Ciência fundamental https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br O que pensam os jovens cientistas no Brasil? Thu, 02 Dec 2021 15:29:05 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Epidemias e comportamentos: quem muda o quê? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/30/epidemias-e-comportamentos-quem-muda-o-que/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/30/epidemias-e-comportamentos-quem-muda-o-que/#respond Sat, 30 Oct 2021 10:14:01 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/manchuria-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=573 Por Mellanie Fontes-Dutra

O legado da pandemia da Covid-19

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Importantes vetores de nosso comportamento, os grandes desafios –como a pandemia da Covid-19– nos incitam a discutir o que provocou os cenários de conflagração e inspiram mudanças profundas, tanto em escala individual quanto social. Hoje, o que aplicamos na tentativa de contornar os impasses reflete um conjunto de conhecimentos e experiências de um tempo muitas vezes não tão remoto.

Resgatar medidas e enfrentamentos do passado pode favorecer estratégias mais eficazes no presente, daí a importância de relembrar crises sanitárias já enfrentadas –não só no Brasil, mas também no mundo.

Em 1910, um surto de uma doença misteriosa –que ficaria conhecida como praga da Manchúria – assolou o nordeste da China, somando 60 mil óbitos num período de quatro meses. Foi graças ao médico malaio Wu Lien-teh que uma ideia inovadora foi lançada, baseada em conclusões de que essa peste, causada pela bactéria Yersinia pestis (sim, você já ouviu falar dela na peste bubônica) poderia se transmitir de pessoa a pessoa, possivelmente por gotículas respiratórias. A partir de então, o médico aconselhou que se usassem máscaras para tratar pacientes infectados, protocolo que se estendeu a todos os profissionais de saúde, tivessem ou não às voltas com essa praga. E também recomendou a criação de centros de quarentena, bem como insistiu que as autoridades decretassem medidas de restrição da movimentação das pessoas. Lembra alguma coisa?

Logo depois, em 1918, o mundo conheceu a gripe espanhola, provocada pelo vírus influenza, responsável por cerca de 35 mil óbitos só no Brasil. Diante de todas as dificuldades e desafios para esse enfrentamento, a sociedade brasileira passou por uma transformação profunda e necessária envolvendo a saúde pública no país, uma vez que, em muitos lugares (no Brasil e no mundo), indivíduos de classe média ou alta detinham o privilégio de consultas médicas. Nossa história com os vírus influenza teve outros capítulos, um dos quais em 2009, com a tal “gripe suína” que deve estar na memória de muita gente. Foi então que se disseminou o uso do álcool gel, não mais um alien oferecido na entrada de um restaurante ou local público. Ao longo da epidemia dessa gripe, fechamos escolas e reduzimos a circulação das pessoas para enfrentar esse agente infeccioso. De novo, lembra alguma coisa?

Grandes pandemias apresentam um fator em comum: a transmissão alta e generalizada de um agente infeccioso que passa a infectar nossa espécie, e para o qual ainda não temos alternativa terapêutica. Mas experiências anteriores nos revelam que medidas não-farmacológicas, às quais podemos aderir tanto individual quanto socialmente, são críticas para conter a propagação. Por outro lado, modificações significativas na sociedade precisam ser um legado do pós-pandemia. Não devemos temê-las ou enxergá-las como uma tentativa de sequestro do que costumávamos entender como “normal” antes desse evento. São, antes, uma oportunidade de trilhar novos caminhos capazes de driblar situações futuras passíveis de se transformarem em grandes desafios, evitando assim incorrer em erros do passado. É possível ainda que muitas das mudanças daqui para frente, no comportamento da sociedade, já estivessem sendo preparadas, e acabaram sendo antecipadas como resposta à crise.

Nosso estilo de vida nos levou a grandes avanços tecnológicos, bem como a uma forte expansão territorial da nossa presença, todavia nos revelou o quanto precisamos amadurecer enquanto sociedade, entendendo nossa responsabilidade para com o planeta e todas as espécies que nele habitam. Mostrou-nos que talvez precisemos revisitar os conceitos de “viver em sociedade” e refletir como a evolução dessa sociedade está intrinsecamente relacionada às maneiras como o grupo trabalha de forma cooperativa, na saúde ou na doença.

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Mellanie Fontes-Dutra, biomédica, pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (RS) e coordenadora da Rede Análise Covid-19.

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Por que o coronavírus evolui mais rápido que a gente? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/09/28/por-que-o-coronavirus-evolui-mais-rapido-que-a-gente/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/09/28/por-que-o-coronavirus-evolui-mais-rapido-que-a-gente/#respond Tue, 28 Sep 2021 14:33:31 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/serrapilheira_mutacoes_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=537 Por Murilo Bomfim

Os vírus têm mais filhos em um dia do que podemos ter durante a vida inteira

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O texto abaixo responde à pergunta feita por Amílcar Borges de Jesus, baiano, 9 anos, para a série “Perguntas de criança, respostas da ciência”.

O combate à pandemia já não estava fácil há cerca de um ano, quando a variante Alpha do novo coronavírus deu as caras no Reino Unido e complicou ainda mais a situação. De lá para cá, outras variantes foram identificadas, dando a sensação de que, mesmo com as vacinas, estamos enxugando gelo. O que explica essa evolução tão rápida?

Vírus são seres muito simples, feitos apenas de uma cápsula proteica e do seu material genético (DNA, RNA ou ambos). Quando eles se reproduzem, as informações genéticas são copiadas — e essas cópias estão sujeitas a erros, gerando mutações. É como um telefone sem fio: alguma informação diferente da história original sempre pode ser passada para frente.

É o acúmulo desses erros que forma uma variante. Não é apenas a biologia, no entanto, que explica por que o novo coronavírus evolui mais rápido que os humanos. A questão também é matemática. As mutações que ocorrem na reprodução podem levar a mudanças evolutivas. Se, enquanto espécie, temos novas gerações a cada vinte ou trinta anos, o vírus se replica a cada dez ou vinte minutos. Com uma reprodução mais frequente, as chances de acumular mutações são bem maiores.

Voltando à biologia, existem mecanismos específicos que nos diferenciam dos vírus. Um deles é o sistema de reparação. Quando uma célula humana é copiada, o organismo é capaz de fazer uma checagem em busca de erros. Se um erro é detectado, é corrigido — o que limita nossas mutações. Esse sistema, no entanto, é sujeito a falhas: nesses casos, podemos desenvolver doenças genéticas, por exemplo.

O novo coronavírus também é capaz de fazer reparos, porém suas detecções são muito menos precisas que as dos humanos. A maior parte dos vírus nem conta com esse sistema (fosse esse o caso do coronavírus, faltariam letras no alfabeto grego para nomear variantes).

Além disso, o corpo humano é perspicaz ao organizar suas células. Elas podem ser divididas em dois grupos: somáticas e germinativas. As somáticas compõem a maior parte do organismo. Estão, por exemplo, nos olhos, no fígado, na pele. Elas se reproduzem com mais frequência e podem gerar mutações diversas (que vão de alterações imperceptíveis até a criação de tumores). Mas essas mutações não são passadas aos descendentes. A hereditariedade é poder exclusivo das células germinativas –os óvulos e os espermatozoides. O corpo entende que as mutações que ocorrem nessas células são transmitidas à prole, por isso o sistema de reparo das germinativas é especialmente rígido. Já no universo dos vírus, qualquer mutação é hereditária.

Ser vírus, no entanto, tem lá suas vantagens. A identificação da variante Alpha foi uma surpresa para a comunidade científica que acompanhava as mutações de perto. “Víamos um genoma estável e, de repente, surge uma variante com quinze, vinte mutações”, diz o geneticista Hugo Aguilaniu, diretor-presidente do Instituto Serrapilheira. Ele conta que isso é possível quando o vírus encontra um “reservatório”– um lugar onde ele pode se replicar sem ser percebido.

Existem duas teorias para explicar esta aparição repentina das variantes. Uma delas é a reprodução em pessoas imunodeprimidas, que podem abrigar o vírus por meses. Neste período, as mutações se acumulam e a pessoa infectada pode transmitir um coronavírus um pouco diferente daquele que a infectou.

A outra possibilidade é que o novo coronavírus tenha encontrado um reservatório não em humanos, mas em outros animais. Uma espécie suspeita são os visons, sacrificados em massa em países europeus por estarem infectados pelo patógeno. Neste caso, o vírus rapidamente se alastra pelo grupo, sofre mutações e pode voltar a infectar humanos.

Mesmo com tantas variantes, vacinar populações não é enxugar gelo. Enquanto vamos criando resistência contra casos graves de Covid-19, a tendência é que o vírus se torne menos agressivo à saúde humana, talvez sendo comparado a um resfriado qualquer. É bom para nós, que poderemos, enfim, nos livrar da pandemia, e bom para ele, que vai poder se replicar sem virar manchete.

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Murilo Bomfim é jornalista.

Sabemos que as crianças fazem as melhores perguntas, e que a ciência pode ter boas respostas para elas. Todo mês, a série “Perguntas de criança, respostas da ciência” convida um cientista a responder uma dessas questões fundamentais. Você tem uma sugestão de pergunta? Veja aqui como colaborar.

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A real ameaça da inteligência artificial https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/08/14/a-real-ameaca-da-inteligencia-artificial/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/08/14/a-real-ameaca-da-inteligencia-artificial/#respond Sat, 14 Aug 2021 10:13:11 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/inteligência-artificial-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=505 Por Rodrigo C. Barros

O que a IA e a Cloroquina têm em comum?

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O leitor já compreendeu o impacto astronômico da inteligência artificial (IA) nos negócios e nos governos, tanto que as grandes economias se sentiram impelidas a estabelecer planejamentos estratégicos para a tecnologia. O que nem todo mundo ainda compreende são os riscos reais que a tecnologia oferece.

Um apanhado histórico da inteligência artificial nos conduz a uma montanha-russa de promessas exageradas e decepções gigantescas. Um de seus marcos é o surgimento das redes neurais artificiais (RNAs) em 1958, quando Frank Rosenblat inventa o “Perceptron”. No entanto, foi só nos anos 2010 que tais redes se tornaram a principal força motriz da área. Graças a uma união favorável de fatores catalisadores, como a explosão da disponibilidade de dados e a possibilidade de utilizar hardware especializado em multiplicação de matrizes, as RNAs provocaram uma revolução espantosa, surpreendendo o mundo com sua capacidade de lidar com tarefas complexas. A área foi rebatizada para “Deep Learning”, alusão ao número cada vez maior de camadas de neurônios nas arquiteturas das redes, agora mais profundas.

Com “Deep Learning” invadindo nossas vidas cotidianas, não foram poucos os futurólogos que surgiram com as velhas profecias de sempre: a singularidade e a revolta das máquinas, com direito a Schwarzenegger em seu figurino de Exterminador do Futuro. Mas não nos enganemos. A probabilidade de uma RNA atual vir a ganhar consciência é tão pequena quanto o tamanho de um neurônio biológico.

A grande ameaça da IA, pasme, é reproduzir exageradamente bem o comportamento humano. Aliás, reproduzir aquilo que de pior temos: os preconceitos. É preciso ficar claro que as RNAs são máquinas de correlação, e não de causa e efeito. Mais do que isso, num país onde o presidente da República não entende que “correlação não implica necessariamente em causa”, precisamos ser didáticos e instruir o público que podem existir diversas correlações nos dados, mas que ciência boa é aquela que olha com desconfiança para afirmações categóricas a respeito de causalidade. Caso contrário, seríamos obrigados a admitir que os gastos do governo americano em ciência são os responsáveis pelo número de suicídios por estrangulamento e enforcamento nos EUA.

O maior exemplo de como boa parcela da população não entende a diferença entre correlação e causalidade são os arroubos pseudocientíficos na CPI da Covid em defesa do uso da cloroquina para combater o vírus. É certo que os principais responsáveis pela tragédia sanitária que vivemos agiram por ignorância: desconhecem a diferença entre correlação e causa, e não compreendem as especificidades e nuances do método científico.

Ao mesmo risco estamos submetidos quando confiamos cegamente nas RNAs. Se treinarmos tais métodos para que descubram padrões sobre dados díspares, os modelos gerados irão reproduzir as disparidades. Caso clássico de injustiça protagonizada pela IA é o da ferramenta COMPAS (Correctional Offender Management Profiling for Alternative Sanctions), que auxiliava cortes americanas a estimar a probabilidade de reincidência criminal por parte dos réus. Alguém se surpreenderia ao descobrir que o algoritmo apontava indivíduos negros como mais prováveis de reincidir?

A área de “Fairness in Machine Learning” vem ganhando força na academia, servindo de alerta a todos que da IA usufruem: não basta que os modelos aprendam bem os padrões existentes nos dados — eles precisam ser impedidos de propagar preconceitos. O esforço de justiça em IA está apenas começando, com muitas possibilidades para se combater os vieses prejudiciais. Podem-se desenvolver modelos que deliberadamente combatam fatores de confusão previamente anotados. Pode-se trabalhar no desenvolvimento de bases de dados sintéticas que sejam ajustadas para descontar tais fatores. O que não se pode é fingir que preconceitos não existem. Ou que não é um problema de todos nós se as máquinas os reproduzirem.

Em tempos de governos de extrema direita, que exalam e promovem preconceitos, é notório que a principal luta dentro da IA seja a mesma que travamos no dia a dia: a batalha contra injustiças e preconceitos.

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Rodrigo C. Barros é cientista da computação com doutorado em inteligência artificial pela USP. É pesquisador em IA na PUCRS e diretor de Pesquisas da Teia Labs.

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La garantía soy yo https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/07/30/la-garantia-soy-yo/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/07/30/la-garantia-soy-yo/#respond Fri, 30 Jul 2021 13:00:01 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/final-la-garantia-soy-yo-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=491 Por Olavo Amaral

Como lidar com dados bons demais para serem verdade?

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O coro do tratamento precoce da Covid-19 sofreu um baque há duas semanas com a notícia de que um ensaio clínico egípcio demonstrando a eficácia da ivermectina contra a doença foi retirado da plataforma de preprints Research Square. O estudo mostrava uma redução de 90% na mortalidade de pacientes com doença severa em relação a um grupo que recebera hidroxicloroquina.

Muita gente não havia levado o trabalho a sério já de início, fosse por vir de pesquisadores obscuros, por estar escrito em um inglês macarrônico ou por apresentar um resultado espetacular demais para ser verdade.  Nada disso, porém, impediu que ele fosse incluído em diversas metanálises defendendo a ivermectina, sendo responsável por boa parte do efeito positivo observado nelas.

O artigo só foi retirado de circulação depois que o jornalista inglês Jack Lawrence resolveu investigá-lo ao perceber sinais de plágio. Uma das versões do artigo incluía um link para os dados originais —com acesso pago e protegido por senha. Num lance de sorte, Lawrence chutou um pouco criativo “1234” e viu a planilha do Excel com os dados brutos se materializar em sua tela.

Daí em diante, o trabalho do “policial de dados” Nick Brown mostrou não só inconsistências, mas evidências fortes de fraude: diversos pacientes aparentavam ser clones criados por copy-paste, com alguns dados modificados para disfarçar. Como resultado, a plataforma removeu o artigo e os autores ainda não se manifestaram.

A história é ilustrativa para analisar outro caso que vem ganhando espaço na mídia brasileira. Em março, uma equipe de pesquisadores liderada pelo endocrinologista Flávio Cadegiani divulgou em entrevista coletiva resultados espetaculares da proxalutamida, um medicamento antiandrogênico originalmente desenvolvido para tratar o câncer de próstata, que teria levado a uma redução de 92% na mortalidade de pacientes internados com Covid-19.

O grau de sucesso logo chamou a atenção de críticos, que o apontaram como improvável. Também contribuíram para as suspeitas a demora na publicação dos dados (que só foram surgir como preprint mais de três meses depois), a alta mortalidade no grupo placebo, o recrutamento meteórico de mais de seiscentos pacientes em menos de um mês e indícios de desvios em relação ao protocolo aprovado pelo comitê de ética.

Parte do ceticismo, porém, se deve a fatores não relacionados aos dados. Desde o início da pandemia, Cadegiani já havia alegado resultados positivos para o tratamento precoce com hidroxicloroquina, ivermectina, nitazoxanida e dutasterida, além da própria proxalutamida em pacientes ambulatoriais –uma sequência de sucessos no mínimo improvável. Seu colaborador Ricardo Zimerman foi convidado da bancada governista na CPI da pandemia e virou influenciador digital nas redes sociais e mídias de direita, marcando presença em canais como o de Osmar Terra. Vale ressaltar ainda que as repetidas menções do presidente à proxalutamida não chegam a funcionar como chancela acadêmica.

Seriam essas boas razões, porém, para fechar os olhos para um estudo que alega mais de 90% de eficácia para uma doença que causa milhões de mortes? O lema da Royal Society, afinal, é “nullius in verba” (“nas palavras de ninguém”): dados científicos deveriam ser mais importantes do que quem os apresenta.

A julgar pela recepção ao artigo, porém, a impessoalidade anda em baixa. Em matéria da revista Science, o cardiologista e guru da medicina digital Eric Topol afirma que os resultados são “bons demais pra serem verdade” e que “quase não há intervenções na história da medicina com benefícios dessa magnitude”. A mesma matéria menciona que o New England Journal of Medicine rejeitou o artigo com o argumento de que “os resultados são inesperadamente bons”, o que levaria à necessidade de revisão dos dados primários –que a revista alega não ter capacidade de fazer.

Após ter sua reputação exposta no escândalo da Surgisphere, é compreensível que o New England Journal não queira se arriscar com artigos que levantam suspeitas. Ainda assim, a heurística da decisão parece injustificável — bem como a afirmativa de que a maior revista médica do mundo não tem capacidade para checar os dados originais do estudo, que Cadegiani alega ter oferecido ao editor.

Dito isso, a oferta não parece valer para todo mundo. Ainda que o preprint informe que os dados estão disponíveis mediante solicitação justificada, meu pedido para recebê-los esbarrou na resposta de que “os autores preferem não compartilhá-los neste momento” –uma falsa disponibilidade que faz eco ao link protegido por senha do arquivo egípcio. Ao ser questionado no Twitter, Cadegiani justificou a negativa pela “não equidade de tratamento a diferentes estudos”, sugerindo que o fato de eu não ter solicitado dados de outros trabalhos colocava a minha imparcialidade em questão.

Por incrível que pareça, a recusa em disponibilizar dados originais de um estudo é uma realidade comum na ciência acadêmica. Na impossibilidade de acesso a eles, a crença nas afirmativas de um artigo quase sempre se baseia na palavra dos autores. As palavras podem parecer de ninguém, mas como dizia um comercial viral de algumas décadas atrás, “la garantía soy yo”. O que faz com que a reputação de quem fala conte, e muito, pra decidir no que acreditar.

Com isso, o debate acaba migrando para o jornalismo investigativo –ou para as redes sociais, onde virulentos argumentos “ad hominem” de ambos os lados tentam resolver uma questão insolúvel atacando as reputações de autores e críticos. E como em qualquer tema, cada grupo acabará encontrando a verdade que lhe convém, levando à polarização entre médicos e leigos.

O primeiro passo para a solução do problema é óbvio –os dados anonimizados de um estudo devem estar ao alcance de qualquer um que queira analisá-los. Ainda que estes dados sejam normalmente requisitados por agências reguladoras, e que boa parte dos artigos alegue que eles podem ser obtidos, eles raramente estão disponíveis de fato.

Mesmo com dados abertos, porém, fraudes mais bem feitas do que o tosco copy-paste do artigo egípcio podem ser difíceis de detectar. Com isso, é preciso evoluir para sistemas de auditoria que permitam checar se o que está escrito em um artigo reflete a realidade. Num mundo em que milhões de votos secretos são contados em horas, não deveria ser difícil verificar se pessoas que tomaram um medicamento num estudo estão vivas ou mortas. Estranhamente, porém, essa não parece ser uma prioridade na academia, que se satisfaz com um sistema baseado na confiança que acaba por semear a discórdia.

Eventualmente saberemos se as afirmações de Cadegiani e seus colegas são verdadeiras –a proxalutamida foi aprovada pela Anvisa para novos testes, e o governo paraguaio concedeu uma autorização de emergência para o uso do medicamento. Até lá, porém, passaremos vários meses prejudicando milhares de pessoas, seja por privá-las de um tratamento efetivo, seja por vender as falsas esperanças e os efeitos colaterais de um fármaco ineficaz e seus análogos comerciais, que já vêm sendo prescritos de modo “off-label” no Brasil.

Ambas as alternativas são inadmissíveis e atestam o fracasso da ciência acadêmica em exercer o grau mais básico de controle de qualidade –o de saber se um dado publicado é verdadeiro. Algo que deveria ser um direito de qualquer um, sem a necessidade de senhas, investigações ou súplicas aos autores.

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Olavo Amaral é professor do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis da UFRJ e coordenador da Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade.

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A roupa invisível da revisão por pares https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/06/19/a-roupa-invisivel-da-revisao-por-pares/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/06/19/a-roupa-invisivel-da-revisao-por-pares/#respond Sat, 19 Jun 2021 10:15:20 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/rei_nu-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=450 Por Olavo Amaral

Crivo de qualidade da ciência acadêmica emana autoridade, mas significa pouco

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Pode apostar: em qualquer discussão sobre dados científicos, cedo ou tarde alguém vai invocar o argumento do “artigo revisado por pares”, seja para dar crédito a uma afirmação, seja para desacreditá-la, caso a revisão não tenha acontecido.

O crivo da revisão por pares –a aprovação por pesquisadores independentes antes da publicação de um artigo– é tido como um bastião da pesquisa científica há décadas (ou mais de um século, dependendo da área), e para muitos delimita o que é considerado “ciência” e o que não é.

Em uma imagem icônica da Marcha pela Ciência em Washington, em 2017, vê-se em frente ao Capitólio um cartaz onde se lê “In peer review we trust”, numa alusão ao “In God we trust”. A substituição, porém, equivale a trocar uma crença dogmática por outra.

“Revisado por pares”, afinal, significa apenas que algumas pessoas –em geral duas ou três– analisaram um artigo e não viram razão para negar sua publicação. Como o processo costuma ocorrer a portas fechadas, não sabemos quem são essas pessoas, nem que opiniões emitiram, tampouco o que elas se deram ao trabalho de verificar.

Afora isso, os revisores não costumam ser treinados para a tarefa nem ter um direcionamento sobre o que revisar e não são pagos ou recompensados por seu trabalho, tendo assim pouco apoio ou estímulo para se dedicar ao parecer. Não surpreende que a concordância entre diferentes revisores seja mínima e por vezes beire o aleatório.

Como se não bastasse, eles atuam somente ao final do processo científico, quando problemas na coleta de dados já são irremediáveis. Pior ainda, trabalham com base no relato dos autores, e geralmente não têm acesso aos dados originais, o que os impede de detectar a maior parte dos erros e omissões que podem acontecer ao longo de um projeto.

Se nada disso faz você desconfiar de que algo está errado, imagine a aplicação da mesma lógica em outras áreas. Se uma companhia aérea lhe dissesse que delega seu controle de qualidade a dois ou três especialistas que examinam um relatório de algumas páginas sobre a construção de um avião já pronto, você embarcaria?

A confiança da comunidade científica na revisão por pares é ainda mais desconcertante dada a parca evidência sobre o impacto do processo na literatura científica. Comparações entre preprints –artigos postados antes da revisão por pares– e suas versões revisadas mostram que as diferenças de qualidade são pequenas, e que tanto o texto como as conclusões principais raramente mudam.

Quanto à função de filtro, o fracasso do sistema se revela ainda mais contundente. Artigos sem sentido, com erros crassos ou conclusões absurdas, elaborados com intenção jocosa, invariavelmente acabam aceitos em algum lugar. O problema é agravado pelos ditos “periódicos predatórios” –revistas que cobram por publicação e tem seus lucros maximizados pela ausência de rigor.

A pandemia de Covid-19 é fértil em exemplos da fragilidade do sistema. Revistas teoricamente revisadas por pares publicaram bizarrices como a de que a tecnologia 5G poderia produzir o SARS-CoV2. Enquanto isso, periódicos com editores ligados ao Institut Hospitalo-Universitaire Méditerranée Infection de Didier Raoult se transformaram numa vitrine enviesada de estudos defendendo o uso da hidroxicloroquina.

Seria fácil atribuir o problema a publicações de baixa qualidade, mas o escândalo mais notório da pandemia atingiu o Lancet e o New England Journal of Medicine, as revistas médicas mais respeitadas do mundo, que se viram obrigadas a retratar artigos com dados suspeitos de fabricação por parte da empresa Surgisphere.

O fato não surpreende: ainda que periódicos tradicionais costumem ser mais seletivos ao aceitar artigos, não há nada de tão diferente em seus processos de revisão. Além disso, a pressão para publicar nestas revistas pode estimular cientistas a dourar a pílula para tornar seus resultados mais atraentes. Com isso, usar a “publicação de impacto” como critério de qualidade não resolve o problema: visibilidade e confiabilidade, afinal, são coisas distintas.

No episódio da Surgisphere, críticos foram rápidos em apontar culpados, como o viés dos editores ou a pressa dos revisores. No fundo, porém, o responsável é o próprio sistema de revisão, que, sem acesso aos dados ou ao processo pelo qual foram obtidos, não tem capacidade de identificar fraudes bem feitas.

Se a revisão por pares não serve de régua, o que podemos chamar de “cientificamente comprovado”? A melhor resposta, um tanto tautológica, talvez seja “o consenso científico”. Mas identificá-lo nem sempre é óbvio. Posições de instituições e sociedades científicas são uma aproximação disso, mas elas têm seu lado político –que em casos como o das associações médicas brasileiras costuma flertar com o sindicalismo— e estão longe de ser isentas de viés.

A verdade é que não temos formas institucionais eficientes de demarcar o que é ciência confiável, o que faz uma falta enorme no debate público. Isso fica evidente no bater de cabeça de agências de checagem de fatos para lidar com as dezenas de artigos favoráveis e contrários ao tratamento precoce da Covid, uma questão complicada demais para ser resumida em “#fato” ou “#fake”.

Há muito a fazer, assim, para construir um selo de confiabilidade que vá além do “revisado por pares”. Isso só será alcançado, porém, se superarmos a crença de que dois ou três revisores examinando um PDF são o bastante para aferir a qualidade de um processo complexo como a pesquisa científica.

Exemplos de sucesso não faltam: auditorias, certificações e procedimentos- padrão são parte da rotina de aeroportos, construções civis e hospitais, e é de se perguntar por que são tão raros em instituições acadêmicas. E mesmo empreendimentos como a Wikipedia possuem processos de revisão e correção mais elaborados e robustos do que a anêmica e pouco transparente revisão por pares de artigos científicos.

Sem formas melhores de controle, a pesquisa acadêmica seguirá vulnerável a fraudes, erros e vieses, alimentando charlatanices com o carimbo de “cientificamente comprovado”. Essa é apenas a consequência natural de acreditar em um processo em que ninguém enxerga o que está sendo feito. Como na história infantil, o rei está nu sob a roupa invisível da revisão por pares, e às vezes é preciso uma criança, ou uma pandemia, para nos forçar a admiti-lo.

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Olavo Amaral é professor do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis da UFRJ e coordenador da Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade.

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O nome disso é evolução https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/05/08/o-nome-disso-e-evolucao/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/05/08/o-nome-disso-e-evolucao/#respond Sat, 08 May 2021 10:25:58 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/henning-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=399 Por Frederico Henning

O vírus está se adaptando a nós por seleção natural e por enquanto segue passos previsíveis

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“Mutações” e “variantes” se tornaram palavras frequentes na imprensa, lançando sobre a sociedade algumas perguntas importantes: as vacinas continuarão funcionando? As pessoas poderão ser reinfectadas? O vírus está mais perigoso? Outro dia um especialista explicava em uma entrevista que “surgem mutações e algumas se tornam variantes de maior propagação”. Pois bem, esse processo tem nome e sobrenome: evolução por seleção natural. Ouvimos com frequência que as novas variantes são as culpadas pelo descontrole da pandemia. Mas a evolução é mesmo imprevisível?

As pessoas costumam associar a evolução das espécies às grandes transformações que ocorrem nas formas de vida ao longo de muito tempo. Geralmente se pensa que a evolução leva ao “progresso” dos organismos em direção à perfeição ou complexidade. Na realidade, a evolução opera de forma contínua a passos curtos e o “progresso” ou “adaptação” devem ser vistos como “a resolução de problemas imediatos”. Para um coronavírus, progresso é aumentar a taxa de transmissão. Não há direção para a evolução no longo prazo, pois os rumos da vida mudam devido a alterações drásticas no ambiente, como por exemplo a queda de meteoros. No entanto, na escala de tempo em que nós vivemos, a evolução é surpreendentemente previsível.

A evolução adaptativa ocorre sempre que houver duas coisas: mutação e seleção natural. A primeira parte, a mutação, ocorre ao acaso e sozinha não torna os organismos mais adaptados. Cada vez que um vírus se multiplica, um em cada cem mil nucleotídeos –representadas pelas letras A, C, U e G que formam a sequência genética de RNA– é copiado de modo errado, resultando em mutações aleatórias. Mas há alguma regularidade no caos. Não podemos prever qual letra será trocada por outra em um evento de mutação, mas sim quantas mutações irão ocorrer a cada geração. Como o genoma do vírus é constituído de 30 mil letras, cada novo vírus tem uma chance de cerca de 30% de ser mutante.

Devido a esta regularidade, podemos comparar as sequências genéticas de organismos atuais e inferir quanto tempo se passou na evolução com base no número de diferenças entre elas. Este “cronômetro de mutações” é a principal ferramenta usada nas investigações científicas para saber de onde o vírus se originou, como chegou e se espalhou no Brasil e também para monitorar o aparecimento e dispersão das novas variantes.

A segunda parte da equação, a seleção natural, explica por que alguns desses mutantes dominam a população e “se tornam variantes de maior propagação”. Não é um processo fortuito, tanto que a produção de alimentos tem se beneficiado da previsão de geneticistas há mais de um século. Uma mostra da previsibilidade da seleção natural é que as diferentes linhagens de coronavírus, mesmo isoladas umas das outras, estão evoluindo de forma parecida. Um vírus pode mudar de mais de 150 mil jeitos diferentes, mas as variantes estão acumulando as mesmas mutações que aumentam a transmissão e a evasão da defesa imune. Esta evolução “convergente” –que sai de pontos distintos e chega à mesma resposta– indica os caminhos genéticos pelos quais o vírus evolui, as variantes que devem ser o foco de vigilância e os próximos passos na evolução viral. Sabemos como neutralizar a evolução adaptativa. Se cortarmos a transmissão, particularmente das linhagens contendo mutações compartilhadas, impediremos a ação da seleção natural. Embora as mutações continuem a ocorrer, não haverá o acúmulo daquelas que são boas para o vírus.

Antecipar a evolução é fundamental para que as vacinas mantenham a eficácia frente a novas variantes e até mesmo para fazer o diagnóstico, já que o exame de RT-PCR só detecta a presença do vírus se soubermos parte de sua sequência genética. Portanto, cientistas precisam prever as mudanças genéticas que ocorrerão para interpretar e desenvolver testes que continuem a funcionar à medida que o vírus evolui.

“Há grandeza nesta visão de mundo”, escreveu Darwin ao encerrar seu livro mais famoso. Há grande utilidade também, mas controlar o processo começa por dar nome aos bois e isto se chama evolução.

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Frederico Henning é biólogo e professor na UFRJ, onde coordena projetos de pesquisa, ensino e extensão em genética, genômica e evolução.

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Estamos preparados para uma próxima pandemia? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/03/04/estamos-preparados-para-uma-proxima-pandemia/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/03/04/estamos-preparados-para-uma-proxima-pandemia/#respond Thu, 04 Mar 2021 13:45:28 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/catarina-akiko-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=342 Por Pedro Lira

Há um ano Akiko Iwasaki, referência global em imunologia, vive pela Covid-19

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Em tempos normais, Akiko Iwasaki se dedica a uma pergunta fundamental: como a imunidade se inicia e se mantém nas superfícies mucosas? Mas, quando a Universidade de Yale, onde trabalha, fechou temporariamente os laboratórios que não estavam focados no combate à Covid-19 em março de 2020, sua rotina passou a ser investigar, dia e noite, a nova doença.

“Nosso objetivo foi analisar, em tempo real, as respostas imunes produzidas em pacientes infectados, a fim de desenvolver uma terapia mais eficiente.” Foi assim que, após quase um ano, a professora e pesquisadora se consagrou uma referência global sobre o novo vírus. Acabou descobrindo, por exemplo, que a carga viral na saliva do paciente nos primeiros momentos da infecção pode ajudar a prever a gravidade da doença, e que homens têm duas vezes mais chance de morte por Covid-19.

Para a imunologista, a produção e distribuição de vacinas em apenas um ano representa um marco histórico que só foi possível graças à ciência básica. “Essa rapidez é fruto de décadas de pesquisa fundamental, que tem um papel central em situações críticas”, afirma. Seu orçamento, aliás, acabou num piscar de olhos. “Felizmente recebemos muitas doações de empresas, filantropos e agências de fomento à pesquisa para dar continuidade aos estudos.”

A cientista é taxativa: outras pandemias virão e a sociedade precisa aprender com a experiência. “Eventos como esse sempre vão acontecer”, ela diz. “Nós nos esquecemos disso porque nos acomodamos depois que elas acabam. Será que dessa vez vamos aprender? Vamos estar preparados para o futuro?”

Iwasaki extraiu algumas lições de 2020 –um ano que para ela pareceram dez–, em especial a importância da colaboração. “Não podemos fazer ciência em silos. Precisamos do trabalho conjunto de matemáticos, epidemiologistas, virologistas, imunologistas, e cada um deve entender o que o outro está fazendo. Quando todos se unem, o resultado tem muito mais impacto.”

Nessa lógica, Iwasaki investe na formação de jovens pesquisadores, que são a força motriz do seu laboratório, ela conta. “Eles precisam ter uma formação multidisciplinar, que traz reflexões mais criativas e com efeitos mais significativos. Ao interagirem com cientistas mais experientes, uma geração aprende com a outra.”

Iwasaki também advoga por uma ciência mais plural. “Interagir com diferentes profissionais é vital não só para as disciplinas, mas também para grupos étnicos e de gênero. Todo tipo de diversidade contribui para gerar uma ciência de excelência.”

O mesmo vale para a diversidade ecológica e social do Brasil, com a qual, segundo a imunologista, o país só tem a ganhar se souber aproveitar. “Essa pluralidade vai transformar o futuro da ciência.”

Para 2021, o desejo de Iwasaki é voltar à sua pergunta principal: como os antígenos em contato com a mucosa são absorvidos, processados e apresentados ao sistema imunológico?. “Espero que tenhamos vacina e que possamos voltar a investigar o que nos despertava a curiosidade antes da pandemia”, diz. “Todas as perguntas sem respostas levantadas pelos cientistas continuam sendo importantes.”

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Pedro Lira é jornalista e social media no Instituto Serrapilheira

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A natureza nos ensina a agir coletivamente https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/02/27/a-natureza-nos-ensina-a-agir-coletivamente/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/02/27/a-natureza-nos-ensina-a-agir-coletivamente/#respond Sat, 27 Feb 2021 10:05:43 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/catarina-bessell-simon-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=337 Por Clarice Cudischevitch

Simon Levin mistura matemática, biologia e sociologia para entender o comportamento humano

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Por que peixes nadam em cardumes? Como pássaros voam em bando tão harmonicamente? O que motiva pessoas a não usarem máscara em uma pandemia? Um dos fenômenos mais fascinantes das ciências da vida é, justamente, o conflito entre o comportamento individual e o coletivo. Mas ele não é exclusivo do mundo biológico. O ecólogo Simon Levin o extrapola para as ciências sociais buscando entender condutas de uma espécie em particular: a humana.

Isso porque, embora a seleção natural atue nas diferenças entre indivíduos, a cooperação existe na natureza desde o nível celular até em diferentes animais. Diretor do Centro de BioComplexidade e professor de ecologia e biologia evolutiva da Universidade de Princeton (EUA), Levin aplica a matemática, sua formação original, para estudar essas duas tendências conflitantes.

Na biologia, elas já são relativamente conhecidas. Pela seleção natural, os organismos mais aptos a sobreviver têm mais chances de passar suas características para os descendentes e, assim, perpetuar seus genes. Em “O Gene Egoísta”, o biólogo Richard Dawkins afirma que um comportamento coletivo, como voar em bando, é adotado por conferir maior probabilidade de sobrevivência a uma linhagem genética.

Quando falamos de interações humanas, no entanto, a conversa é mais complexa. Se peixes nadam em cardumes para benefício mútuo –lutar contra predadores, por exemplo–, adotar um comportamento coletivo que gere benefícios em maior escala para a sociedade geralmente implica restringir ações individuais. “Precisamos aprender com a natureza como alcançar a cooperação”, diz Levin.

Na matemática, é a teoria dos jogos, técnica que modula o comportamento estratégico de agentes em diferentes situações, que dá conta de entender essas relações. Um exemplo clássico: se as pessoas priorizassem o transporte público ao carro, o congestionamento diminuiria, beneficiando a todos. Nesse cenário, no entanto, indivíduos acabariam saindo de carro para aproveitar o fluxo do trânsito, voltando a sobrecarregar as vias. Para a coletividade, seria melhor a cooperação do que ações individuais egoístas.

Essa mistura de matemática com sociologia e toques de biologia é útil para entender a pandemia da Covid-19. Levin, que passou mais de 40 anos estudando a dinâmica de doenças infecciosas, explica que, no caso do coronavírus, aplicamos modelos que predizem a disseminação do vírus, as diferenças entre pacientes com e sem sintomas e outros aspectos que ajudam a pensar em estratégias. Mas falta o componente social.

“Vemos grupos que hesitam em se vacinar. Por quê?”, questiona Levin. “Há os que se recusam a usar máscaras. China, Japão e Ásia em geral são países mais abertos a esse tipo de proteção, enquanto outros, como a Suécia, resistem. Entender isso é um problema das ciências sociais.”

Levin vai além: como decisões coletivas são tomadas? Como normas sociais são criadas e mantidas? Como indivíduos interagem? Um de seus estudos do momento quer entender a dinâmica das polarizações políticas. “Pessoas fazem parte de grupos diferentes, que às vezes se sobrepõem. Desenvolvemos modelos em que os indivíduos mudam suas opiniões ou migram de grupo baseados em interações com outras pessoas.”

Modelos desse tipo também são aplicados em contextos internacionais. Analisam, por exemplo, não apenas as relações entre nações, mas também as influências de organizações como ONU e OMS nas decisões e mudanças de posicionamento dos países.

Tantas incursões interdisciplinares renderam a Levin, hoje com 79 anos, uma produção científica de quase 700 publicações. Doutor desde 1964, é verdade que o cientista não começou agora, mas o segredo é outro.

“Conto com um grupo maravilhoso de estudantes e nada poderia acontecer sem eles”, diz. “O trabalho é fruto de muita colaboração, por isso o esforço de formar pessoas é tão importante. A razão de eu ainda ter alunos é justamente o quanto eu aprendo com eles e vejo o quanto podem construir. Quando as pessoas trabalham juntas podem fazer muito mais.” Eis aí um exemplo humano bem-sucedido de comportamento coletivo.

Simon Levin participará do lançamento no Brasil do Programa de Formação em Biologia e Ecologia Quantitativas, oferecido pelo Instituto Serrapilheira e pelo Instituto Sul-Americano para Pesquisa Fundamental (ICTP-SAIFR). Ele vai ministrar um webinar no dia 2 de março, às 11h. Mais informações aqui.

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Clarice Cudischevitch é jornalista, gestora de Comunicação no Instituto Serrapilheira e coordenadora do blog Ciência Fundamental.

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A vacina vai chegar; e depois? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/01/04/a-vacina-vai-chegar-e-depois/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/01/04/a-vacina-vai-chegar-e-depois/#respond Mon, 04 Jan 2021 10:05:29 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/serrapilheira_pedrocuri.web_-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=297 Por Pedro Curi Hallal

Os estudos devem continuar para conhecermos a história por completo

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Desde o início da pandemia da Covid-19 no Brasil, nós, epidemiologistas, temos falado sobre a importância das pesquisas de campo para entender o comportamento do vírus no país. Fomos ouvidos, pelo menos em parte. Coordenado pelo Centro de Pesquisas Epidemiológicas da Universidade Federal de Pelotas, o Epicovid19-BR –o maior estudo brasileiro sobre o coronavírus– já testou mais de 120 mil pessoas espalhadas por todos os estados para descobrir o número real de infectados. Mas a busca para conhecer melhor a epidemia não deve parar por aí.

Neste momento, com a atenção da mídia, dos gestores e dos próprios pesquisadores voltada para a tão sonhada e necessária vacinação da população, não podemos esquecer que a pesquisa epidemiológica não se encerra com a vacina. Ao contrário: conhecer o percentual de pessoas com anticorpos para o coronavírus, entre aquelas vacinadas e não vacinadas, será uma das principais questões científicas de pesquisa no Brasil de 2021.

Enquanto em 2020, no auge da pandemia, as pessoas que apresentavam anticorpos necessariamente haviam sido contaminadas pelo vírus, em 2021 teremos pessoas com anticorpos produzidos pela contaminação e outras com anticorpos produzidos a partir da vacinação. Será uma testagem, no mundo real, da efetividade das vacinas.

No caso do Epicovid19-BR, foram quatro fases de coleta de dados, ocorridas nos meses de maio, junho e agosto. Uma quinta fase acontecerá no início de 2021. No Rio Grande do Sul, o Epicovid19-RS já testou mais de 35 mil gaúchos, espalhados por todo o estado, em oito fases de coletas de dados: a primeira em abril, menos de 20 dias após o registro da primeira morte no estado. Estudos semelhantes, inspirados no Epicovid19, foram conduzidos em várias cidades e estados do Brasil, como São Luís (MA), São Paulo (SP), Ribeirão Preto (SP) e no Espírito Santo.

Nas três primeiras fases, o Epicovid19-BR nos ensinou que, caso quiséssemos saber o número real de brasileiros já infectados pelo coronavírus, deveríamos multiplicar por seis o número que constava nas estatísticas oficiais. As pesquisas epidemiológicas também mostraram que crianças têm o mesmo risco de infecção dos adultos.

Esses estudos detectaram, ainda, abismais diferenças socioeconômicas, étnico-raciais e regionais na distribuição do coronavírus no Brasil. Enquanto em maio a proporção de infectados era próxima de 10% na região Norte, ela não passava de 1% nas demais regiões do Brasil. Nas diversas fases da pesquisa, os indígenas apresentaram risco muito maior de exposição ao vírus do que os demais grupos étnicos. Além disso, em todas as fases do Epicovid19-BR, os 20% mais pobres da população tiveram o dobro do risco de infecção do que os 20% mais ricos da população.

O Epicovid19-BR também provou que era errada a afirmação de que a maioria dos infectados pelo coronavírus não apresentaria sintomas da doença. Na verdade, apenas 17% dos infectados não desenvolvem nenhum sintoma, de acordo com uma revisão recente da literatura mundial.

Muitas das hipóteses levantadas no início da pandemia caíram por terra assim que começamos a investigá-las empiricamente. Continuar com estudos populacionais dessa natureza, agora que entramos na fase de imunização, é fundamental para conhecer a história por completo. É esse conhecimento que vai embasar políticas públicas mais eficazes, para essa e para futuras epidemias.

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Pedro Curi Hallal é epidemiologista, reitor da Universidade Federal de Pelotas e coordenador do Epicovid19.

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Para onde enviar testes da Covid-19? A matemática tem a resposta https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/12/21/para-onde-enviar-testes-da-covid-19-a-matematica-tem-a-resposta/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/12/21/para-onde-enviar-testes-da-covid-19-a-matematica-tem-a-resposta/#respond Mon, 21 Dec 2020 10:05:14 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/tiago-larissa-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=289 Por Clarice Cudischevitch

E ela é contraintuitiva: no estado de São Paulo, o melhor é não testar na capital

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Não há testes de Covid-19 para todos os brasileiros. O estado de São Paulo, por exemplo, hoje consegue testar 30 mil pessoas por dia — 750 por milhão de habitantes. É pouco e implica fazer escolhas: é melhor concentrar os testes na capital? Em cidades pequenas? Onde é mais eficaz testar a população?

O pesquisador Tiago Pereira, do Centro de Ciências Matemáticas Aplicadas à Indústria da USP, usa a matemática para encontrar essas respostas. Junto a outros grupos de pesquisa da própria USP, do IMPA, da FGV, da UFAL e da Unicamp, ele desenvolveu um modelo que cruza dados de demografia e telefonia móvel para entender como as pessoas se locomovem. Compreendendo esse padrão, pode-se chegar à melhor forma de distribuir os testes.

O objetivo é encontrar um protocolo de testagem inteligente que, ao ajudar a reduzir a transmissão do vírus, possibilite um retorno possível à normalidade, evitando, por exemplo, o fechamento do comércio. Baseado nisso, o algoritmo decide para onde e quando enviar os testes.

Fazer a vida voltar ao velho normal se tornou um objetivo pessoal de Pereira: ele, que adora ir à universidade, teve que transformar em escritório o quarto do filho de 5 anos. Com três crianças em casa, o tempo para trabalhar diminuiu, enquanto as obrigações dobraram. “O trabalho aumentou quatro vezes”, ele brinca.

O modelo matemático funciona assim: primeiro, faz uma predição de quais medidas o governo deveria tomar (por exemplo, restringir a circulação de pessoas) caso ninguém fosse testado. Depois, avalia quão mais eficiente se torna essa intervenção estatal em diferentes modelos de distribuição dos testes.

Se os testes vão só para as cidades pequenas, a eficiência em fazer a vida voltar ao normal sem prejudicar o sistema de saúde aumenta 10%. Se vão só para a capital, 30%. Caso se teste sob demanda –ou seja, testam-se pessoas sintomáticas–, o aumento é de 35%. Com a testagem inteligente, a taxa vai para 70%.

No início de dezembro, o grupo chegou aos resultados dessa testagem inteligente. O melhor protocolo é distribuir os testes na região metropolitana de São Paulo –não na capital, mas no seu entorno. Assim, garante-se que pessoas de cidades menores que se dirigem à capital não vão causar novas infecções. “A conclusão pode parecer contraintuitiva”, diz Pereira. “Não se espera que não testar na capital gere um controle maior da pandemia.”

O modelo leva em conta não apenas quantas pessoas moram em cada região e suas faixas etárias, mas também a ocupação na UTI, pois a ideia é que a estratégia de testagem seja combinada à redistribuição de leitos para evitar o colapso na saúde. Se uma região está perto de 100% da ocupação de leitos, a equação se autorresolve para realocar os testes para lá.

O trabalho deve ser publicado nas próximas semanas. Essa, no entanto, não foi a primeira vez que o grupo usou a modelagem matemática em estudos sobre a Covid-19. No início da pandemia, buscaram uma forma de otimizar o distanciamento social sem que todas as cidades tivessem de fechar ao mesmo tempo. Também não será a última: os pesquisadores agora tentam desenvolver um modelo que diga quem, onde e quando vacinar para acabar com o coronavírus.

A missão não é fácil, pois o Brasil, à diferença de países como Estados Unidos, Alemanha e França, não tem uma base de dados chamada matriz de contato, que informa como as faixas etárias conversam entre si (quantas crianças de 10 anos moram com idosos; quantos adolescentes convivem nas escolas com pessoas de 50 anos, e por aí vai).

“Essa informação é fundamental para saber por quem começar a vacinação”, explica. A matriz de mobilidade está diretamente relacionada a aspectos culturais de um país. Elas podem indicar que não necessariamente o melhor é vacinar todo mundo com mais de 60 anos. Isso depende de diversos fatores, entre eles a situação de leitos de UTI nas cidades.

Por enquanto, os pesquisadores tentam suprir essa lacuna por meio de análise estatística, ainda sem resultados definitivos. Mas, ao que tudo indica, aqui eles também prometem ser contraintuitivos.

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Clarice Cudischevitch é jornalista, gestora de Comunicação no Instituto Serrapilheira e coordenadora do blog Ciência Fundamental.

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