06/02/biodiversidade-brasileira-uma-recompensa-desconhecida/#respond Wed, 02 Jun 2021 10:18:48 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/web-blog_02_palmeiro_A_rev-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=432 Por Mario Moura

Oitenta por cento das espécies do planeta ainda não têm nome

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Imagine se 80% das pessoas do planeta não possuíssem nome. Provavelmente teríamos muita dificuldade em nos comunicar, um simples diálogo sobre a parentela poderia ser um verdadeiro problema: “Você é filho de quem?” “Eu sou filho da… sobrinho do… irmão do… É, não sei dizer!”.

Percebeu o drama? Pois é isso o que acontece com a nossa biodiversidade. Embora estima-se que existam cerca de 10 milhões de espécies no planeta, menos de 20% delas possuem nome próprio, isto é, foram formalmente descritas pela ciência. Sem a descrição formal dessas espécies ainda desconhecidas, permanecemos ignorantes sobre os possíveis valores ecológicos, serviços ecossistêmicos e relevância econômica que elas possam apresentar, seja na saúde, produção de alimentos, polinização, seja como pestes invasoras ou vetores de doenças. Em um estudo publicado na revista Nature Ecology and Evolution, mapeamos as regiões do planeta que abrigam o maior número de espécies desconhecidas.

Mas se são desconhecidas, como foi possível mapeá-las? Existem características das espécies que podem facilitar ou dificultar a sua descoberta na natureza. Algumas espécies foram nomeadas há mais de 200 anos, como a ema, ave de grande porte que é distribuída por quase toda América do Sul. Outras são verdadeiras miniaturas e ocorrem em locais remotos, como o sapinho-pingo-de-ouro descrito no final de abril. Tamanho do corpo, área de distribuição geográfica e outras características podem ser reunidas para construir modelos matemáticos que informam o percentual de espécies conhecidas em diferentes regiões do planeta.

Sabendo o percentual de espécies conhecidas para uma dada região, e também o número de espécies conhecidas, pode-se aplicar uma simples regra de três para encontrar a quantidade total de espécies esperadas. O próximo passo é ainda mais simples, basta subtrair o número de espécies conhecidas desse total estimado. A quantidade que sobra é, justamente, o número estimado de espécies desconhecidas.

O mapa da vida desconhecida revela que 10% da superfície terrestre do planeta pode abrigar quase 70% de todas as espécies ainda não conhecidas. Cerca de metade das futuras descobertas de novas espécies devem ocorrer em florestas tropicais úmidas, como a Mata Atlântica e a Amazônia. Em segundo e terceiro lugar nessa lista, empatadas com 12% das futuras descobertas, estão as florestas tropicais secas, como a Caatinga, e regiões de savana tropical, como o Cerrado.

Pessoas familiarizadas com os biomas brasileiros já devem ter notado que Amazônia, Mata Atlântica, Cerrado e Caatinga cobrem a maior parte do Brasil. Qual a consequência dessa geografia biomática? Nosso país tropical bonito por natureza lidera o ranking de nações com maior número de futuras descobertas, abrigando cerca de 10% de todas as espécies inéditas do planeta. Esse achado reforça a posição do Brasil como país megadiverso, e acende um alerta para a importância de pesquisas em biodiversidade no país.

Elaborar o mapa do descobrimento é apenas o primeiro passo para conhecer essa biodiversidade sem nome. Comunidades tradicionais e organizações não governamentais podem usar os achados dessa pesquisa para agregar importância ambiental a regiões com alto potencial para descoberta de novas espécies. Na esfera governamental, a quantidade de espécies desconhecidas pode ser incorporada a estratégias de definição de áreas prioritárias para a conservação. Existe ainda a possibilidade de que esses resultados orientem políticas globais no pós-2020. No final de 2021 ocorrerá a COP15 –reunião da Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Biodiversidade–, quando serão determinadas as metas internacionais de biodiversidade para 2030.

Tão grandiosa quanto a biodiversidade brasileira é a tarefa que temos pela frente. Para evitar a extinção de espécies ainda não conhecidas, é primordial a adoção de mecanismos eficientes para a proteção das florestas, incluindo zerar o desmatamento ilegal. Além disso, são necessários investimentos em pesquisas que acelerem a descrição de espécies novas. No mundo pós-pandemia que se aproxima de uma economia verde, o Brasil emergirá com destaque caso seja capaz de retirar do anonimato a sua biodiversidade.

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Mario Moura é biólogo, professor da Universidade Federal da Paraíba, e trabalha com biodiversidade, ecologia e conservação.

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Em quanto tempo o Pantanal vai se recuperar? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/11/04/em-quanto-tempo-o-pantanal-vai-se-recuperar/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/11/04/em-quanto-tempo-o-pantanal-vai-se-recuperar/#respond Wed, 04 Nov 2020 15:11:47 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/Ilustração-Serrapilheira-_-Hugo-Fernandes-_Pantanal_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=245 Por Hugo Fernandes

Essa não é a grande questão

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Eu estava dando entrevistas com a roupa de campo e o rosto cobertos de fuligem. Tínhamos pouco descanso diante do maior índice de incêndios da história do Pantanal, bioma que teve mais de 30% de seu território comprometido em 2020. Pesquisador na área da conservação, acabei escalado para falar com imprensa. Duas perguntas eram onipresentes: “Dá pra estimar quantos animais foram perdidos?” e “Dá pra saber em quanto tempo o Pantanal se recupera?”. Até daria, mas para tanto precisaríamos de um arcabouço colossal de ciência básica.

Há cerca de 470 espécies de aves, 270 de peixes, 177 de répteis, 125 de mamíferos e 50 de anfíbios documentadas no Pantanal. Pode apostar com 100% de segurança que esse número é subestimado. Se considerarmos invertebrados e vegetais, são dezenas de milhares de espécies não descritas. Há pouquíssimos taxonomistas e sistematas –profissionais que revelam novas espécies– trabalhando com os dados desse bioma. E eles não realizam essas descobertas explorando os locais mais inacessíveis do planeta: na maior parte das vezes, elas ocorrem em museus de história natural. Como o Nacional, que pegou fogo no Rio de Janeiro em 2018, mesmo destino de outras coleções, como a do Butantan, em 2010, e da UFMG, em 2020. O fogo que ameaça a diversidade brasileira também destrói a possibilidade de conhecê-la melhor. E a conta dessa tragédia está no sucateamento público das instituições de pesquisa.

No Pantanal, são raras as espécies cujo número de indivíduos pode ser estimado. As ameaçadas geralmente possuem monitoramentos de longo prazo. O trabalho liderado por Neiva Guedes, por exemplo, nos permite saber o número mais aproximado de araras-azuis, mesmo porque boa parte delas nasceu de altos investimentos em pesquisas ecológicas e genéticas. Mas quando os cientistas não conseguem contar cada indivíduo, eles estimam. É o que fazem instituições como a Panthera, que mostra a concentração de onças pintadas por quilômetro quadrado no bioma por meio de armadilhas fotográficas e monitoramento por GPS, entre outros.

Mas não basta contar quantas onças há numa determinada área e multiplicar pelo tamanho total do Pantanal. Nos mais de 15 milhões de hectares da região –suficiente para abrigar Portugal, Bélgica e Suécia– há 11 tipos diferentes de Pantanal, com características ecológicas e ameaças próprias. Para um cálculo mais preciso, é necessário considerar o maior número possível dessas variáveis em análises estatísticas e programas de mapeamento que geram um mapa das áreas com maior probabilidade de altas densidades da espécie e que, portanto, requerem maior atenção.

Os exemplos com onça pintada e arara-azul são exceções, consideradas as graves lacunas de conhecimento para outras espécies, incluindo as mais de 40 listadas nacional e internacionalmente como ameaçadas de extinção. Se não temos um bom parâmetro sobre o que havia, só nos resta contar os mortos. É o que faz o biólogo José Cordeiro, da Fiocruz. Com auxílio de drones, sua equipe sobrevoa a Reserva Particular de Patrimônio Natural SESC Pantanal em busca das carcaças de mamíferos de grande porte, como cervos, tamanduás-bandeira e antas. Animais menores como roedores, lagartos e serpentes demandam um time de especialistas que percorre a pé a área recém-incendiada, caso da equipe de Walfrido Tomas, da Embrapa.

Imprensa e sociedade clamam por números cravados, mas isso é quase impossível. De que recuperação estamos falando? Gramíneas se recompõem em poucas semanas, já uma população de antas pode demandar dezenas de anos. À escassez de cientistas que pesquisam o Pantanal ou outros biomas somam-se outras dificuldades, como a incineração e a alta taxa de decomposição da matéria orgânica que chegam a impedir outras análises, como o impacto sobre invertebrados e plantas de pequeno porte. Se todo esse cenário dificulta o diagnóstico do que foi perdido, aferir o tempo para a recuperação é um tiro no escuro.

Não é o número exato de anos para a recuperação do Pantanal que precisamos saber, mas como ele vai se recuperar. Que ações vão permitir e acelerar essa recuperação? E, mais importante, o que precisamos deixar de fazer para que isso não se agrave? O caminho envolve política pública e quem deve dar as cartas para essas ações é a ciência. Mas toda ciência aplicada necessita de uma base muito maior de ciência básica. E em pesquisas sobre conservação isso não é diferente.

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Hugo Fernandes é biólogo, divulgador científico e professor da Universidade Estadual do Ceará

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É possível inverter degradação da natureza até 2050, mostra estudo na Nature https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/09/09/e-possivel-inverter-degradacao-da-natureza-ate-2050-mostra-estudo-na-nature/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/09/09/e-possivel-inverter-degradacao-da-natureza-ate-2050-mostra-estudo-na-nature/#respond Wed, 09 Sep 2020 23:02:26 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/ilustra-texto-bernardo.-Catarina-Bessell2-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=204 Por Clarice Cudischevitch

Para isso, são necessárias ações como a redução do consumo global de carne e desperdício. Brasileiro Bernardo Strassburg é um dos autores

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Sempre ouvimos a máxima de que é preciso cuidar melhor do planeta para preservá-lo. Agora, cientistas quantificaram o que de fato precisa ser feito para isso. O estudo, publicado na revista Nature nesta quarta-feira, 9, conclui que ainda é possível agir para inverter a curva de degradação e regenerar a natureza. Ou seja: nós podemos ser a primeira geração a deixar o planeta mais sustentável do que o encontrou.

Para isso, é preciso atuar em cinco frentes interligadas: conservação e restauração ambiental; redução do desperdício; intensificação sustentável da produtividade agrícola; dietas menos impactantes e um comércio internacional mais sustentável. “Os esforços requerem vontade política e mobilização da sociedade, mas são factíveis”, explica o professor de ciência da sustentabilidade da PUC-Rio Bernardo Strassburg, único coautor brasileiro do estudo.

Isso significa que não é necessário que todo mundo vire vegetariano. Se a sociedade caminhar para uma redução de 50% do consumo de carne e outros alimentos cuja produção demanda muito espaço, já será suficiente. Da mesma forma, bastaria diminuirmos o desperdício em 50% (atualmente, jogamos fora um terço do que produzimos). O aumento sustentável da produtividade, por sua vez, requer a aplicação de tecnologias que já estão disponíveis.

“Se adotarmos essas medidas, as recompensas serão enormes: vamos reverter a curva de perda da natureza e biodiversidade projetada para esse século e regenerar o que destruímos ao longo de 10 mil anos, sem deixar de alimentar ninguém”, ressalta Strassburg, que também é diretor executivo do Instituto Internacional para a Sustentabilidade.

Os modelos preveem que, com os esforços recomendados, conseguiríamos inverter a curva de degradação antes de 2050 e evitar a perda futura de dois terços da biodiversidade. Em torno do ano de 2070 seria possível restaurar o planeta para o estágio em que ele está hoje (veja o gráfico abaixo). “Se migrarmos da aposta em queimadas e desmatamento e a inevitável perda de valor e mercados, o Brasil terá um potencial comprovado para liderar esta transição global, agregando valor ao agronegócio ao se posicionar como o produtor mais limpo do planeta.”

 

Crédito: IIASA. O gráfico ilustra as principais conclusões do artigo, mas não tem a intenção de representar seus resultados de forma precisa. DOI: https://doi.org/10.1038/s41586-020-2705-y

A inovação do estudo foi fazer uma abordagem ampla que incluísse modelos diferentes de biodiversidade, ecossistemas e comunidades e pensasse em estratégias integradas. “Queríamos avaliar de forma robusta se seria viável dobrar a curva de declínio da biodiversidade terrestre devido ao uso atual e futuro da terra, evitando colocar em risco nossas chances de alcançar outros Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)”, explica o autor principal do estudo e pesquisador do Instituto Internacional de Análise de Sistemas Aplicados (IIASA/ Áustria), David Leclère. “E, com isso sendo possível, também queríamos explorar como chegar lá e como a combinação de várias ações poderia promover sinergias.”

Ciência brasileira na Nature – três vezes

A contribuição de Strassburg foi com conhecimento sobre conservação e restauração, a partir da pesquisa desenvolvida com apoio do Instituto Serrapilheira em 2018. O trabalho, no entanto, não acaba aí: nas próximas semanas, o brasileiro vai aprofundar esse assunto em outros dois artigos que também sairão na Nature.

O segundo artigo deve ser publicado ainda este mês e aborda a conservação em sentido mais estrito. Fala sobre o papel das áreas protegidas nesse século e como ele deve ser repensado para dialogar com o entorno, as comunidades que vivem ali.

Já o paper seguinte tem Strassburg como autor principal e vai destrinchar, especificamente, os esforços de restauração. O trabalho vai detalhar em escala global como otimizar tais medidas a partir de uma abordagem múltipla, considerando elementos como as mudanças climáticas e biodiversidade. A publicação deve acontecer até o início de outubro.

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Clarice Cudischevitch é jornalista, coordenadora do blog Ciência Fundamental e gestora de comunicação no Instituto Serrapilheira.

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Vivendo em apneia com a política ambiental do Brasil https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/08/13/vivendo-em-apneia-com-a-politica-ambiental-do-brasil/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/08/13/vivendo-em-apneia-com-a-politica-ambiental-do-brasil/#respond Thu, 13 Aug 2020 10:30:53 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/apneia.valentina-fraiz.web_-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=184 Por Rafael Loyola

Prendemos o ar com sustos ambientais no Brasil, mas a Amazônia pode nos trazer fôlego

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Mais um evento de apneia. Aquela suspensão momentânea da respiração. Podia ser por uma razão prazerosa como a prática de mergulho livre sem equipamentos. Mas não. Minha apneia costuma ocorrer quando leio o jornal.

A “Folha de S. Paulo”, em parceria com o Instituto Talanoa, contabilizou 195 atos referentes à política ambiental brasileira publicados no “Diário Oficial” entre março e maio deste ano. No mesmo período do ano passado, não passaram de dezesseis. Esse aumento de mais de 1.200% causa apneia nos cientistas que, como eu, trabalham e acompanham a questão ambiental no Brasil.

Dia sim, dia não, prendo a respiração ao ler mais um projeto de lei, mais uma pauta do Congresso, mais um decreto publicado. Em geral esses atos normativos vêm enfraquecendo a governança e a gestão ambiental brasileira. Mas os sustos são de tal ordem que cruzaram o Atlântico e quicaram em governos e empresas europeias. Atingiram também o setor privado em terras tupiniquins.

Há uma crescente cobrança pela adoção de uma agenda sustentável no ambiente corporativo, impulsionada por investidores europeus. Fazendo coro a essa cobrança, recentemente CEOs de empresas brasileiras e ex-ministros do meio ambiente escreveram ao governo federal e vimos o posicionamento contundente do setor financeiro, todos demandando uma visão de desenvolvimento sustentável no país.

Nessa esteira, o papel da Amazônia é crucial. Com a imagem arranhada, o governo criou o Conselho Nacional da Amazônia Legal. Seu coordenador, o vice-presidente Hamilton Mourão, conversou com gestores de fundos internacionais e bancos privados no Brasil para buscar apoio a iniciativas de restauração de pastagens degradadas e reflorestamento na Amazônia. Em troca, prometeu reduzir o desmatamento e as queimadas em toda região.

É uma tomada de fôlego diante de tantos sustos. Do ponto de vista político, a Amazônia é um ativo que concede um poder enorme ao Brasil. Sua proteção é um assunto de interesse global, e, por isso, para captar recursos que permitam um desenvolvimento de fato sustentável na região, o país precisa aproveitar os mecanismos financeiros associados aos acordos das convenções de biodiversidade e de mudança do clima. A conversa com o setor privado e financeiro pode ser um alento. Isso porque precisamos de proteção e recuperação na Amazônia, mas também é preciso desenvolver a região.

O potencial que pode ser gerado pela bioeconomia na Amazônia é gigantesco. Essa atividade pode trazer 400 milhões de dólares em investimento para o Brasil e criar aproximadamente 200 mil empregos, segundo dados da Associação Brasileira de Inovação. A economia baseada em produtos oriundos da biodiversidade já movimenta cerca de 11 trilhões reais mundo afora, comercializando resina, bio-óleo, nanocelulose, nanofibras e produtos florestais madeireiros e não-madeireiros.

Em dezembro de 2018, a Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos publicou o relatório “Potência ambiental da biodiversidade: um caminho inovador para o Brasil”. Nesse documento, diversos cientistas brasileiros, inclusive este colunista, contextualizam as crises climática e de biodiversidade no Brasil e indicam soluções cada vez mais necessárias e imediatas. As soluções concentram-se em reposicionar a natureza no centro de nossa vida, nossa sociedade e nossos negócios.

É preciso repensar nossa imagem no exterior para atrair recursos que nos ajudem a fazer a transição para uma economia verde. Para isso, o diálogo do governo com a sociedade — ouvindo a ciência, o setor produtivo, a sociedade civil — é fundamental. Será necessário ter fôlego para vencer obstáculos e encontrar consensos sobre a questão. O que não dá é para continuar vivendo em apneia.

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Rafael Loyola é biólogo e doutor em ecologia. É diretor científico da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável, professor da Universidade Federal de Goiás e membro da Academia Brasileira de Ciências.

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Como a natureza ajuda a nos salvar de nós mesmos https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/03/05/como-a-natureza-ajuda-a-nos-salvar-de-nos-mesmos/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/03/05/como-a-natureza-ajuda-a-nos-salvar-de-nos-mesmos/#respond Thu, 05 Mar 2020 05:00:53 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/ilustra-texto-bernardo.-Catarina-Bessell2-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=63 Por Bernardo B. N. Strassburg

No meio ambiente residem grandes esperanças para o combate às mudanças climáticas

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De 1870 até hoje, atividades humanas como queimar combustíveis fósseis ou florestas despejaram 2 trilhões de toneladas de gás carbônico na atmosfera. Medições detalhadas, porém, indicam que o volume de CO2 na atmosfera aumentou em “apenas” 840 bilhões de toneladas. Tal descompasso numérico foi muitas vezes usado pelos céticos das mudanças climáticas como prova de que os números por trás da teoria do aquecimento global não batiam.

Na verdade, a diferença aponta para algo muito importante: o papel que a natureza tem tido, tem e pode –ou não– continuar tendo no combate ao aquecimento global. Os quase 1,16 trilhões de toneladas de CO2 que faltam para zerar a conta não estão na atmosfera por uma razão simples: os ecossistemas terrestres e marinhos absorveram 58% de tudo que emitimos até hoje. É por causa deles que hoje experimentamos um aquecimento médio de 1.1ºC, e não mais do que 2ºC. Sem eles, já estaríamos em um mundo onde a rotina diária seria de intensas secas, enchentes, tempestades e crises agrícolas, das quais resultariam colapsos de ordem social e econômica.

Essa autonomia da natureza, que no caso dos ecossistemas terrestres, ao encontrar uma concentração crescente de CO2, aumentou a taxa de fotossíntese (a transformação de gás carbônico em oxigênio), para muitos é mais um indício de como a biosfera possui uma propriedade similar à homeostase, a auto-regulação de organismos vivos.

O desempenho colossal e comprovado da natureza no combate ao aquecimento global serve de inspiração para aqueles que buscam as chamadas “soluções baseadas na natureza” (SBN) –ações para maximizar o papel da natureza no combate às mudanças climáticas. A maior delas é, disparado, de uma simplicidade a toda prova: o esforço para aumentar a área e a integridade dos ecossistemas. Ações de conservação para evitar a perda de florestas e outros ecossistemas naturais, além de ações de restauração dos ecossistemas desmatados ou degradados, respondem por grande parte do potencial das SBN. A outra parte diz respeito ao melhor manejo do solo e de terras onde se praticam agricultura e pecuária.

Tais soluções, nem é preciso dizer, recebem atenção muito menor do que merecem. Recentemente se estimou que as SBN podem responder por 30% da mitigação necessária para evitar um aquecimento global acima de 2ºC. E tais ações atraem apenas 3% do financiamento e 1% da atenção midiática dedicados às mudanças climáticas. As soluções relacionadas a energia e transporte, certamente importantes, dominam de forma desproporcional o debate e as ações que começam a ser implementadas.

E isso é lamentável por um outro motivo também simples: conservar e restaurar a natureza traz enormes benefícios para outros objetivos globais. A conservação da natureza, uma meta global em si, garante a provisão de benefícios –água limpa, controle de secas, erosão e enchentes, polinização de alimentos –que economistas de renome estimaram em trilhões de dólares anuais. E estes benefícios afetam majoritariamente as populações mais pobres e vulneráveis –calcula-se que mais de 1 bilhão de humanos dependam deles para sua sobrevivência diária. Ou seja, as Soluções Baseadas na Natureza oferecem contribuições simultâneas aos desafios globais de combate ao aquecimento global, crise de biodiversidade e desenvolvimento sustentável. E custam, em média, quatro vezes menos que soluções tecnológicas.

Outro motivo de ordem prática para investir na conservação e restauração do meio ambiente? Retomando o fio da meada, lembro que o próprio aquecimento global coloca em risco aquela capacidade histórica da natureza de absorver a maior parte do que emitimos. Os incêndios em larga escala, como os que devastaram parte da Austrália no início de 2020, emitem quantidades gigantescas de carbono estocado na natureza. Pesquisas científicas já comprovaram que ecossistemas mais íntegros são menos vulneráveis a impactos das mudanças climáticas.

Se perdermos o auxílio da natureza, não há esperança de vencer essa luta. Se atuarmos para incrementar o papel dela, ganharemos de bônus incontáveis outros benefícios com profundos impactos no bem-estar humano. Parece-me um bom negócio.

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Bernardo Strassburg é professor da PUC-Rio em Geografia e Sustentabilidade e diretor do Instituto Internacional para Sustentabilidade

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Uma abordagem holística para enfrentar os desafios ambientais https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/02/06/uma-abordagem-holistica-para-enfrentar-os-desafios-ambientais/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/02/06/uma-abordagem-holistica-para-enfrentar-os-desafios-ambientais/#respond Thu, 06 Feb 2020 05:00:44 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/02/ilustr-texto-bernardo-valentina-fraiz-v1-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=46 Por Bernardo B. N. Strassburg

Quando a solução é maior que a soma dos problemas

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O ano de 2020 é mais importante para o futuro da humanidade e da vida na Terra do que maioria de nós desconfia. Claro, tem a eleição que decide sobre Trump, a tensão no Oriente Médio, e sobretudo o ressurgimento do Botafogo. Mas até o mais desconectado pastor de renas do Ártico sabe disso.

O que não é do conhecimento de todos, o que acho uma pena, são os passos que serão dados – ou não – sobre os três grandes desafios das próximas décadas: mudanças climáticas, crise de biodiversidade e transição rumo aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Em conferências programadas ao longo ano, espera-se que as nações acelerem a implementação dos ODS (Nova York, julho), celebrem um novo e ambicioso acordo sobre a proteção da natureza do planeta (Kunming, outubro) e dobrem seus esforços planejados de combate às alterações do clima (Glasgow, novembro).

Em 2019 foi publicado o mais abrangente relatório científico já produzido sobre o estado da vida na Terra e sua consequência para as pessoas, com atenção aos tópicos acima. Os números principais apontam para mais de 1 milhão de espécies ameaçadas de extinção e forte redução na capacidade da natureza de apoiar o bem-estar humano – com preponderante impacto nos mais vulneráveis. A repercussão do relatório foi enorme, tendo dominado a mídia mundial e as redes sociais (por alguns minutos, até que Trump tuitasse alguma coisa).

Embora a atenção imediata tenha se dirigido ao colapso da vida no planeta, uma das mensagens mais importantes desta revisão do conhecimento científico (145 cientistas principais, dos quais fiz parte, analisaram mais de 10 mil artigos científicos ao longo de três anos) é incontestável: os três desafios estão interconectados de maneira indissociável.

Ou seja: não conseguiremos atingir os ODS sem combater as mudanças climáticas, que não serão resolvidas sem a conservação da natureza, que só ocorrerá de forma sustentável com um desenvolvimento socioeconômico mais justo. Aqui, o copo meio vazio mostra que é impossível solucionar qualquer um desses desafios globais de forma independente, o que complexifica o entendimento e a busca por soluções. Se estas forem pensadas para apenas um deles, elas impactarão negativamente os outros.

Um exemplo dessa complexidade pode ser depreendido de um estudo científico sobre a política de combustíveis renováveis dos Estados Unidos. Desenvolvida também com o objetivo de mitigar mudanças climáticas, tal política, ao substituir combustíveis fósseis por etanol, evitou a emissão direta de 18 milhões de toneladas de gás carbônico. Mas o etanol norte-americano é produzido à base de milho, e seu uso como combustível reduziu sua oferta como alimento, o que elevou o preço e a produção de milho em outros países, o que levou ao desmatamento e à emissão de 29 milhões de toneladas de CO2. O resultado final foi negativo para o clima, gerou insegurança alimentar e o mundo perdeu 700 mil hectares de floresta tropical nesse processo.

O copo meio cheio é que a ciência mostra que essas interconexões, se bem compreendidas, podem servir de alavancas para soluções que ataquem os três problemas simultaneamente. E é na captura das sinergias que repousa a esperança de que é possível, sim, superar ao mesmo tempo esses desafios. Se tivéssemos que encará-los de forma independente, com as gigantescas transformações socioeconômicas necessárias para cada um deles, não teríamos fôlego.

E o papel da ciência é fundamental aqui. A compreensão dessas relações intrincadas passa por pesquisas transdisciplinares que focam o entendimento de padrões de comportamento desses sistemas socioecológicos acoplados, complexos e dinâmicos. No próximo post, veremos como a ciência está iluminando sinergias rumo a um futuro mais saudável para o planeta e para nós.

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Bernardo Strassburg é professor da PUC-Rio em geografia e sustentabilidade e diretor do Instituto Internacional para Sustentabilidade


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