Ciência fundamental https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br O que pensam os jovens cientistas no Brasil? Thu, 02 Dec 2021 15:29:05 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O que é a vida? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/21/o-que-e-a-vida/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/21/o-que-e-a-vida/#respond Thu, 21 Oct 2021 10:05:12 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/vida-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=560 João Miguel de Oliveira, 6 anos, carioca, fez essa complexa pergunta fundamental para a série “Perguntas de criança, respostas da ciência”. O Serrapilheira chamou três cientistas de áreas diferentes para (tentar) respondê-la.

*

A vida é a ordem em meio à desordem, por Hugo Aguilaniu, biólogo geneticista

Na condição de geneticista que pesquisa o envelhecimento, devo dizer que a definição mais estrita de vida não é, de fato, tão simples. A primeira ideia que vem à mente é que um ser vivo deve ser capaz de se mover. Se o movimento macroscópico não for sistemático, deve ser pelo menos molecular: as moléculas devem se transformar ativamente em outras moléculas. Embora isso seja observado em todos os seres vivos, o movimento molecular não é específico dos seres vivos, pois basta pôr duas moléculas reativas em presença uma da outra para dar início aos fluxos químicos, aos movimentos. É, portanto, uma condição necessária, mas não suficiente.

Outra característica da vida é a capacidade de se perpetuar. Os seres vivos são, em sua maioria, mortais, mas podem perpetuar a vida por meio da reprodução, quando então o código genético com todas as informações é fielmente replicado. Não é impossível, porém, que alguns organismos se perpetuem sem se reproduzir, por meio de uma eficiente regeneração. De todo modo, é sempre necessário perpetuar e/ou reproduzir nossa informação genética.

A replicação do código genético implica a capacidade de os seres vivos se manterem em ordem. Estar vivo é precisamente manter certa organização molecular dentro de si. Quando a vida sai de um organismo, podemos ver que os tecidos se decompõem e são logo reduzidos a compostos químicos individuais, não mais ordenados entre si. Essa manutenção da ordem é muito cara em termos energéticos: enquanto houver vida, ela não pode parar. O metabolismo e a ingestão de moléculas que carregam certa quantidade de energia química –o que chamamos nutrição– é que impulsionam esse processo.

Os seres vivos, portanto, consomem energia ao seu redor para se manter em ordem. De acordo com a segunda lei da termodinâmica, sabemos que a ordem mantida nos indivíduos vivos só é possível ao preço da criação de uma desordem. E essa, por sua vez, é ainda maior que a ordem – tanto que a entropia, a desordem do universo, cresce inexoravelmente.

Uma tabela periódica da vida, por Daniel Valente, físico

Para um físico, a pergunta vai muito além de “como funcionam os organismos vivos tais como os conhecemos”. Há várias comunidades de cientistas buscando uma compreensão que englobe a vida-como-a-conhecemos e a vida-como-poderia-ser.

Suponhamos, por um instante, uma busca por vida fora da Terra. Caso encontremos um sistema auto-organizado e autorreplicante, porém de composição molecular completamente distinta da nossa, como reconhecê-lo como vivo? Tornados, por exemplo, são estruturas auto-organizadas que “sobrevivem” enquanto há energia disponível na atmosfera, mas ninguém os considera organismos realmente vivos. Fogo também sobrevive enquanto dura a energia que o alimenta e, curiosamente, é capaz de se autorreplicar (pense na chama de uma vela quanto toca um novo pavio).

Se a auto-organização e a autorreplicação não são critérios suficientes, será que seria suficiente adicionar a evolução darwiniana à lista? Para constatar que isso não tem muita serventia, basta analisar a chamada “vida artificial” –programas de computador capazes de se autorreplicar, competir por recursos (alocação de memória, energia elétrica na máquina) e desenvolver características complexas a partir de programas simples. Mas essa vida artificial poderia ser posta em pé de igualdade com a vida natural?

Alternativamente à busca por definições, ou por uma lista de atributos, cientistas têm procurado respostas na física do comportamento emergente. Tentamos ver emergir, nos mais diversos sistemas (do nanométrico ao macroscópico) e contextos (contendo fontes de energia luminosa, elétrica, química, térmica), imitações e sobretudo generalizações de todas as possíveis características excepcionalmente similares às dos organismos vivos tal como os conhecemos (auto-organização, automontagem, autorrecuperação, autorreplicação, mutação, adaptação). Algumas buscas se inclinam para os aspectos energéticos da auto-organização longe do equilíbrio termodinâmico (generalizando a noção de metabolismo como um processo emergente na matéria), enquanto outras se inspiram nos aspectos informacionais (imitando o código genético e a capacidade de processamento de informação que emergem em toda célula viva).

Físicos do passado primeiro precisaram responder “o que é gravidade?” para depois criar os satélites artificiais e o GPS. Cientistas do presente têm tentado inventar toda sorte de vida artificial, na expectativa de um dia responder de modo exato a “o que é vida”. Quem sabe ainda haverá uma “tabela periódica da vida”, na qual ordenaremos os sistemas por seu “grau de vida” desde os obviamente não vivos até os obviamente vivos?

A vida é uma obra de Gaia, por Adriana Alves, geóloga

Para um geólogo, a vida envolve os processos compreendidos entre o nascimento e a morte. Entretanto, ao contrário dos biólogos, nós não nos referimos necessariamente apenas a animais, plantas e bactérias como seres vivos. Planetas, estrelas e até vulcões fazem parte desse grupo. Uma estrela, por exemplo, como o Sol, vive para queimar combustível e fornecer luz e calor no processo; um planeta vive para diminuir a temperatura de seu interior até que sua dinâmica interna se paralise. Nós, seres viventes clássicos da biologia, nos originamos da combinação quase milagrosa e acidental de carbono, oxigênio, nitrogênio e hidrogênio… E foi o surgimento dos seres fotossintetizantes  –aqueles que consomem gás carbônico como combustível e soltam oxigênio como subproduto dessa reação– que nos propiciou a atmosfera rica em oxigênio que boa parte dos seres que conhecemos necessitam para seguir vivendo.

Não fosse o pulsante dinamismo da Terra, os continentes não existiriam e o planeta ainda seria uma bola de lava. Sem essa dinâmica tampouco haveria deriva continental, nem as placas tectônicas se encontrariam. Esse “não encontro” impossibilitaria a migração dos hominídeos, que existiriam isolados em algum ponto remoto da África.

Como uma mãe (Pacha Mama ou Gaia), a Terra nos fornece tudo o que precisamos para a vida biológica desde o surgimento da nossa (e de todas) espécie(s). Seja por influenciar a distribuição dos nutrientes do subsolo e a ocupação do território por caçadores coletores, seja por definir a distribuição de metais preciosos usados nos chips do computador em que ora escrevo, a vida humana e de todos os demais seres só se tornou viável por conta da dinâmica peculiar e caprichosa de Gaia.

*

Hugo Aguilaniu é diretor-presidente do Instituto Serrapilheira, Daniel Valente é professor da UFMT e Adriana Alves é professora da USP.

Sabemos que as crianças fazem as melhores perguntas, e que a ciência pode ter boas respostas para elas. Todo mês, a série “Perguntas de criança, respostas da ciência” convida cientistas para responderem uma dessas questões fundamentais. Você tem uma sugestão de pergunta? Veja aqui como colaborar.

 

 

]]>
0
Por que o coronavírus evolui mais rápido que a gente? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/09/28/por-que-o-coronavirus-evolui-mais-rapido-que-a-gente/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/09/28/por-que-o-coronavirus-evolui-mais-rapido-que-a-gente/#respond Tue, 28 Sep 2021 14:33:31 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/serrapilheira_mutacoes_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=537 Por Murilo Bomfim

Os vírus têm mais filhos em um dia do que podemos ter durante a vida inteira

*

O texto abaixo responde à pergunta feita por Amílcar Borges de Jesus, baiano, 9 anos, para a série “Perguntas de criança, respostas da ciência”.

O combate à pandemia já não estava fácil há cerca de um ano, quando a variante Alpha do novo coronavírus deu as caras no Reino Unido e complicou ainda mais a situação. De lá para cá, outras variantes foram identificadas, dando a sensação de que, mesmo com as vacinas, estamos enxugando gelo. O que explica essa evolução tão rápida?

Vírus são seres muito simples, feitos apenas de uma cápsula proteica e do seu material genético (DNA, RNA ou ambos). Quando eles se reproduzem, as informações genéticas são copiadas — e essas cópias estão sujeitas a erros, gerando mutações. É como um telefone sem fio: alguma informação diferente da história original sempre pode ser passada para frente.

É o acúmulo desses erros que forma uma variante. Não é apenas a biologia, no entanto, que explica por que o novo coronavírus evolui mais rápido que os humanos. A questão também é matemática. As mutações que ocorrem na reprodução podem levar a mudanças evolutivas. Se, enquanto espécie, temos novas gerações a cada vinte ou trinta anos, o vírus se replica a cada dez ou vinte minutos. Com uma reprodução mais frequente, as chances de acumular mutações são bem maiores.

Voltando à biologia, existem mecanismos específicos que nos diferenciam dos vírus. Um deles é o sistema de reparação. Quando uma célula humana é copiada, o organismo é capaz de fazer uma checagem em busca de erros. Se um erro é detectado, é corrigido — o que limita nossas mutações. Esse sistema, no entanto, é sujeito a falhas: nesses casos, podemos desenvolver doenças genéticas, por exemplo.

O novo coronavírus também é capaz de fazer reparos, porém suas detecções são muito menos precisas que as dos humanos. A maior parte dos vírus nem conta com esse sistema (fosse esse o caso do coronavírus, faltariam letras no alfabeto grego para nomear variantes).

Além disso, o corpo humano é perspicaz ao organizar suas células. Elas podem ser divididas em dois grupos: somáticas e germinativas. As somáticas compõem a maior parte do organismo. Estão, por exemplo, nos olhos, no fígado, na pele. Elas se reproduzem com mais frequência e podem gerar mutações diversas (que vão de alterações imperceptíveis até a criação de tumores). Mas essas mutações não são passadas aos descendentes. A hereditariedade é poder exclusivo das células germinativas –os óvulos e os espermatozoides. O corpo entende que as mutações que ocorrem nessas células são transmitidas à prole, por isso o sistema de reparo das germinativas é especialmente rígido. Já no universo dos vírus, qualquer mutação é hereditária.

Ser vírus, no entanto, tem lá suas vantagens. A identificação da variante Alpha foi uma surpresa para a comunidade científica que acompanhava as mutações de perto. “Víamos um genoma estável e, de repente, surge uma variante com quinze, vinte mutações”, diz o geneticista Hugo Aguilaniu, diretor-presidente do Instituto Serrapilheira. Ele conta que isso é possível quando o vírus encontra um “reservatório”– um lugar onde ele pode se replicar sem ser percebido.

Existem duas teorias para explicar esta aparição repentina das variantes. Uma delas é a reprodução em pessoas imunodeprimidas, que podem abrigar o vírus por meses. Neste período, as mutações se acumulam e a pessoa infectada pode transmitir um coronavírus um pouco diferente daquele que a infectou.

A outra possibilidade é que o novo coronavírus tenha encontrado um reservatório não em humanos, mas em outros animais. Uma espécie suspeita são os visons, sacrificados em massa em países europeus por estarem infectados pelo patógeno. Neste caso, o vírus rapidamente se alastra pelo grupo, sofre mutações e pode voltar a infectar humanos.

Mesmo com tantas variantes, vacinar populações não é enxugar gelo. Enquanto vamos criando resistência contra casos graves de Covid-19, a tendência é que o vírus se torne menos agressivo à saúde humana, talvez sendo comparado a um resfriado qualquer. É bom para nós, que poderemos, enfim, nos livrar da pandemia, e bom para ele, que vai poder se replicar sem virar manchete.

*

Murilo Bomfim é jornalista.

Sabemos que as crianças fazem as melhores perguntas, e que a ciência pode ter boas respostas para elas. Todo mês, a série “Perguntas de criança, respostas da ciência” convida um cientista a responder uma dessas questões fundamentais. Você tem uma sugestão de pergunta? Veja aqui como colaborar.

]]>
0
O nome disso é evolução https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/05/08/o-nome-disso-e-evolucao/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/05/08/o-nome-disso-e-evolucao/#respond Sat, 08 May 2021 10:25:58 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/henning-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=399 Por Frederico Henning

O vírus está se adaptando a nós por seleção natural e por enquanto segue passos previsíveis

*

“Mutações” e “variantes” se tornaram palavras frequentes na imprensa, lançando sobre a sociedade algumas perguntas importantes: as vacinas continuarão funcionando? As pessoas poderão ser reinfectadas? O vírus está mais perigoso? Outro dia um especialista explicava em uma entrevista que “surgem mutações e algumas se tornam variantes de maior propagação”. Pois bem, esse processo tem nome e sobrenome: evolução por seleção natural. Ouvimos com frequência que as novas variantes são as culpadas pelo descontrole da pandemia. Mas a evolução é mesmo imprevisível?

As pessoas costumam associar a evolução das espécies às grandes transformações que ocorrem nas formas de vida ao longo de muito tempo. Geralmente se pensa que a evolução leva ao “progresso” dos organismos em direção à perfeição ou complexidade. Na realidade, a evolução opera de forma contínua a passos curtos e o “progresso” ou “adaptação” devem ser vistos como “a resolução de problemas imediatos”. Para um coronavírus, progresso é aumentar a taxa de transmissão. Não há direção para a evolução no longo prazo, pois os rumos da vida mudam devido a alterações drásticas no ambiente, como por exemplo a queda de meteoros. No entanto, na escala de tempo em que nós vivemos, a evolução é surpreendentemente previsível.

A evolução adaptativa ocorre sempre que houver duas coisas: mutação e seleção natural. A primeira parte, a mutação, ocorre ao acaso e sozinha não torna os organismos mais adaptados. Cada vez que um vírus se multiplica, um em cada cem mil nucleotídeos –representadas pelas letras A, C, U e G que formam a sequência genética de RNA– é copiado de modo errado, resultando em mutações aleatórias. Mas há alguma regularidade no caos. Não podemos prever qual letra será trocada por outra em um evento de mutação, mas sim quantas mutações irão ocorrer a cada geração. Como o genoma do vírus é constituído de 30 mil letras, cada novo vírus tem uma chance de cerca de 30% de ser mutante.

Devido a esta regularidade, podemos comparar as sequências genéticas de organismos atuais e inferir quanto tempo se passou na evolução com base no número de diferenças entre elas. Este “cronômetro de mutações” é a principal ferramenta usada nas investigações científicas para saber de onde o vírus se originou, como chegou e se espalhou no Brasil e também para monitorar o aparecimento e dispersão das novas variantes.

A segunda parte da equação, a seleção natural, explica por que alguns desses mutantes dominam a população e “se tornam variantes de maior propagação”. Não é um processo fortuito, tanto que a produção de alimentos tem se beneficiado da previsão de geneticistas há mais de um século. Uma mostra da previsibilidade da seleção natural é que as diferentes linhagens de coronavírus, mesmo isoladas umas das outras, estão evoluindo de forma parecida. Um vírus pode mudar de mais de 150 mil jeitos diferentes, mas as variantes estão acumulando as mesmas mutações que aumentam a transmissão e a evasão da defesa imune. Esta evolução “convergente” –que sai de pontos distintos e chega à mesma resposta– indica os caminhos genéticos pelos quais o vírus evolui, as variantes que devem ser o foco de vigilância e os próximos passos na evolução viral. Sabemos como neutralizar a evolução adaptativa. Se cortarmos a transmissão, particularmente das linhagens contendo mutações compartilhadas, impediremos a ação da seleção natural. Embora as mutações continuem a ocorrer, não haverá o acúmulo daquelas que são boas para o vírus.

Antecipar a evolução é fundamental para que as vacinas mantenham a eficácia frente a novas variantes e até mesmo para fazer o diagnóstico, já que o exame de RT-PCR só detecta a presença do vírus se soubermos parte de sua sequência genética. Portanto, cientistas precisam prever as mudanças genéticas que ocorrerão para interpretar e desenvolver testes que continuem a funcionar à medida que o vírus evolui.

“Há grandeza nesta visão de mundo”, escreveu Darwin ao encerrar seu livro mais famoso. Há grande utilidade também, mas controlar o processo começa por dar nome aos bois e isto se chama evolução.

*

Frederico Henning é biólogo e professor na UFRJ, onde coordena projetos de pesquisa, ensino e extensão em genética, genômica e evolução.

Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar mais novidades do instituto e do blog Ciência Fundamental. Tem uma sugestão de pauta? Veja aqui como colaborar.

]]>
0
As ovelhas de um olho só https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/04/19/as-ovelhas-de-um-olho-so/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/04/19/as-ovelhas-de-um-olho-so/#respond Mon, 19 Apr 2021 15:55:21 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/serrapilheira_ilustracao_ovelhas_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=379 Por Rossana Soletti

Um caso curioso nos ajuda a responder por que temos dois olhos

*

O livro infantil Somos todos extraordinários, da norte-americana R. J. Palacio, conta a história de um garotinho de um olho só que vive como um garoto comum, mas enfrenta olhares espantados e dedos apontados. Ele sabe que não pode mudar seu rosto, mas acredita que as pessoas possam mudar o modo como o enxergam. Terminada a leitura, minha filha de sete anos me perguntou: “Se o menino é extraordinário e se somos todos extraordinários, então por que nós nascemos com dois olhos”?

A pergunta pode ser simples, mas a resposta é um tanto complexa. Comecei por contar a ela uma outra história.

Na década de 50, numa fazenda no interior dos Estados Unidos as pessoas foram surpreendidas pelo nascimento de ovelhas com um olho só. O mistério das ovelhas ciclopes atraiu atenção e muitos palpites, ainda mais depois que outras ninhadas semelhantes aparecerem em fazendas vizinhas. Para resolver essa charada, convocaram os cientistas do Departamento de Agricultura, mas ninguém imaginava que seriam necessários tantos anos de investigação.

A primeira hipótese era de que uma doença genética estivesse causando as alterações, mas após uma série de cruzamentos feitos em laboratório, nada aconteceu: todas as ovelhas nasciam com dois olhos e o rosto típico da espécie. Os pesquisadores observaram então que o nascimento das ovelhas ciclopes obedecia a um padrão sazonal, além de ser restrito aos rebanhos que pastavam em altitudes elevadas.

Foi aí que surgiu a hipótese de que um fator ambiental pudesse estar interferindo na gestação daqueles animais. A identificação desse fator não ocorreu da noite para o dia, é claro. Cerca de dez anos e muitas análises depois, veio enfim a resposta: as ovelhas estavam consumindo uma planta herbácea nativa da região que provocava malformações na cabeça do feto, caso ingerida nas primeiras semanas de gestação.

Pronto, mistério resolvido: era só retirar a planta das pastagens e não nasceriam mais ovelhas ciclopes. Mas, assim como fazem as crianças, os cientistas sempre querem saber os porquês: por que a ingestão dessa planta provocava o nascimento de ovelhas com um olho só? Lá se foram mais alguns anos de pesquisa até o isolamento e a caracterização dos constituintes químicos da planta, com a identificação do culpado, nomeado de ciclopamina.

E foi somente três décadas depois que a outra peça do quebra-cabeças foi desvendada e as coisas começaram a se encaixar: pesquisadores observaram que para o correto desenvolvimento do cérebro, dos olhos e de outras estruturas da face dos animais (incluindo os seres humanos), as células do embrião precisam receber informações, na hora certa, de proteínas que agem como guias sinalizadores em uma via chamada Hedgehog, ou Hh. Quando o embrião ainda é muito menor do que um grão de arroz, os sinalizadores da via Hh atuam nas células que ficam no meio da face, levando as instruções para que elas migrem lateralmente, proliferem e estabeleçam dois campos visuais. Caso essa via seja bloqueada, diversas malformações cerebrais e faciais podem ocorrer, como a ciclopia. E quem é que pode bloquear a via Hh? Eureka, é a ciclopamina!

Tantas décadas de pesquisa e de descobertas nos trouxeram entendimentos que vão além dos processos necessários para a formação dos olhos e da face de ovelhas, ratos ou seres humanos. Compreender o modo como as células se comunicam nos ajuda também a pensar em tratamentos para reajustar células com erros na sinalização. Hoje sabemos que em algumas células tumorais a via Hh pode estar ativada em excesso, e por isso inibidores dessa via, parecidos com a ciclopamina, já são utilizados no tratamento de um tipo de câncer de pele e estão sendo testados para vários outros tipos de câncer.

Assim como na ficção do menino que com apenas um olho nos mostra a beleza da diversidade, a construção do conhecimento científico pode nos levar a caminhos extraordinários.

*

Rossana Soletti é professora da UFRGS Litoral e atua principalmente em oncobiologia, morfologia e divulgação científica.

Sabemos que as crianças fazem as melhores perguntas, e que a ciência pode ter boas respostas para elas. Todo mês, a série “Perguntas de criança, respostas da ciência” convida um cientista a responder uma dessas questões fundamentais. Você tem uma sugestão de pergunta ou de pauta para o blog? Veja aqui como colaborar.

]]>
0
Por que envelhecemos? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/05/27/por-que-envelhecemos/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/05/27/por-que-envelhecemos/#respond Wed, 27 May 2020 14:26:40 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/ilustra-texto-hugo.-Sandra-Jávera-web.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=131 Por Hugo Aguilaniu

A natureza nos mostra que velhice não é sinônimo de desgaste

*

Muitos associam velhice a desgaste. Assim como um par de sapatos se deteriora com o tempo, nosso corpo enfraqueceria, pararia de funcionar e morreria.

Desde o final do século 19, o impulso dado por Charles Darwin levou uma comunidade inteira de pesquisadores a questionar os processos da vida à luz da teoria mais recente. O envelhecimento não fugiu à regra.

A observação logo nos permitiu compreender que idade e desgaste são dois processos absolutamente diferentes. Os seres vivos envelhecem de formas muito diversas. O salmão, por exemplo, tem seu amadurecimento físico acelerado após a desova. Alguns vegetais, como Ginkgo biloba e Pinus longavea, se mostram bem pouco suscetíveis à ação de Cronos. Ao analisar a árvore da vida em sua plenitude, salta aos olhos que esse processo não seja apenas físico-químico, como a corrosão.

Existem até algumas espécies que parecem não envelhecer. O rato-toupeira pelado africano é primo do nosso rato, mas ao que tudo indica está protegido dos efeitos do avanço do tempo. Sua expectativa de vida é de cerca de trinta anos, enquanto um rato comum vive entre dois e quatro anos. A hidra, um organismo aquático muito simples da ordem cnidária, dá a impressão de ser congelada no tempo: quando isolada em laboratório, não mostra nenhum sinal de que os anos a desgastaram.

O avançar da idade não está, portanto, necessariamente associado à morte. Sendo assim, perguntar por que envelhecemos é, afinal, relevante.

É muito difícil provar por meio de experimentos as razões para o nosso envelhecimento, mas a hipótese mais plausível se baseia num grande número de observações e comparações entre espécies.

Vale ressaltar que as espécies mais propensas a escapar das agruras da idade são simples em estrutura e função. A hidra ou a água-viva, por exemplo, se reproduzem liberando pólipos e absorvem nutrientes para sobreviver. A reprodução e a nutrição, duas funções básicas necessárias à sobrevivência, são compostas sobretudo de células-tronco capazes de se regenerar e zerar em continuação o contador da passagem do tempo. Essas são as células ancestrais, que desempenham as funções estritamente necessárias à perpetuação da vida. Um organismo que em sua essência é constituído dessas células-tronco perpetua-se ao infinito.

Já os organismos que envelhecem parecem ser mais complexos e têm funções mais diversas. Os seres humanos, por exemplo, desenvolveram funções surpreendentes e quase supérfluas conforme foram evoluindo. Temos cérebro, músculos, olhos e orelhas. Isso implica que desenvolvemos as habilidades de ver, correr, ouvir, dançar e pensar. As células responsáveis por essas funções são as chamadas somáticas, superespecializadas. As dos músculos se contraem, os neurônios transmitem correntes elétricas de um ponto a outro de nosso corpo etc. Estão aptas, portanto, a realizar proezas, porém perderam sua capacidade ancestral de regeneração – elas chegam ao fim.

E as nossas células-tronco? Existem dois tipos principais, as somáticas e as geminais. As células-tronco somáticas são responsáveis pela regeneração de alguns de nossos órgãos, mas essa regeneração é fraca e ocorre apenas em determinados momentos, de forma bastante controlada (ainda não muito bem entendida).

As células-tronco responsáveis pela perpetuação da espécie são as geminais (não somáticas), concentradas em nosso sistema reprodutivo. São elas que permitem a regeneração e o recomeço do zero – mas só fazemos isso para conceber nossos filhos.

Nossa escolha evolutiva foi concentrar essa capacidade regenerativa em determinadas células e desenvolver outras funções espetaculares que nos beneficiam, ainda que não sejam absolutamente essenciais para a sobrevivência. É essa inclinação à diversificação de funções que permite que esse texto seja escrito e lido por alguém, mas não sem um preço: nossa finitude como indivíduos. Uma escolha magnífica que parece filosófica em muitos sentidos.

*

Hugo Aguilaniu é biólogo geneticista e diretor-presidente do Instituto Serrapilheira

Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar mais novidades do instituto e do blog Ciência Fundamental.

]]>
0
Uma pista para a juventude eterna https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/04/02/uma-pista-para-a-juventude-eterna/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/04/02/uma-pista-para-a-juventude-eterna/#respond Thu, 02 Apr 2020 05:00:21 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/ilustra-texto-hugo.-Catarina-Bessell-2.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=85 Por Hugo Aguilaniu

Alterações no metabolismo poupam equatorianos com nanismo dos efeitos do envelhecimento

*

Não existe remédio para viver mais e melhor além de alimentação equilibrada, exercícios físicos regulares e distância de comportamentos de risco e excessos em geral. Mas hoje temos alguns indícios de como prolongar a expectativa de vida ou atenuar os efeitos do envelhecimento.

Afirmar que determinado tratamento afeta a longevidade não é simples. Para tanto, deveríamos comparar a expectativa de vida (ou a qualidade do envelhecimento) de duas populações humanas idênticas que representassem a totalidade da espécie, submetidas a dois tratamentos diferentes. Esse experimento não é banal por diversas razões.

Em primeiro lugar, é difícil comprovar que duas populações humanas sejam totalmente idênticas e representem essa totalidade: isso só seria possível se as populações fossem grandes o suficiente para serem consideradas estatisticamente idênticas. Outro grande empecilho é o tempo. Por definição, tal experimento seria muito, muito longo; poucos estariam dispostos a investir em um estudo que certamente não poderiam acompanhar até o fim. E por isso as pistas já existentes muitas vezes foram obtidas por meio de encontros quase fortuitos.

Os primeiros experimentos a respeito das causas do envelhecimento foram publicados em 1988 por Thomas Johnson, da Universidade de Boulder (EUA), que mostrou que um gene era capaz de aumentar a longevidade do Caenorhadbitis elegans, um pequeno verme de 1 mm de comprimento. Em 1993, Cynthia Kenyon identificou outro gene cuja alteração encompridava a expectativa de vida do mesmo nematoide.

A descoberta é interessante porque, posteriormente, compreendeu-se que os dois genes tinham relação com a via de sinalização da insulina, aquela que responde à presença do açúcar no organismo e ativa uma série de processos metabólicos, entre os quais o crescimento. Isso significava que essa via metabólica era capaz de regular a longevidade em animais simples como o nematoide.

Essas observações foram confirmadas em outros organismos, como as moscas drosófilas e os ratos. Nesses casos, sim, podemos dizer que um gene afeta o envelhecimento quando comparamos a longevidade de duas populações similares em todos os aspectos, só diferenciadas pelo tal gene. A alteração é feita por cientistas, por meio da manipulação genética, ou seja: sabemos exatamente o que estamos fazendo.

Mas e quanto aos seres humanos? Um indício de peso chega a nós de uma comunidade de equatorianos com nanismo, que sofrem da rara Síndrome de Laron, também observada em populações judias do Mediterrâneo. Supõe-se que esses equatorianos descendam de judeus que fugiram da Inquisição espanhola de Isabel I de Castela (1451-1504).

O médico Jaime Guevara há muito se intrigava com a saúde atípica desse grupo de pequenas pessoas. Ao conhecer Valter Longo, um geneticista italiano que trabalhava com envelhecimento na Universidade do Sul da Califórnia (EUA), os dois logo estabeleceram uma conexão: aquelas 99 pessoas carregavam uma mutação no receptor do hormônio de crescimento que, embora impedisse o desenvolvimento pleno de seus corpos, era muito similar a mutações na via de sinalização da insulina que prolongam a expectativa de vida de animais de laboratório.

Em 2011 Guevara e Longo publicaram um estudo mostrando que esses indivíduos são, de fato, protegidos dos efeitos do envelhecimento e não sofrem de câncer ou diabetes, mesmo com uma dieta comum. Ressalto que, embora resguardados dos dissabores da idade, por serem um grupo reduzido não é possível traçar uma diferença estatística relevante em relação à longevidade.

Ainda assim, é marcante o fato de existir um grupo de quase cem pessoas imunes a doenças derivadas do avançar da idade. Esse tipo de proteção sugere fortemente que a via de sinalização da insulina poderia afetar o envelhecimento nos humanos. A administração de moléculas que atenuem essa via após o período de crescimento poderia então constituir um verdadeiro elixir da juventude.

*

Hugo Aguilaniu é biólogo geneticista e diretor-presidente do Instituto Serrapilheira

Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar mais novidades do instituto e do blog Ciência Fundamental.

]]>
0
Por que não existe uma única vacina contra a gripe? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/03/18/por-que-nao-existe-uma-unica-vacina-contra-a-gripe/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/03/18/por-que-nao-existe-uma-unica-vacina-contra-a-gripe/#respond Wed, 18 Mar 2020 14:50:06 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/ilustra-texto-gabriela.-Sandra-Jávera-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=74 Por Gabriela Cybis

Vírus em constante mutação exige vacinas sazonais

*

Quando você entra em contato com certas doenças infecciosas pela primeira vez, seu corpo cria uma memória imunológica. Caso no futuro ele se depare com o mesmo patógeno, o sistema imune saberá como protegê-lo. As vacinas se servem desse mecanismo de memória, apresentando ao organismo pedaços ou versões enfraquecidas dos agentes infecciosos. Assim, nosso sistema imune adquire o treinamento necessário para nos salvaguardar do patógeno, sem que corramos o risco e o sofrimento de contrair a doença.

As vacinas estão entre as mais importantes descobertas da medicina, sendo responsáveis pela completa erradicação da varíola e pelo controle de diversas outras doenças. A tríplice viral é um ótimo exemplo: duas doses na infância conferem proteção para toda a vida contra caxumba, rubéola e sarampo. O recente retorno de vários casos de sarampo está fortemente associado a uma queda no número de pessoas que buscam imunização.

O caso da gripe, porém, é diferente. Todo ano é lançada uma nova vacina que deve ser tomada para manter o nível de proteção, pois a gripe é um vírus de rápida evolução. Essa evolução é tão rápida que se você pega gripe num ano, há uma boa probabilidade de que a defesa adquirida não seja eficaz contra as versões do vírus que irão circular no ano seguinte.

Como o vírus da gripe está em constante mudança, é fundamental que, para ser efetiva, a vacina seja fabricada com base nas variantes que circulam logo após sua aplicação. O problema é que, como ela demora um tempo para ser produzida, precisamos projetá-la mais de meio ano antes de sua distribuição. Ou seja: não basta conhecer as variantes do vírus hoje ativas. Para planejar uma vacina efetiva, é preciso identificar quais das variantes atuais mais se assemelham àquelas que encontraremos na próxima temporada de espirros. Isso é, precisamos prever o futuro.

Qualquer pessoa que acompanha a Bolsa de Valores ou já tentou comprar moeda estrangeira para uma viagem sabe como é difícil antecipar a situação do dia de amanhã, o que dizer daquela que se apresentará dali a seis meses. Realizar previsões confiáveis está entre os problemas mais desafiadores da ciência. Assim como o bom investidor se cerca de informações sobre as condições do mercado para embasar suas decisões, para fundamentar o design da vacina os cientistas reúnem uma grande quantidade de informações que retratam a situação atual do vírus. Colhem amostras do vírus da gripe ao redor do mundo, registrando o local e a data de coleta. Identificam as sequências genéticas para acompanhar o ritmo da sua evolução. Além disso, como a interação do vírus com o sistema imune é fundamental para a vacina, quantificam quão semelhantes ou diferentes os vírus são nesse quesito.

Mas como extrair sentido desses dados? O que as sequências genéticas de fato podem nos dizer? Comparando-as, podemos determinar quais variantes do vírus são mais próximas ou mais distantes umas das outras, e com os métodos estatísticos adequados podemos até reconstruir a “genealogia” da gripe e identificar em quais linhagens a evolução ocorre de modo mais rápido. Com base em amostras de vírus do passado e informações bioquímicas das proteínas da gripe, é possível mapear as regiões das sequências que são os motores da evolução viral em cada temporada. É crucial, pois, desenvolver métodos estatísticos, geralmente envolvendo um grande componente computacional para integrar dados tão diferentes e deles extrair conhecimento que auxilie no design da vacina.

E assim, todo ano, a Organização Mundial da Saúde reúne um grupo de especialistas que, de posse dos dados disponíveis e do resultado dos estudos mais recentes, seleciona as variantes do vírus que serão empregadas para produzir a vacina do ano seguinte. É uma aposta. Apoiada em dados e na melhor ciência disponíveis, mas uma aposta. (Esse exercício deverá ser repetido anualmente, até que novas tecnologias o tornem obsoleto.)

E qual o resultado dessa aposta? Bem, todo ano milhares de vidas são salvas e milhões de pessoas deixam de ser infectadas devido à ação da vacina. Pouco não é.

*

Gabriela Cybis é bióloga, professora de Estatística na UFRGS, atua em modelagem estatística para genética

Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar mais novidades do instituto e do blog Ciência Fundamental.

]]>
0
Simulando epidemias https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/02/27/simulando-epidemias/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/02/27/simulando-epidemias/#respond Thu, 27 Feb 2020 17:33:07 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/02/sims-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=60 Por Gabriela Cybis

Como a modelagem matemática lida com a dispersão de vírus, do corona a zumbis

*

Logo que surge uma epidemia viral, começam a ser divulgadas informações sobre o número de novos casos e mortes, e quais as cidades onde se encontram os infectados – primeiro concentradas próximo ao ponto de origem, e gradativamente se espalhando em uma onda que ameaça tomar conta do globo. Nos últimos anos vimos esse filme algumas vezes: em 2002, o SARS que se propagou para dezessete países; em 2009, a gripe suína (H1N1) que se tornou pandêmica atingindo todos os continentes; em 2013, a ameaça da gripe aviária. E agora acompanhamos o desenrolar da epidemia do novo coronavírus.

O que pode ser feito para conter a dispersão do vírus? Governos adotam medidas como fechar escolas; medir a temperatura de passageiros que desembarcam nos aeroportos; proibir a entrada de pessoas vindas de regiões afetadas; restringir o tráfego aéreo; cancelar eventos públicos de grande porte, como as comemorações do ano-novo chinês. Mas como avaliar o efeito real dessas ações? Considerando o impacto econômico e social dessas medidas restritivas, será que o ganho em termos de contenção da epidemia compensa?

A resposta a essas questões é complexa e depende de uma série de fatores. Nem todos os vírus são iguais, e seu modo de transmissão, a facilidade com que infectam novas pessoas, os períodos de latência e a letalidade variam. Além disso, condições sociais, demográficas e até climáticas podem afetar a dinâmica do vírus.

Como não temos bola de cristal, a melhor forma de entender como esses fatores se combinam para determinar o curso da epidemia são os modelos matemáticos que costumam dividir a população em três subgrupos: suscetíveis (quem nunca pegou a doença e, se entrar em contato com ela, pode contraí-la); infecciosos (quem carrega o vírus e, se entrar em contato com pessoas suscetíveis, pode transmiti-lo); removidos (quem não participa mais da dinâmica de infecções, pois ou já se recuperou – e está imune – ou morreu).

Para estudar o progresso da epidemia e traçar estratégias de contenção, os modelos acompanham a rede de interação entre esses grupos, em graus variáveis de detalhe. Nos Estados Unidos, por exemplo, um modelo para doenças tipo gripe utiliza dados de censo, levando em conta mapas, padrões de locomoção, idade e interações no trabalho, na escola e em casa. Simula-se assim um enorme ambiente no qual os agentes (indivíduos) seguem suas rotinas de modo similar ao jogo The Sims. Cada vez que um indivíduo suscetível interage com um infeccioso, ele tem certa probabilidade de contrair a infecção. A simulação é repetida várias vezes para identificar o curso mais provável da epidemia e os resultados das intervenções de controle.

Uma ressalva importante é que o modelo é apenas tão bom quanto seus pressupostos. Se ele não capturar bem o processo de transmissão do vírus, as conclusões vão reproduzir essas falhas.

Afinal, o que aprendemos com esses estudos? A aleatoriedade desempenha um papel importante no curso de várias epidemias. Os modelos podem nos dar estratégias de vacinação em grupos etários, por exemplo privilegiando as crianças, já que o ambiente escolar é propício à circulação do vírus. Propostas combinadas, com ações como distribuição estratégica de antivirais, alterações de comportamento individual e fechamento seletivo de escolas podem obter alto grau de sucesso.

Certas estratégias (o recolhimento de profissionais do local da epidemia, entre outros) podem ter efeito oposto ao desejado. E, claro, tudo isso depende das condições específicas do vírus em questão. O importante é que dispomos de ferramentas científicas para nos ajudar a avaliar o efeito de cada ação, agindo quase como uma bola de cristal que nos ajuda a vislumbrar o resultado de cada escolha (e suas margens de erro).

Na interface entre a cultura pop e a modelagem epidemiológica, encontramos quem? Os zumbis. Diz a tradição que humanos mordidos por zumbis acabam virando zumbis. Eles se encaixam perfeitamente no modelo suscetíveis (humanos), infecciosos (zumbis) e removidos (mortos), e compõem um case lúdico para o ensino desses modelos para as novas gerações de epidemiologistas.

*

Gabriela Cybis é bióloga, professora de Estatística na UFRGS, atua em modelagem estatística para genética

Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as atualizações do blog Ciência Fundamental.

]]>
0
Tal pai, tal (epi)filho https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/02/20/tal-pai-tal-epifilho/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/02/20/tal-pai-tal-epifilho/#respond Thu, 20 Feb 2020 05:00:00 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/02/ilustra-texto-hugo.-Valentina-Fraiz-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=55 Por Hugo Aguilaniu

Um enteado pode “herdar” características do padrasto?

*

Ao longo das últimas décadas aumentou o número de divórcios, bem como o número de rearranjos familiares. Hoje em dia é comum crescer com um padrasto ou madrasta, embora a Justiça, por vezes, resista em equipará-los aos pais biológicos (ainda que cada vez menos). Aos olhos da sociedade, o elo genético prevalece sobre o laço afetivo. Implicitamente, consideramos que convivência e genética são elementos distintos. Mas será que essa separação é real? A vida em família pode ter consequências genéticas?

Por mais assustador que possa parecer, o DNA é considerado uma marca indelével, definitiva e impossível de ser falsificada. É uma ferramenta formidável para definir nossas afiliações e nossas legitimidades. Entretanto, agora esse absolutismo genético está sendo desafiado por nosso entendimento de uma área conhecida como epigenética, que estuda as mudanças no funcionamento de um gene provocadas por fatores ambientais, externos.

Em cada uma de nossas células há 46 moléculas de DNA organizadas em 23 pares. Elas se encontram no núcleo da célula, que representa apenas 10% de seu volume. Cada uma dessas moléculas é linear e tem unidades (chamadas genes) capazes de produzir um efeito na célula. Mais ou menos como uma partitura musical com notas que produziriam um som. O funcionamento adequado do corpo consiste então em tocar, ao mesmo tempo, 46 partituras em cada uma de nossas dez trilhões de células.

No caso do ser humano, nossa música tem cerca de vinte mil notas distribuídas entre 46 partituras – vinte mil genes em 46 moléculas lineares que são, consequentemente, muito longas. Estima-se que, em cada uma de nossas células, as moléculas de DNA enfileiradas meçam quase dois metros.

Quando os geneticistas entenderam a importância dessas notas e de sua ordem, chegaram a uma pergunta aparentemente trivial: como é possível haver dois metros de DNA dentro do minúsculo núcleo de uma célula (cerca de diz micrômetros cúbicos)? É óbvio que esses fios de DNA precisam ser dobrados e compactados com muito cuidado para caber em espaço tão reduzido. A forma como essas dobras ocorrem tornou-se o objeto de estudo da epigenética – não porque os cientistas tivessem um interesse especial por armazenamento e compactação, mas porque isso nos afeta enormemente e de maneira fascinante, por alguns motivos.

Em primeiro lugar, essa organização determina em grande medida a força com que nossos genes serão expressos. É como se essas dobras fossem o ritmo de nossa partitura. Dependendo do ritmo escolhido, podemos ignorar algumas notas, enquanto outras serão mais proeminentes.

Além disso, fatores externos como clima, nutrição, poluição etc. podem ter um impacto direto nessas dobras. Em outras palavras, as condições de vida precisam ser levadas em consideração. É muito provável, portanto, que membros de uma família, rearranjada ou não, apresentem as mesmas regulações epigenéticas (em parte), ainda que não compartilhem os mesmos genes. A despeito de suas notas serem ligeiramente diferentes, o ritmo será idêntico.

É extraordinário como essas alterações na organização – no ritmo – se perpetuam por toda a vida e às vezes são transmitidas de geração em geração, assim como os genes. Exemplo disso são os holandeses que passaram fome e sofreram de desnutrição durante a Segunda Guerra. Os descendentes herdaram marcas epigenéticas e, até hoje, seus netos e bisnetos manifestam uma maior incidência de doenças metabólicas como diabetes.

Isso significa que nossa expressão genética, que nos define biologicamente, é determinada tanto pelas notas em nossa partitura (os genes), que vêm conosco de nossos pais biológicos, quanto pelo ritmo dessa partitura (os fatores externos), que compartilhamos com as pessoas com quem vivemos. Tanto as notas quanto o ritmo em que as tocamos podem ser transmitidos aos nossos filhos. Seria então plausível, do ponto de vista biológico, que os futuros filhos do meu enteado venham, um dia, a se parecer um pouco comigo.

*

Hugo Aguilaniu é biólogo geneticista e diretor-presidente do Instituto Serrapilheira.

Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as atualizações do blog Ciência Fundamental.

]]>
0
Em busca de Adão e Eva https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/01/23/em-busca-de-adao-e-eva/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/01/23/em-busca-de-adao-e-eva/#respond Thu, 23 Jan 2020 05:00:18 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/01/ilustr-texto-gabriela-catarina-bessell-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=28 Por Gabriela Cybis

Em algum momento do passado, uma mulher foi a última ancestral comum, na linhagem materna, de todos os seres humanos vivos

*

Você já parou para pensar em seus ancestrais? Eles ajudam a contar um pouco a história de quem somos. Mas quantos são eles? Bem, a gente tem um pai e uma mãe, quatro avós, oito bisavós, dezesseis tataravós etc. A cada geração que recuamos, o número de ancestrais duplica. Assim, há dez gerações, em torno do ano 1690, você teria 2^10=1024 ancestrais, alguns dos quais podem ter presenciado o fim do Quilombo dos Palmares. Há 1200 anos, quando teve início a era das excursões vikings, você teria mais de 68 bilhões de ancestrais.

Esse número é claramente absurdo, uma vez que a população humana não chegava a 300 milhões no ano 800 DC. Como conciliar essa aparente contradição? É simples: vários desses ancestrais devem ter sido a mesma pessoa, o que significa que houve uma grande quantidade de endocruzamentos na história da humanidade. Somos todos parentes, uns dos outros e de nós mesmos.

Nesse contexto, talvez seja mais interessante investigar não quantos ancestrais distintos nós temos, mas sim aqueles que temos em comum. A chave para esta questão está na genética. Mas estudar ancestralidade compartilhada é incrivelmente complexo, dada a maravilhosa balbúrdia da reprodução sexuada. Para simplificar a questão, buscamos um modelo em que a recombinação de material genético de pai e mãe não dificulte a análise do passado.

Um bom exemplo é o DNA mitocondrial. Mitocôndrias são organelas celulares que carregam seu próprio material genético, e que são herdadas apenas na linhagem materna. Você recebeu suas mitocôndrias da sua mãe, que por sua vez as recebeu da mãe dela, e sucessivamente, sem a complicação de interação com as linhagens paternas. Assim, a ancestralidade compartilhada pela linhagem materna pode ser reconstruída comparando o DNA mitocondrial de várias pessoas.

Esses dados são analisados à luz de um modelo que reproduz matematicamente as probabilidades de encontro de diferentes linhagens ancestrais. O modelo começa no presente e olha para o passado, partindo do pressuposto de que cada pessoa da geração atual herdou suas mitocôndrias de uma pessoa da geração anterior. É possível que duas pessoas compartilhem a mesma ancestral na geração anterior –são irmãos–, ou há duas gerações –são primos–, ou há mais tempo ainda.

Ao estender esse argumento a um conjunto maior de indivíduos, a teoria das probabilidades nos garante que, se esperarmos tempo suficiente, é inevitável que todos os seres humanos vivos chegaremos a um único ancestral comum. Essa dinâmica representa o processo de “coalescência”, decorrente do modelo de Wright-Fisher, um dos modelos mais clássicos da genética de populações.

Aqui, cabe uma curiosidade: se revertermos o sentido do tempo para esse argumento, também é possível garantir que, se esperarmos tempo suficiente, em algum momento do futuro, alguma mulher viva hoje será a ancestral –dará origem– a todos os seres humanos do planeta. Isso, é claro, se a humanidade não for extinta antes.

A consequência surpreendente deste argumento é que, em algum momento do passado, existiu uma mulher que foi a última ancestral comum, na linhagem materna, de todos os seres humanos vivos hoje. Vale ressaltar que essa figura, batizada de Eva mitocondrial, não vivia isolada: era contemporânea de diversas outras pessoas. Enquanto todos nós somos descendentes dela na linhagem materna, e portanto dela herdamos nossas mitocôndrias, provavelmente também herdamos material genéticos dessas outras pessoas.

Na busca da mãe primordial, foram realizados diversos estudos que combinam derivações teóricas do processo de coalescência e análises genéticas do DNA mitocondrial. Estima-se que a matriarca tenha vivido há aproximadamente 150 mil anos, em algum ponto da África subsaariana, possivelmente em região próxima ao rio Zambezi.

Caminho semelhante pode ser percorrido para linhagens masculinas. Assim como as mitocôndrias são herdadas das nossa mães, o cromossomo Y, presente apenas nos homens, é herdado por meio da linhagem paterna. Ao estudar a ancestralidade compartilhada pelo cromossomo Y, chega-se ao pai de toda a humanidade. Esse ancestral comum de todos as pessoas vivas hoje recebe o nome de Adão do cromossomo Y. Estudos divergem quanto à sua datação, estimando que ele teria vivido entre 200 mil e 120 mil anos no passado, também na África subsaariana. Infelizmente, a natureza parece carecer de romantismo: é muito provável –quase certo, para ser mais preciso– que Adão e Eva nunca tenham se conhecido.

*

Gabriela Cybis é bióloga, professora de Estatística na UFRGS, atua em modelagem estatística para genética

]]>
0