Ciência fundamental https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br O que pensam os jovens cientistas no Brasil? Thu, 02 Dec 2021 15:29:05 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Por que o Nobel de Física representa o futuro da ciência https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/16/por-que-o-nobel-de-fisica-representa-o-futuro-da-ciencia/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/16/por-que-o-nobel-de-fisica-representa-o-futuro-da-ciencia/#respond Sat, 16 Oct 2021 10:23:37 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/Ilustração-retangular_941x598-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=557 Por Ricardo Martínez García

Sistemas complexos estão na fronteira do conhecimento

*

O prêmio Nobel de Física de 2021 reconheceu três cientistas por seus “aportes inovadores para nossa compreensão dos sistemas físicos complexos” e o desenvolvimento de métodos para descrever e prever o comportamento deles. Metade do valor caberá a Syukuro Manabe, da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, e a Klaus Hasselmann, do Instituto Max Planck de Meteorologia, na Alemanha, que apresentaram contribuições fundamentais para o desenvolvimento de modelos que permitem fazer predições mais precisas sobre as mudanças climáticas. Já a outra metade irá para Giorgio Parisi, da Universidade de Roma La Sapienza, na Itália, que se destacou por descobrir padrões ocultos em materiais complexos e desordenados que permitiram melhorar nosso entendimento sobre vários processos aleatórios em campos tão diversos como a matemática, a biologia, a neurociência e o aprendizado de máquina.

Neste ponto, são muitas as perguntas que podemos nos fazer: o que é um sistema complexo? O que têm em comum dois climatologistas e um físico teórico como Parisi para compartilhar prêmio tão importante? Por que esses trabalhos são merecedores de um Nobel? As respostas não são simples, mas podem nos ajudar a entender a força extraordinária da ciência da complexidade, o papel que pode desempenhar nas próximas décadas e por que são necessários cientistas multidisciplinares sem medo de navegar entre as fronteiras de diferentes áreas do conhecimento.

Um sistema complexo é um conjunto de múltiplas entidades que interagem entre si; dessas interações resulta o desenvolvimento de novos comportamentos, diferentes dos observados em suas entidades, quando consideradas individualmente. Tais fenômenos são comumente chamados “fenômenos emergentes”. Como sempre acontece na física, uma definição tão abstrata se torna muito mais fácil de entender com exemplos. O cérebro é um sistema complexo no qual as interações entre milhões de neurônios causam fenômenos emergentes como a inteligência, a consciência ou a memória. Outros exemplos típicos são as sociedades (humanas e animais), as cidades, os ecossistemas ou, voltando ao objeto de estudo da dupla laureada, o clima.

Essa variedade de exemplos e sua relação com muitos dos problemas que nos assombram explica, em grande medida, o crescimento espetacular da ciência da complexidade nas últimas décadas, endossado essa semana com o Nobel de Física. Muitos dos problemas que a humanidade enfrenta e enfrentará no futuro se relacionam com os sistemas complexos. A propagação de doenças, por exemplo, na maioria das vezes decorre do modo como estão estruturadas nossas cidades, nossa sociedade, e os padrões de deslocamento da população. A perda de biodiversidade e o colapso de muitos ecossistemas são fortemente determinados por alterações, muitas vezes causadas pelos humanos, nas interações complexas entre espécies que sustentam esses ecossistemas. Muitas das doenças que nos ameaçam, como o câncer, e a maneira como nosso organismo responde a elas são, de certo modo, resultado de mudanças na interação de nossas células entre si e com o entorno.

Para abordar todos esses problemas na fronteira entre disciplinas e com uma transferência tão ampla de ferramentas entre uma e outra, é necessária uma nova forma de treinar nossos cientistas. Pessoas que relevem a classificação da ciência em áreas, movidas pela curiosidade e o debate, com uma visão ampla do mundo a seu redor e munidas de um potente arsenal de ferramentas matemáticas e computacionais. Só assim poderemos identificar, atacar e resolver os grandes desafios que nos esperam. O prêmio Nobel de Física de 2021 reconhece essa visão e essa nova abordagem de estudar a natureza.

*

Ricardo Martínez García é físico e pesquisador SIMONS-FAPESP no Instituto Sul-Americano para Pesquisa Fundamental (ICTP-SAIFR) e no Instituto de Física Teórica da UNESP.

Inscreva-se na newsletter do Instituto Serrapilheira para acompanhar mais novidades do instituto e do blog Ciência Fundamental.

]]>
0
De onde vem a força implacável das superbactérias? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/05/25/de-onde-vem-a-forca-implacavel-das-superbacterias/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/05/25/de-onde-vem-a-forca-implacavel-das-superbacterias/#respond Tue, 25 May 2021 10:10:41 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/serrapilheira_superbacterias_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=423 Por Clarice Cudischevitch

Angélica Vieira acredita que a resposta esteja na microbiota intestinal

*

Quando entrou na graduação em biologia em 2002, em Belo Horizonte, Angélica Vieira descobriu que a UFMG tinha laboratórios de pesquisa. Ela estudava em uma faculdade privada para trabalhar durante o dia e ajudar em casa, pois perdeu o pai muito cedo, e decidiu bater de porta em porta: queria fazer iniciação científica na federal, mesmo sem estudar lá. O prof. Mauro Teixeira, do Laboratório de Imunofarmacologia, acolheu a futura cientista, que enveredou pelo universo da microbiota, assunto de seu mestrado e doutorado.

“Não procurei essa área, entrei porque foi a que me aceitou”, ela diz. “Mas foi uma sorte gigantesca, pois desde o primeiro dia me apaixonei pelo assunto.” Nos últimos anos, multiplicaram-se as pesquisas sobre a microbiota intestinal –o conjunto de microrganismos que vivem no trato digestivo e conhecida popularmente como “flora intestinal”, denominação incorreta e felizmente em desuso. Se hoje se fala cada vez mais sobre a relação entre ela e problemas de saúde variados, do câncer à depressão, naquela época era um mundo desconhecido.

No laboratório em que Vieira fez iniciação científica, o grupo tinha interesse em entender o papel das bactérias intestinais em processos inflamatórios. Era o único do Brasil que dispunha de animais gnotobióticos, ou seja, isentos de microrganismos: os camundongos criados lá nasciam por cesárea (a microbiota só se desenvolve após o nascimento), viviam isolados numa bolha e consumiam comida e água estéreis, o que impede a contaminação microbiana.

O grupo observou que esses animais não respondiam aos modelos inflamatórios –em outras palavras, não desenvolviam algumas doenças. Assim, inicialmente se acreditou que as bactérias seriam as responsáveis por causar inflamações. Outros estudos, porém, mostraram que em doenças inflamatórias intestinais como colite ou Chron, os animais desprovidos de microbiota apresentavam quadros muito mais graves.

“Na época nem existiam técnicas de sequenciamento de DNA, mas começamos a explorar esse campo”, conta a bióloga. Surgiu a oportunidade de trabalhar com um grupo no Garvan Medical Research, na Austrália, que identificou nas células do sistema imune um receptor ativado por metabólitos produzidos pela microbiota. A atuação desses microrganismos em processos inflamatórios começava, assim, a se delinear. Vieira sonhava ir para fora do país, mas não sabia falar inglês. Decidiu se virar e seguiu para um doutorado sanduíche.

O trabalho com o grupo australiano foi publicado na “Nature” em 2009, quando surgia o boom para entender mais a fundo a microbiota. O que se observou foi que, em indivíduos saudáveis, as bactérias benéficas são predominantes, enquanto nos doentes elas estão reduzidas. Isso sugere que, nesses casos, os tais metabólitos –produtos do metabolismo– também estão reduzidos e não são ativados.

Esses metabólitos são produzidos quando as bactérias consomem fibras solúveis. Por isso, uma alimentação desbalanceada e pobre em fibras –tão comum no mundo ocidental, voraz consumidor de alimentos ultraprocessados– pode levar ao desequilíbrio da microbiota, chamado de disbiose, e propiciar o desenvolvimento de doenças. Mas a relação danosa não para por aí.

Angélica Vieira investiga hoje um potencial bem mais destrutivo desse desequilíbrio: o desenvolvimento quase implacável das superbactérias, aquelas blindadas a todos antibióticos. A ONU estima que infecções resistentes a drogas possam causar 10 milhões de mortes por ano até 2050, e há quem sustente que elas serão a próxima pandemia. A cientista, aliás, acredita que a Covid-19 vai acelerar a multiplicação das superbactérias, uma vez que muita gente vem usando antibióticos e outros medicamentos de forma descontrolada na tentativa de combater o coronavírus.

A principal causa do surgimento e propagação das superbactérias é, justamente, o uso indevido e desenfreado de antibióticos, cuja produção de novas classes está estagnada há vinte anos. Mas o palpite de Vieira é que a microbiota poderia atuar como importante reservatório de múltiplos genes de resistência. Bactérias são organismos com enorme habilidade em transferir genes a outras bactérias, entre eles genes de resistência a antibióticos.

“A OMS fez uma campanha grande há uns quinze anos mostrando o perigo do uso indiscriminado de antibióticos e promovendo medidas mais restritas, mas a resistência continuou crescendo enormemente nos últimos anos. Por quê?” A hipótese da bióloga é que alterações na microbiota causadas pela dieta ocidental possam ter contribuído para a seleção e disseminação da resistência antimicrobiana.

Ela vem estudando uma superbactéria específica, Klebsiella pneumoniae, que já causou surto de pneumonia no Brasil. “A Klebsiella dissemina genes de resistência com extrema facilidade e não existe qualquer antibiótico eficaz contra ela.” Parte dessa dificuldade em combatê-la talvez se deva à sua presença natural em nossa microbiota que, se não estiver em equilíbrio, pode favorecer a multiplicação da superbactéria.

Vieira, que na iniciação científica trabalhou dois anos como voluntária porque não havia bolsa disponível, hoje coordena o Laboratório de Microbiota e Imunomodulação no Departamento de Bioquímica e Imunologia da UFMG. “Nunca tive dúvidas de que queria ser cientista, embora eu, criada na roça, não tivesse noção de como isso poderia acontecer”, conta a mineira de Gororós, distrito com cerca de quinhentos habitantes, hoje mãe de Estela e Rafael.

*

Clarice Cudischevitch é jornalista, gestora de Comunicação no Instituto Serrapilheira e coordenadora do blog Ciência Fundamental.

Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar mais novidades do instituto e do blog Ciência Fundamental. Tem uma sugestão de pauta? Veja aqui como colaborar.

]]>
0
Uma solução ambiental não tão óbvia https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/03/10/uma-solucao-ambiental-nao-tao-obvia/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/03/10/uma-solucao-ambiental-nao-tao-obvia/#respond Wed, 10 Mar 2021 10:03:52 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/serrapilheira_vania-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=348 Por Vânia Pankievicz

Como alimentar 7 bilhões de pessoas sem prejudicar solos e mares?

*

Não desperdiçar água, evitar plásticos, produzir menos lixo e optar por fontes de energias renováveis são, como se sabe, ações que promovem a sustentabilidade do planeta. Mas existem muitas outras que podem ter impacto na nossa vida. A fertilização biológica de alimentos, por exemplo, é uma delas. Não é um tema popular, não está na pauta do dia, mas, independentemente da rotina alimentar de uma pessoa, em algum momento ela vai precisar de alimentos cultivados com a aplicação de fertilizantes. O problema é que o aditivo químico vem desequilibrando a biosfera de forma silenciosa e contínua.

Desde a Revolução Verde, ou seja, a partir da década de 1960, a produção em massa desses aditivos nitrogenados transformou a agricultura, proporcionando um colossal aumento na produção de alimentos, sem que necessariamente se multiplicasse a área plantada. No entanto, o composto aplicado ao solo acaba escoando para rios e mares e as consequências podem ser desastrosas, como ocorre no golfo do México, nos Estados Unidos: do alto já avistamos a mancha provocada pelo excesso de aditivo, fonte nutricional para alguns organismos que crescem desenfreadamente e, ao consumir o oxigênio do ambiente aquático, desencadeiam a morte de outros seres vivos.

O alto custo desses compostos e sua forma de produção, que exige grande quantidade de gás natural, fonte não renovável, são outros complicadores. Sem contar que, depois de aplicados no solo, estes fertilizantes, quando não penetram os lençóis freáticos, são degradados em gases de efeito estufa.

O que fazer? Parar de usar fertilizantes? Não são eles, porém, os vilões da história. Fertilizar o solo com nitrogênio é questão de sobrevivência: como alimentar mais de 7 bilhões de bocas? Uma solução possível consiste na transformação do nitrogênio atmosférico em amônia.

Mesmo com toda abundância desse gás, as plantas não o absorvem diretamente do ar, daí a necessidade da sua conversão, que pode ser biológica, física ou industrial. Na biológica, bactérias especializadas fixam o nitrogênio e o convertem em amônia, transferindo o composto para o solo ou diretamente para a raiz da planta. Na física, raios entram em contato com o nitrogênio na atmosfera, formando nitratos. Na industrial, emprega-se grande quantidade de energia natural para produzir os fertilizantes nitrogenados.

O Brasil se beneficia da fixação biológica de nitrogênio nas culturas de soja há mais de 30 anos. O caminho molecular das plantas leguminosas favorece a interação com essas bactérias, os rizóbios, contribuindo com 50% do nitrogênio utilizado pelas plantas. Ou seja, no Brasil, 50% de fertilizante está sendo poupado na soja, fazendo dessa cultura uma das mais importantes na nossa economia. Já culturas de gramíneas, como milho, trigo e arroz, três das cinco mais produzidas no mundo, interagem com outros tipos de bactérias, as associativas, que, comparadas aos rizóbios, fixam nitrogênio em menor escala.

Cientistas mundo afora trabalham para melhorar o modo como as bactérias fixadoras de nitrogênio interagem com essas gramíneas. Johanna Döbereiner, microbiologista brasileira, dedicou a vida ao estudo desses organismos. Se hoje o país é o maior produtor de soja da América do Sul, ela em muito contribuiu para isso, graças a suas pesquisas sobre inoculantes bacterianos, que são alternativas eficientes ao uso intensivo de fertilizantes químicos. A produção de cana-de-açúcar, da qual o Brasil é o maior exportador, também se beneficiou dos resultados de suas pesquisas –essa cultura utiliza até 60% de seu nitrogênio dos inoculantes.

A forma como nosso alimento é produzido não é sustentável e precisa se reinventar para dar conta da demanda. O investimento em ciência e desenvolvimento de produtos biológicos deve estar na ordem do dia, assim como o engajamento popular pela substituição do plástico e combustíveis fósseis. Soluções como essa contribuem para uma agricultura sustentável para as futuras gerações e precisam se popularizar.

*

Vânia Pankievicz é bióloga, pesquisadora e co-fundadora da GoGenetic, empresa de biotecnologia incubada na Universidade Federal do Paraná.

Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar mais novidades do instituto e do blog Ciência Fundamental. Tem uma sugestão de pauta? Veja aqui como colaborar.

]]>
0
A natureza nos ensina a agir coletivamente https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/02/27/a-natureza-nos-ensina-a-agir-coletivamente/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/02/27/a-natureza-nos-ensina-a-agir-coletivamente/#respond Sat, 27 Feb 2021 10:05:43 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/catarina-bessell-simon-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=337 Por Clarice Cudischevitch

Simon Levin mistura matemática, biologia e sociologia para entender o comportamento humano

*

Por que peixes nadam em cardumes? Como pássaros voam em bando tão harmonicamente? O que motiva pessoas a não usarem máscara em uma pandemia? Um dos fenômenos mais fascinantes das ciências da vida é, justamente, o conflito entre o comportamento individual e o coletivo. Mas ele não é exclusivo do mundo biológico. O ecólogo Simon Levin o extrapola para as ciências sociais buscando entender condutas de uma espécie em particular: a humana.

Isso porque, embora a seleção natural atue nas diferenças entre indivíduos, a cooperação existe na natureza desde o nível celular até em diferentes animais. Diretor do Centro de BioComplexidade e professor de ecologia e biologia evolutiva da Universidade de Princeton (EUA), Levin aplica a matemática, sua formação original, para estudar essas duas tendências conflitantes.

Na biologia, elas já são relativamente conhecidas. Pela seleção natural, os organismos mais aptos a sobreviver têm mais chances de passar suas características para os descendentes e, assim, perpetuar seus genes. Em “O Gene Egoísta”, o biólogo Richard Dawkins afirma que um comportamento coletivo, como voar em bando, é adotado por conferir maior probabilidade de sobrevivência a uma linhagem genética.

Quando falamos de interações humanas, no entanto, a conversa é mais complexa. Se peixes nadam em cardumes para benefício mútuo –lutar contra predadores, por exemplo–, adotar um comportamento coletivo que gere benefícios em maior escala para a sociedade geralmente implica restringir ações individuais. “Precisamos aprender com a natureza como alcançar a cooperação”, diz Levin.

Na matemática, é a teoria dos jogos, técnica que modula o comportamento estratégico de agentes em diferentes situações, que dá conta de entender essas relações. Um exemplo clássico: se as pessoas priorizassem o transporte público ao carro, o congestionamento diminuiria, beneficiando a todos. Nesse cenário, no entanto, indivíduos acabariam saindo de carro para aproveitar o fluxo do trânsito, voltando a sobrecarregar as vias. Para a coletividade, seria melhor a cooperação do que ações individuais egoístas.

Essa mistura de matemática com sociologia e toques de biologia é útil para entender a pandemia da Covid-19. Levin, que passou mais de 40 anos estudando a dinâmica de doenças infecciosas, explica que, no caso do coronavírus, aplicamos modelos que predizem a disseminação do vírus, as diferenças entre pacientes com e sem sintomas e outros aspectos que ajudam a pensar em estratégias. Mas falta o componente social.

“Vemos grupos que hesitam em se vacinar. Por quê?”, questiona Levin. “Há os que se recusam a usar máscaras. China, Japão e Ásia em geral são países mais abertos a esse tipo de proteção, enquanto outros, como a Suécia, resistem. Entender isso é um problema das ciências sociais.”

Levin vai além: como decisões coletivas são tomadas? Como normas sociais são criadas e mantidas? Como indivíduos interagem? Um de seus estudos do momento quer entender a dinâmica das polarizações políticas. “Pessoas fazem parte de grupos diferentes, que às vezes se sobrepõem. Desenvolvemos modelos em que os indivíduos mudam suas opiniões ou migram de grupo baseados em interações com outras pessoas.”

Modelos desse tipo também são aplicados em contextos internacionais. Analisam, por exemplo, não apenas as relações entre nações, mas também as influências de organizações como ONU e OMS nas decisões e mudanças de posicionamento dos países.

Tantas incursões interdisciplinares renderam a Levin, hoje com 79 anos, uma produção científica de quase 700 publicações. Doutor desde 1964, é verdade que o cientista não começou agora, mas o segredo é outro.

“Conto com um grupo maravilhoso de estudantes e nada poderia acontecer sem eles”, diz. “O trabalho é fruto de muita colaboração, por isso o esforço de formar pessoas é tão importante. A razão de eu ainda ter alunos é justamente o quanto eu aprendo com eles e vejo o quanto podem construir. Quando as pessoas trabalham juntas podem fazer muito mais.” Eis aí um exemplo humano bem-sucedido de comportamento coletivo.

Simon Levin participará do lançamento no Brasil do Programa de Formação em Biologia e Ecologia Quantitativas, oferecido pelo Instituto Serrapilheira e pelo Instituto Sul-Americano para Pesquisa Fundamental (ICTP-SAIFR). Ele vai ministrar um webinar no dia 2 de março, às 11h. Mais informações aqui.

*

Clarice Cudischevitch é jornalista, gestora de Comunicação no Instituto Serrapilheira e coordenadora do blog Ciência Fundamental.

Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar mais novidades do instituto e do blog Ciência Fundamental. Tem uma sugestão de pauta? Veja aqui como colaborar.

]]>
0
Simulando epidemias https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/02/27/simulando-epidemias/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/02/27/simulando-epidemias/#respond Thu, 27 Feb 2020 17:33:07 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/02/sims-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=60 Por Gabriela Cybis

Como a modelagem matemática lida com a dispersão de vírus, do corona a zumbis

*

Logo que surge uma epidemia viral, começam a ser divulgadas informações sobre o número de novos casos e mortes, e quais as cidades onde se encontram os infectados – primeiro concentradas próximo ao ponto de origem, e gradativamente se espalhando em uma onda que ameaça tomar conta do globo. Nos últimos anos vimos esse filme algumas vezes: em 2002, o SARS que se propagou para dezessete países; em 2009, a gripe suína (H1N1) que se tornou pandêmica atingindo todos os continentes; em 2013, a ameaça da gripe aviária. E agora acompanhamos o desenrolar da epidemia do novo coronavírus.

O que pode ser feito para conter a dispersão do vírus? Governos adotam medidas como fechar escolas; medir a temperatura de passageiros que desembarcam nos aeroportos; proibir a entrada de pessoas vindas de regiões afetadas; restringir o tráfego aéreo; cancelar eventos públicos de grande porte, como as comemorações do ano-novo chinês. Mas como avaliar o efeito real dessas ações? Considerando o impacto econômico e social dessas medidas restritivas, será que o ganho em termos de contenção da epidemia compensa?

A resposta a essas questões é complexa e depende de uma série de fatores. Nem todos os vírus são iguais, e seu modo de transmissão, a facilidade com que infectam novas pessoas, os períodos de latência e a letalidade variam. Além disso, condições sociais, demográficas e até climáticas podem afetar a dinâmica do vírus.

Como não temos bola de cristal, a melhor forma de entender como esses fatores se combinam para determinar o curso da epidemia são os modelos matemáticos que costumam dividir a população em três subgrupos: suscetíveis (quem nunca pegou a doença e, se entrar em contato com ela, pode contraí-la); infecciosos (quem carrega o vírus e, se entrar em contato com pessoas suscetíveis, pode transmiti-lo); removidos (quem não participa mais da dinâmica de infecções, pois ou já se recuperou – e está imune – ou morreu).

Para estudar o progresso da epidemia e traçar estratégias de contenção, os modelos acompanham a rede de interação entre esses grupos, em graus variáveis de detalhe. Nos Estados Unidos, por exemplo, um modelo para doenças tipo gripe utiliza dados de censo, levando em conta mapas, padrões de locomoção, idade e interações no trabalho, na escola e em casa. Simula-se assim um enorme ambiente no qual os agentes (indivíduos) seguem suas rotinas de modo similar ao jogo The Sims. Cada vez que um indivíduo suscetível interage com um infeccioso, ele tem certa probabilidade de contrair a infecção. A simulação é repetida várias vezes para identificar o curso mais provável da epidemia e os resultados das intervenções de controle.

Uma ressalva importante é que o modelo é apenas tão bom quanto seus pressupostos. Se ele não capturar bem o processo de transmissão do vírus, as conclusões vão reproduzir essas falhas.

Afinal, o que aprendemos com esses estudos? A aleatoriedade desempenha um papel importante no curso de várias epidemias. Os modelos podem nos dar estratégias de vacinação em grupos etários, por exemplo privilegiando as crianças, já que o ambiente escolar é propício à circulação do vírus. Propostas combinadas, com ações como distribuição estratégica de antivirais, alterações de comportamento individual e fechamento seletivo de escolas podem obter alto grau de sucesso.

Certas estratégias (o recolhimento de profissionais do local da epidemia, entre outros) podem ter efeito oposto ao desejado. E, claro, tudo isso depende das condições específicas do vírus em questão. O importante é que dispomos de ferramentas científicas para nos ajudar a avaliar o efeito de cada ação, agindo quase como uma bola de cristal que nos ajuda a vislumbrar o resultado de cada escolha (e suas margens de erro).

Na interface entre a cultura pop e a modelagem epidemiológica, encontramos quem? Os zumbis. Diz a tradição que humanos mordidos por zumbis acabam virando zumbis. Eles se encaixam perfeitamente no modelo suscetíveis (humanos), infecciosos (zumbis) e removidos (mortos), e compõem um case lúdico para o ensino desses modelos para as novas gerações de epidemiologistas.

*

Gabriela Cybis é bióloga, professora de Estatística na UFRGS, atua em modelagem estatística para genética

Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as atualizações do blog Ciência Fundamental.

]]>
0
Em busca de Adão e Eva https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/01/23/em-busca-de-adao-e-eva/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/01/23/em-busca-de-adao-e-eva/#respond Thu, 23 Jan 2020 05:00:18 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/01/ilustr-texto-gabriela-catarina-bessell-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=28 Por Gabriela Cybis

Em algum momento do passado, uma mulher foi a última ancestral comum, na linhagem materna, de todos os seres humanos vivos

*

Você já parou para pensar em seus ancestrais? Eles ajudam a contar um pouco a história de quem somos. Mas quantos são eles? Bem, a gente tem um pai e uma mãe, quatro avós, oito bisavós, dezesseis tataravós etc. A cada geração que recuamos, o número de ancestrais duplica. Assim, há dez gerações, em torno do ano 1690, você teria 2^10=1024 ancestrais, alguns dos quais podem ter presenciado o fim do Quilombo dos Palmares. Há 1200 anos, quando teve início a era das excursões vikings, você teria mais de 68 bilhões de ancestrais.

Esse número é claramente absurdo, uma vez que a população humana não chegava a 300 milhões no ano 800 DC. Como conciliar essa aparente contradição? É simples: vários desses ancestrais devem ter sido a mesma pessoa, o que significa que houve uma grande quantidade de endocruzamentos na história da humanidade. Somos todos parentes, uns dos outros e de nós mesmos.

Nesse contexto, talvez seja mais interessante investigar não quantos ancestrais distintos nós temos, mas sim aqueles que temos em comum. A chave para esta questão está na genética. Mas estudar ancestralidade compartilhada é incrivelmente complexo, dada a maravilhosa balbúrdia da reprodução sexuada. Para simplificar a questão, buscamos um modelo em que a recombinação de material genético de pai e mãe não dificulte a análise do passado.

Um bom exemplo é o DNA mitocondrial. Mitocôndrias são organelas celulares que carregam seu próprio material genético, e que são herdadas apenas na linhagem materna. Você recebeu suas mitocôndrias da sua mãe, que por sua vez as recebeu da mãe dela, e sucessivamente, sem a complicação de interação com as linhagens paternas. Assim, a ancestralidade compartilhada pela linhagem materna pode ser reconstruída comparando o DNA mitocondrial de várias pessoas.

Esses dados são analisados à luz de um modelo que reproduz matematicamente as probabilidades de encontro de diferentes linhagens ancestrais. O modelo começa no presente e olha para o passado, partindo do pressuposto de que cada pessoa da geração atual herdou suas mitocôndrias de uma pessoa da geração anterior. É possível que duas pessoas compartilhem a mesma ancestral na geração anterior –são irmãos–, ou há duas gerações –são primos–, ou há mais tempo ainda.

Ao estender esse argumento a um conjunto maior de indivíduos, a teoria das probabilidades nos garante que, se esperarmos tempo suficiente, é inevitável que todos os seres humanos vivos chegaremos a um único ancestral comum. Essa dinâmica representa o processo de “coalescência”, decorrente do modelo de Wright-Fisher, um dos modelos mais clássicos da genética de populações.

Aqui, cabe uma curiosidade: se revertermos o sentido do tempo para esse argumento, também é possível garantir que, se esperarmos tempo suficiente, em algum momento do futuro, alguma mulher viva hoje será a ancestral –dará origem– a todos os seres humanos do planeta. Isso, é claro, se a humanidade não for extinta antes.

A consequência surpreendente deste argumento é que, em algum momento do passado, existiu uma mulher que foi a última ancestral comum, na linhagem materna, de todos os seres humanos vivos hoje. Vale ressaltar que essa figura, batizada de Eva mitocondrial, não vivia isolada: era contemporânea de diversas outras pessoas. Enquanto todos nós somos descendentes dela na linhagem materna, e portanto dela herdamos nossas mitocôndrias, provavelmente também herdamos material genéticos dessas outras pessoas.

Na busca da mãe primordial, foram realizados diversos estudos que combinam derivações teóricas do processo de coalescência e análises genéticas do DNA mitocondrial. Estima-se que a matriarca tenha vivido há aproximadamente 150 mil anos, em algum ponto da África subsaariana, possivelmente em região próxima ao rio Zambezi.

Caminho semelhante pode ser percorrido para linhagens masculinas. Assim como as mitocôndrias são herdadas das nossa mães, o cromossomo Y, presente apenas nos homens, é herdado por meio da linhagem paterna. Ao estudar a ancestralidade compartilhada pelo cromossomo Y, chega-se ao pai de toda a humanidade. Esse ancestral comum de todos as pessoas vivas hoje recebe o nome de Adão do cromossomo Y. Estudos divergem quanto à sua datação, estimando que ele teria vivido entre 200 mil e 120 mil anos no passado, também na África subsaariana. Infelizmente, a natureza parece carecer de romantismo: é muito provável –quase certo, para ser mais preciso– que Adão e Eva nunca tenham se conhecido.

*

Gabriela Cybis é bióloga, professora de Estatística na UFRGS, atua em modelagem estatística para genética

]]>
0