Ciência fundamental https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br O que pensam os jovens cientistas no Brasil? Thu, 02 Dec 2021 15:29:05 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2  Por que o coração bate? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/11/29/por-que-o-coracao-bate/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/11/29/por-que-o-coracao-bate/#respond Mon, 29 Nov 2021 10:21:51 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/coração-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=600 Por Rossana Soletti

A origem dessa estrutura complexa

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O texto abaixo responde à pergunta de Pedro Henrique Nagai, paulistano, 5 anos, para a série “Perguntas de criança, respostas da ciência”.

A batida de um coração tem um simbolismo todo especial: ela significa vida, amor, paixão, ansiedade. Mas quando Pedro Henrique, de 5 anos, pergunta por que o coração bate, a resposta precisa ser reduzida a uma explicação biológica.

Vamos começar pelo coração já pronto, e depois voltamos para o início, quando nosso corpo ainda estava se formando. O coração é uma estrutura complexa, uma obra-prima que tem quatro câmaras: dois átrios, que recebem sangue do corpo e o repassam para dois ventrículos, que então bombeiam o sangue para grandes vasos. E ele produz seus próprios impulsos. Suas batidas são controladas por sinais elétricos que se espalham pelas células das câmaras cardíacas. Os átrios se contraem primeiro, para depois contrair os ventrículos, e assim surge a batida que a gente conhece.

Em geral imaginamos o coração como uma grande estrutura, mas ele não passa de um conjunto de células individuais: células musculares cardíacas formam as camadas de músculo; algumas células ajudam na sustentação e na forma do órgão; células nervosas coordenam os batimentos cardíacos e outras compõem os vasos sanguíneos. E é a interação entre todas elas que confere a habilidade de bombear sangue ao coração, o primeiro órgão funcional a ficar pronto, ainda quando somos um embrião. Uma das maiores descobertas sobre seu desenvolvimento foi constatar que muitas de suas células derivam de uma mesma célula-mãe logo nas primeiras semanas de vida.

À medida que o embrião vai se desenvolvendo, as células se diferenciam e se especializam, num processo comandado por sinais químicos. Algumas enviarão sinais a suas vizinhas, que se transformarão em células cardíacas, e por isso todas as células precursoras precisam estar no lugar certo e na hora certa. Por volta da terceira semana, o embrião é um sanduíche de três camadas e o coração começa a surgir na camada intermediária a partir de dois aglomerados de células que se diferenciam e originam outros tipos celulares.

Num embrião humano com quatro semanas, o coração é um tubo de duas câmaras que depois passará por um dobramento. Nessa etapa as células já fazem uma contração rítmica e há um fluxo de sangue, e essa pressão ajuda o coração a se dobrar e formar as quatro câmaras enquanto o embrião cresce. É por essa pulsação precoce que uma gestante consegue ouvir as batidas do coração do bebê logo nas primeiras semanas de gestação, quando o embrião ainda é muito primitivo.

Se separarmos essas células musculares cardíacas que se contraem e as pusermos em uma placa para serem cultivadas em laboratório, elas poderão reproduzir o batimento cardíaco. Se isoladas na placa, o batimento de cada célula é independente; quando aumentam em número e se encostam, o batimento começa a ser uníssono. Essa habilidade fantástica já foi observada por cientistas há mais de duas décadas e agora as pesquisas continuam, com o intuito de fazer com que essas células pulsantes se desenvolvam num coração de verdade, e de produzir tecido cardíaco a partir da transformação de outros tecidos nossos, como a pele, e encontrar explicações e tratamentos para diversas doenças.

E essas condições não são poucas: como vimos, com toda sua complexidade, depois que o coração está pronto tudo precisa funcionar em harmonia, como numa orquestra. As câmaras e as passagens entre elas precisam funcionar corretamente, as células devem bater no ritmo certo. Caso isso não aconteça, os batimentos podem ficar dessincronizados ou o volume de sangue necessário pode não ser bombeado. É por isso que as alterações cardíacas estão entre os defeitos mais frequentes em recém-nascidos, e que as doenças cardiovasculares estão entre as causas de morte mais comuns.

Há séculos os cientistas procuram compreender essa estrutura fantástica, complexa e poética, no encalço de mais longevidade e qualidade de vida para as pessoas.

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Rossana Soletti é doutora em ciências morfológicas e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Sabemos que as crianças fazem as melhores perguntas, e que a ciência pode ter boas respostas para elas. Todo mês, a série “Perguntas de criança, respostas da ciência” convida um cientista a responder uma dessas questões fundamentais. Você tem uma sugestão de pergunta? Veja aqui como colaborar.

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O que é a vida? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/21/o-que-e-a-vida/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/21/o-que-e-a-vida/#respond Thu, 21 Oct 2021 10:05:12 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/vida-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=560 João Miguel de Oliveira, 6 anos, carioca, fez essa complexa pergunta fundamental para a série “Perguntas de criança, respostas da ciência”. O Serrapilheira chamou três cientistas de áreas diferentes para (tentar) respondê-la.

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A vida é a ordem em meio à desordem, por Hugo Aguilaniu, biólogo geneticista

Na condição de geneticista que pesquisa o envelhecimento, devo dizer que a definição mais estrita de vida não é, de fato, tão simples. A primeira ideia que vem à mente é que um ser vivo deve ser capaz de se mover. Se o movimento macroscópico não for sistemático, deve ser pelo menos molecular: as moléculas devem se transformar ativamente em outras moléculas. Embora isso seja observado em todos os seres vivos, o movimento molecular não é específico dos seres vivos, pois basta pôr duas moléculas reativas em presença uma da outra para dar início aos fluxos químicos, aos movimentos. É, portanto, uma condição necessária, mas não suficiente.

Outra característica da vida é a capacidade de se perpetuar. Os seres vivos são, em sua maioria, mortais, mas podem perpetuar a vida por meio da reprodução, quando então o código genético com todas as informações é fielmente replicado. Não é impossível, porém, que alguns organismos se perpetuem sem se reproduzir, por meio de uma eficiente regeneração. De todo modo, é sempre necessário perpetuar e/ou reproduzir nossa informação genética.

A replicação do código genético implica a capacidade de os seres vivos se manterem em ordem. Estar vivo é precisamente manter certa organização molecular dentro de si. Quando a vida sai de um organismo, podemos ver que os tecidos se decompõem e são logo reduzidos a compostos químicos individuais, não mais ordenados entre si. Essa manutenção da ordem é muito cara em termos energéticos: enquanto houver vida, ela não pode parar. O metabolismo e a ingestão de moléculas que carregam certa quantidade de energia química –o que chamamos nutrição– é que impulsionam esse processo.

Os seres vivos, portanto, consomem energia ao seu redor para se manter em ordem. De acordo com a segunda lei da termodinâmica, sabemos que a ordem mantida nos indivíduos vivos só é possível ao preço da criação de uma desordem. E essa, por sua vez, é ainda maior que a ordem – tanto que a entropia, a desordem do universo, cresce inexoravelmente.

Uma tabela periódica da vida, por Daniel Valente, físico

Para um físico, a pergunta vai muito além de “como funcionam os organismos vivos tais como os conhecemos”. Há várias comunidades de cientistas buscando uma compreensão que englobe a vida-como-a-conhecemos e a vida-como-poderia-ser.

Suponhamos, por um instante, uma busca por vida fora da Terra. Caso encontremos um sistema auto-organizado e autorreplicante, porém de composição molecular completamente distinta da nossa, como reconhecê-lo como vivo? Tornados, por exemplo, são estruturas auto-organizadas que “sobrevivem” enquanto há energia disponível na atmosfera, mas ninguém os considera organismos realmente vivos. Fogo também sobrevive enquanto dura a energia que o alimenta e, curiosamente, é capaz de se autorreplicar (pense na chama de uma vela quanto toca um novo pavio).

Se a auto-organização e a autorreplicação não são critérios suficientes, será que seria suficiente adicionar a evolução darwiniana à lista? Para constatar que isso não tem muita serventia, basta analisar a chamada “vida artificial” –programas de computador capazes de se autorreplicar, competir por recursos (alocação de memória, energia elétrica na máquina) e desenvolver características complexas a partir de programas simples. Mas essa vida artificial poderia ser posta em pé de igualdade com a vida natural?

Alternativamente à busca por definições, ou por uma lista de atributos, cientistas têm procurado respostas na física do comportamento emergente. Tentamos ver emergir, nos mais diversos sistemas (do nanométrico ao macroscópico) e contextos (contendo fontes de energia luminosa, elétrica, química, térmica), imitações e sobretudo generalizações de todas as possíveis características excepcionalmente similares às dos organismos vivos tal como os conhecemos (auto-organização, automontagem, autorrecuperação, autorreplicação, mutação, adaptação). Algumas buscas se inclinam para os aspectos energéticos da auto-organização longe do equilíbrio termodinâmico (generalizando a noção de metabolismo como um processo emergente na matéria), enquanto outras se inspiram nos aspectos informacionais (imitando o código genético e a capacidade de processamento de informação que emergem em toda célula viva).

Físicos do passado primeiro precisaram responder “o que é gravidade?” para depois criar os satélites artificiais e o GPS. Cientistas do presente têm tentado inventar toda sorte de vida artificial, na expectativa de um dia responder de modo exato a “o que é vida”. Quem sabe ainda haverá uma “tabela periódica da vida”, na qual ordenaremos os sistemas por seu “grau de vida” desde os obviamente não vivos até os obviamente vivos?

A vida é uma obra de Gaia, por Adriana Alves, geóloga

Para um geólogo, a vida envolve os processos compreendidos entre o nascimento e a morte. Entretanto, ao contrário dos biólogos, nós não nos referimos necessariamente apenas a animais, plantas e bactérias como seres vivos. Planetas, estrelas e até vulcões fazem parte desse grupo. Uma estrela, por exemplo, como o Sol, vive para queimar combustível e fornecer luz e calor no processo; um planeta vive para diminuir a temperatura de seu interior até que sua dinâmica interna se paralise. Nós, seres viventes clássicos da biologia, nos originamos da combinação quase milagrosa e acidental de carbono, oxigênio, nitrogênio e hidrogênio… E foi o surgimento dos seres fotossintetizantes  –aqueles que consomem gás carbônico como combustível e soltam oxigênio como subproduto dessa reação– que nos propiciou a atmosfera rica em oxigênio que boa parte dos seres que conhecemos necessitam para seguir vivendo.

Não fosse o pulsante dinamismo da Terra, os continentes não existiriam e o planeta ainda seria uma bola de lava. Sem essa dinâmica tampouco haveria deriva continental, nem as placas tectônicas se encontrariam. Esse “não encontro” impossibilitaria a migração dos hominídeos, que existiriam isolados em algum ponto remoto da África.

Como uma mãe (Pacha Mama ou Gaia), a Terra nos fornece tudo o que precisamos para a vida biológica desde o surgimento da nossa (e de todas) espécie(s). Seja por influenciar a distribuição dos nutrientes do subsolo e a ocupação do território por caçadores coletores, seja por definir a distribuição de metais preciosos usados nos chips do computador em que ora escrevo, a vida humana e de todos os demais seres só se tornou viável por conta da dinâmica peculiar e caprichosa de Gaia.

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Hugo Aguilaniu é diretor-presidente do Instituto Serrapilheira, Daniel Valente é professor da UFMT e Adriana Alves é professora da USP.

Sabemos que as crianças fazem as melhores perguntas, e que a ciência pode ter boas respostas para elas. Todo mês, a série “Perguntas de criança, respostas da ciência” convida cientistas para responderem uma dessas questões fundamentais. Você tem uma sugestão de pergunta? Veja aqui como colaborar.

 

 

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Por que o coronavírus evolui mais rápido que a gente? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/09/28/por-que-o-coronavirus-evolui-mais-rapido-que-a-gente/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/09/28/por-que-o-coronavirus-evolui-mais-rapido-que-a-gente/#respond Tue, 28 Sep 2021 14:33:31 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/serrapilheira_mutacoes_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=537 Por Murilo Bomfim

Os vírus têm mais filhos em um dia do que podemos ter durante a vida inteira

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O texto abaixo responde à pergunta feita por Amílcar Borges de Jesus, baiano, 9 anos, para a série “Perguntas de criança, respostas da ciência”.

O combate à pandemia já não estava fácil há cerca de um ano, quando a variante Alpha do novo coronavírus deu as caras no Reino Unido e complicou ainda mais a situação. De lá para cá, outras variantes foram identificadas, dando a sensação de que, mesmo com as vacinas, estamos enxugando gelo. O que explica essa evolução tão rápida?

Vírus são seres muito simples, feitos apenas de uma cápsula proteica e do seu material genético (DNA, RNA ou ambos). Quando eles se reproduzem, as informações genéticas são copiadas — e essas cópias estão sujeitas a erros, gerando mutações. É como um telefone sem fio: alguma informação diferente da história original sempre pode ser passada para frente.

É o acúmulo desses erros que forma uma variante. Não é apenas a biologia, no entanto, que explica por que o novo coronavírus evolui mais rápido que os humanos. A questão também é matemática. As mutações que ocorrem na reprodução podem levar a mudanças evolutivas. Se, enquanto espécie, temos novas gerações a cada vinte ou trinta anos, o vírus se replica a cada dez ou vinte minutos. Com uma reprodução mais frequente, as chances de acumular mutações são bem maiores.

Voltando à biologia, existem mecanismos específicos que nos diferenciam dos vírus. Um deles é o sistema de reparação. Quando uma célula humana é copiada, o organismo é capaz de fazer uma checagem em busca de erros. Se um erro é detectado, é corrigido — o que limita nossas mutações. Esse sistema, no entanto, é sujeito a falhas: nesses casos, podemos desenvolver doenças genéticas, por exemplo.

O novo coronavírus também é capaz de fazer reparos, porém suas detecções são muito menos precisas que as dos humanos. A maior parte dos vírus nem conta com esse sistema (fosse esse o caso do coronavírus, faltariam letras no alfabeto grego para nomear variantes).

Além disso, o corpo humano é perspicaz ao organizar suas células. Elas podem ser divididas em dois grupos: somáticas e germinativas. As somáticas compõem a maior parte do organismo. Estão, por exemplo, nos olhos, no fígado, na pele. Elas se reproduzem com mais frequência e podem gerar mutações diversas (que vão de alterações imperceptíveis até a criação de tumores). Mas essas mutações não são passadas aos descendentes. A hereditariedade é poder exclusivo das células germinativas –os óvulos e os espermatozoides. O corpo entende que as mutações que ocorrem nessas células são transmitidas à prole, por isso o sistema de reparo das germinativas é especialmente rígido. Já no universo dos vírus, qualquer mutação é hereditária.

Ser vírus, no entanto, tem lá suas vantagens. A identificação da variante Alpha foi uma surpresa para a comunidade científica que acompanhava as mutações de perto. “Víamos um genoma estável e, de repente, surge uma variante com quinze, vinte mutações”, diz o geneticista Hugo Aguilaniu, diretor-presidente do Instituto Serrapilheira. Ele conta que isso é possível quando o vírus encontra um “reservatório”– um lugar onde ele pode se replicar sem ser percebido.

Existem duas teorias para explicar esta aparição repentina das variantes. Uma delas é a reprodução em pessoas imunodeprimidas, que podem abrigar o vírus por meses. Neste período, as mutações se acumulam e a pessoa infectada pode transmitir um coronavírus um pouco diferente daquele que a infectou.

A outra possibilidade é que o novo coronavírus tenha encontrado um reservatório não em humanos, mas em outros animais. Uma espécie suspeita são os visons, sacrificados em massa em países europeus por estarem infectados pelo patógeno. Neste caso, o vírus rapidamente se alastra pelo grupo, sofre mutações e pode voltar a infectar humanos.

Mesmo com tantas variantes, vacinar populações não é enxugar gelo. Enquanto vamos criando resistência contra casos graves de Covid-19, a tendência é que o vírus se torne menos agressivo à saúde humana, talvez sendo comparado a um resfriado qualquer. É bom para nós, que poderemos, enfim, nos livrar da pandemia, e bom para ele, que vai poder se replicar sem virar manchete.

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Murilo Bomfim é jornalista.

Sabemos que as crianças fazem as melhores perguntas, e que a ciência pode ter boas respostas para elas. Todo mês, a série “Perguntas de criança, respostas da ciência” convida um cientista a responder uma dessas questões fundamentais. Você tem uma sugestão de pergunta? Veja aqui como colaborar.

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Em que lugar do cérebro fica a memória? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/08/05/em-que-lugar-do-cerebro-fica-a-memoria/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/08/05/em-que-lugar-do-cerebro-fica-a-memoria/#respond Thu, 05 Aug 2021 10:13:37 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/zimmer-memoria-300x215.png https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=497 Por Eduardo Zimmer

Somos aquilo que decidimos esquecer

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O artigo abaixo responde à pergunta feita por Violeta Reys, de 7 anos, para a série “Perguntas de criança, respostas da ciência”.

Iván Izquierdo, neurocientista argentino naturalizado brasileiro, costumava dizer que “somos aquilo que decidimos esquecer”. Para ele, o esquecimento era o fenômeno biológico mais fascinante da memória. De fato, precisamos esquecer para lembrar. Em um milissegundo consigo lembrar da data de nascimento da minha mãe, mas não preciso acionar sempre essa memória, ela fica guardada em lugares específicos do cérebro. Mas onde?

Para entender as bases neurobiológicas desse fenômeno, dois conceitos são essenciais. O primeiro é que o cérebro é segmentado em regiões que desempenham funções específicas, mas conectadas de modo a nos permitir desempenhar funções cognitivas superiores, como ler, falar e raciocinar. O segundo é relacionado aos tipos de memória: existe a de curto prazo, que guardamos por algumas horas (o número do telefone de uma loja de entregas) e a de longo prazo, que é retida de forma prolongada e pode ser recuperada (o que aconteceu no último Natal), e que podem ser declarativas (“saber que”) e não declarativas (“saber como”). Existem ainda outras classificações, diferentes do ponto de vista biológico, como memória semântica e episódica. O início da expansão do conhecimento a respeito da memória merece ser… lembrado.

Em 1953, o paciente Henry Molaison, conhecido como H.M., foi submetido a uma lobotomia para controlar ataques epilépticos. A epilepsia foi contida, mas H.M. não conseguia formar novas memórias declarativas, embora pudesse formar as de curta duração e não declarativas. Assim: H.M. mantinha uma conversação normalmente, mas assim que o papo terminava e ele começava outra atividade, ele esquecia por completo que aquela conversa tinha ocorrido –esquecia inclusive da pessoa, se fosse uma pessoa “nova”. Era como se ele tivesse sido submetido ao “neuralizador” da trilogia “Homens de Preto”, equipamento fictício utilizado para apagar a memória das pessoas.

O estudo desse caso foi um divisor de águas. E ele ficou a cargo de Brenda Milner, considerada por muitos a fundadora da neuropsicologia, que o apresentou à comunidade científica ainda em 1957. (Hoje, aos 102 anos, a dra. Milner continua na ativa e pode ser vista pelos corredores do Instituto de Neurologia de Montreal no Canadá. Eu mesmo tive a honra de conduzir parte de meus estudos de doutorado nessa instituição, graças ao extinto programa “Ciência sem Fronteiras”. Uma memória inesquecível).

A chave para o entendimento do caso H.M. apontou para as áreas que foram removidas na lobotomia, sobretudo o hipocampo, principal região do cérebro responsável por memórias de curta duração e declarativas. Hoje em dia a neuropsicologia sugere que cada tipo de memória é armazenado em um lugar especial no cérebro. Ou seja, outras áreas além do hipocampo também têm a habilidade de armazenar memórias, como o córtex.

Mas o entendimento de um processo neurobiológico ainda mais fundamental se faz necessário. Seria intuitivo pensar que surgiria um neurônio novo a cada nova memória, ou que um neurônio pudesse acomodar um número limitado de memórias. Ora, como poucos neurônios nascem em cérebros adultos, com a quantidade massiva de informações que recebemos, nosso “HD neuronal” já estaria lotado.

Ambas as hipóteses estão incorretas. A plasticidade do cérebro é que está em questão. Os neurônios formam novas conexões ou até fortalecem conexões prévias com os outros neurônios. Essa conectividade faz com que os disparos elétricos –as sinapses– coordenados por uma série de neurônios formem, retenham, “esqueçam” e permitam a evocação das memórias.

Pode ser que alguns leitores lembrem desse artigo por muito tempo, pode ser que outros já não lembrem dez segundos depois de o lerem. Mas aí a conversa entra em outra região do cérebro, a amígdala, que coordena um dos fenômenos neurobiológicos mais bonitos de nossa vida: a emoção. Ela ajuda a decidir quais memórias a gente deve guardar. Quer fazer um teste? Quem não lembra do primeiro beijo? Eu sei, são tantas emoções…

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Eduardo Zimmer é bioquímico e professor no Departamento de Farmacologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Sabemos que as crianças fazem as melhores perguntas, e que a ciência pode ter boas respostas para elas. Todo mês, a série “Perguntas de criança, respostas da ciência” convida um cientista a responder uma dessas questões fundamentais. Você tem uma sugestão de pergunta? Veja aqui como colaborar.

 

 

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Quantas galáxias existem no universo? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/07/03/quantas-galaxias-existem-no-universo/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/07/03/quantas-galaxias-existem-no-universo/#respond Sat, 03 Jul 2021 10:22:22 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/galáxias-em-um-universo-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=465 Por Thiago Signorini Gonçalves

O desafio de fazer um censo do cosmo

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O artigo abaixo responde à pergunta feita por Penélope Alves, 6 anos, baiana, que quer ser astrônoma, para a série “Perguntas de criança, respostas da ciência”.

A pergunta pode parecer trivial, mas a resposta é complexa, senão desconhecida. Estimativas variam entre 200 bilhões e 2 trilhões, e esse valor assim alto já justifica nossa ignorância.

Para começar, quantas galáxias já foram catalogadas? Como determinar quantas são, se há centenas de projetos astronômicos, cada um mapeando uma parte do céu? O Levantamento de Energia Escura, um dos maiores, uma colaboração internacional com participação brasileira, recentemente anunciou um total de 226 milhões.

Muitas vezes, porém, elas não passam de borrões em uma imagem. Um algoritmo de computador sugere que seja uma galáxia, mas a identificação dos astros –sobretudo os menos brilhantes– é imprecisa. O que para um telescópio é uma galáxia, para outro pode ser uma estrela.

Levando tudo isso em conta, somando os esforços dos diferentes projetos e as possíveis duplicatas, podemos supor que temos um catálogo de alguns bilhões de galáxias catalogadas. Um número muito distante do total de talvez mais de um trilhão. Como chegamos então a este valor?

Nesse ponto, estamos sujeitos a estimativas estatísticas. Imaginemos uma campanha presidencial: não podemos perguntar a todos os eleitores do país em quem eles pretendem votar, e as pesquisas dependem de uma amostra de alguns milhares para prever como dezenas de milhões se comportarão nas urnas.

A definição dessa amostra é fundamental. O voto de eleitores do Sudeste do Brasil provavelmente será distinto daqueles do Nordeste: não se pode fazer a pesquisa em um único estado e projetar o resultado para o país todo. Da mesma forma, não podemos contar as galáxias em uma região do céu e supor que aquele número se aplique a todo o universo.

Como, então, fazer um censo do universo? Um dos grandes problemas é que as galáxias mais numerosas são as menos luminosas, de difícil detecção, portanto. Quanto mais poderoso o telescópio, melhor nossa capacidade de observar uma galáxia — mas qual é o limite de sensibilidade dos observatórios? Quais são as menores galáxias do universo? Para responder, devemos conhecer intrinsicamente o processo de formação desses sistemas, o que em muitos aspectos ainda é um mistério.

A Segue 2, distante de nós cerca de 100 mil anos-luz, ilustra essa diversidade. Ela brilha com intensidade de apenas oitocentas vezes a luminosidade do Sol; em comparação, a Via Láctea tem o brilho de 100 bilhões de estrelas. No entanto, a massa total de Segue 2 é 500 mil vezes a massa do Sol, o que, combinado com o seu brilho fraco, indica a presença de enorme quantidade de matéria escura, que não emite luz. Como essa galáxia se formou? Quantas iguais a ela existem? São incógnitas que afetam as estimativas do total de galáxias no cosmo.

A questão fica mais complexa se pensamos em distâncias consideradas grandes mesmo para os astrônomos. Conseguimos ver vários tipos de galáxias vizinhas, como Andrômeda ou as Nuvens de Magalhães, mas a bilhões de anos-luz, só vislumbramos as mais brilhantes.

Isso não seria um problema se as galáxias tão distantes fossem idênticas às nossas vizinhas. A velocidade da luz é finita, porém. Se uma galáxia está muito distante, isso significa que a luz levou muito tempo, bilhões de anos, até, para chegar aqui. Estamos vendo o universo em sua infância.

Podemos supor que as galáxias no passado eram as mesmas de hoje? De jeito nenhum. Continuando com a analogia das pesquisas eleitorais, imagine se perguntássemos a opinião política dos eleitores da década de 60 sobre candidatos à eleição de 2022! Os movimentos políticos estão em constante evolução, e não podemos admitir que a população se comporte de maneira idêntica em épocas tão distintas.

Da mesma maneira, o universo distante reflete determinado momento da evolução de galáxias, e a contabilidade deve ser calculada à parte. Como fazer isso se só vemos a ponta do iceberg, somente as galáxias mais luminosas? Telescópios mais poderosos poderão responder com precisão –tomara que o James Webb, a ser lançado no final do ano, possa nos ajudar.

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Thiago Gonçalves é astrônomo no Observatório do Valongo/ UFRJ e divulgador de ciência.

Sabemos que as crianças fazem as melhores perguntas, e que a ciência pode ter boas respostas para elas. Todo mês, a série “Perguntas de criança, respostas da ciência” convida um cientista a responder uma dessas questões fundamentais. Você tem uma sugestão de pergunta ou de pauta para o blog? Veja aqui como colaborar.

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Como as plantas sabem que horas são? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/06/06/como-as-plantas-sabem-que-horas-sao/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/06/06/como-as-plantas-sabem-que-horas-sao/#respond Sun, 06 Jun 2021 10:21:24 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/camilo-martins-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=436 Por Carlos Takeshi Hotta

Ao fazer pequenos cálculos, elas garantem a sobrevivência

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As plantas são seres muito subestimados. Por trás de uma simplicidade aparente, porém, elas estão aptas a executar operações sofisticadas, tanto assim que há quem confunda essa habilidade com inteligência. Para nos atermos a apenas um exemplo dessa complexidade, basta dizer que a fim de evitar morrer de fome durante a noite, elas são capazes de elaborar cálculos simples.

As plantas têm uma “rotina”. Assim como outros seres vivos, elas possuem um relógio interno, o relógio circadiano, que gera ritmos diários a fim de sincronizar seu corpo com os ritmos ambientais. Elas se preparam para colher a luz do sol antes do amanhecer; emitem cheiros para atrair polinizadores quando estes estão mais ativos; evitam perder água de tarde, quando a umidade do ar é menor e, de noite, se sustentam com reservas energéticas produzidas de dia.

O amanhecer e o anoitecer são eventos previsíveis, e os vegetais sabem disso. Ou seja: eles sabem que horas são.

De dia as plantas fazem fotossíntese e produzem os esqueletos de carbono necessários para a sua sobrevivência, seu crescimento e reprodução. Uma das moléculas por elas criadas é o amido, polissacarídeo que lhes serve de reserva energética. É esse açúcar que lhes fornece energia à noite, permitindo-lhes crescer e se preparar para o novo amanhecer.

A dinâmica do amido parece simples: ao alvorecer, ele é escasso. Com o passar das horas, sua quantidade aumenta de dez a vinte vezes, resultado da assimilação de carbono por meio da fotossíntese. De noite, a quantidade da molécula diminui linearmente até atingir os baixos níveis do início. Se por algum motivo esse polissacarídeo falta, a planta sofre de estresse energético e tem seu crescimento afetado.

Um grupo de pesquisa liderado pela dra. Alison Smith, do John Innes Centre, na Inglaterra, fez um experimento para entender melhor a dinâmica do amido. Os pesquisadores adiantaram em quatro horas o anoitecer de plantas cultivadas em câmaras de crescimento e observaram, surpresos, que elas passaram a utilizar a molécula mais devagar, de forma a fazer render o estoque até o amanhecer. Apesar da noite abrupta, não houve estresse energético. No dia seguinte, as plantas passaram a acumular amido mais rapidamente, de modo a atingir, em um dia quatro horas mais curto, níveis mais altos do polissacarídeo de reserva para sobreviver a noites mais longas. O mais interessante é que ainda não sabemos exatamente como elas fazem isso.

Para que as plantas consigam racionar o amido, elas precisam saber quanto elas possuem e estimar de quanto tempo dispõem até o próximo amanhecer, para então calcular a taxa de uso da molécula. Sabemos como as horas do dia são estimadas: o relógio interno das plantas tem um ritmo semelhante aos ritmos ambientais de claro e escuro. O mesmo relógio circadiano é usado para a percepção do encurtamento do período diurno que prenuncia o inverno, ou seu alongamento, antes do verão.

Em seus experimentos, o grupo da dra. Smith também utilizou plantas com relógios circadianos defeituosos. Quando esse relógio marcava um dia com menos de 24 horas, isto é, era um relógio mais apressado, a reserva acabava antes da chegada do sol, tanto em dias normais quanto em noites estendidas. Ou seja: quando a percepção do tempo das plantas é alterada, elas não conseguem racionar direito a molécula durante a noite e sofrem de estresse energético. Plantas com o relógio biológico avariado fazem menos fotossíntese, usam mais água e acabam crescendo menos.

Os modelos matemáticos desenvolvidos para tentar entender melhor como ocorre o racionamento do amido ressaltam a importância do relógio circadiano no processo e mostram que as plantas precisam ter mecanismos para saber quanto desse polissacarídeo possuem, quanto estão utilizando ou o seu nível energético. Não sabemos ainda como elas fazem isso, nem como integram essas informações. Entender como as plantas gerenciam sua energia ao longo das horas é uma das grandes perguntas nessa área. A resposta não avança somente nosso conhecimento básico sobre esses complexos organismos, mas também pode nos ajudar a fazê-los crescer mais e melhor para nosso próprio benefício.

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Carlos Hotta estuda o relógio biológico das plantas e é professor associado do Instituto de Química da Universidade de São Paulo.

Sabemos que as crianças fazem as melhores perguntas, e que a ciência pode ter boas respostas para elas. Todo mês, a série “Perguntas de criança, respostas da ciência” convida um cientista a responder uma dessas questões fundamentais. Você tem uma sugestão de pergunta ou de pauta para o blog? Veja aqui como colaborar.

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Por que os humanos têm Alzheimer e os cães não? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/05/12/por-que-os-humanos-tem-alzheimer-e-os-caes-nao/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/05/12/por-que-os-humanos-tem-alzheimer-e-os-caes-nao/#respond Wed, 12 May 2021 10:15:50 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/caes_alzheimer-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=402 Por Eduardo Zimmer

A resposta pode estar nos astrócitos menos evoluídos dos nossos amigos

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Em 1820, a expectativa de vida dos humanos era de cerca de 33 anos. Hoje todo mundo conhece pelo menos uma pessoa centenária (ou conhece alguém que conhece…). Os progressos na área da saúde, associados ao processo evolutivo da espécie, permitiram que alcançássemos idades avançadas. Mas essa evolução tem seu preço: ela veio acompanhada de uma série de doenças relacionadas ao envelhecimento.

Para a pessoa viver a chamada terceira idade com qualidade de vida, é preciso entender essas moléstias que vêm se tornando cada vez mais prevalentes em idosos. O Alzheimer, por exemplo, é a principal causa de demência no mundo, e no Brasil afeta mais de 1 milhão de pessoas –número muitíssimo subestimado, segundo especialistas. Além disso, como não existem medicamentos que consigam impedir a progressão da doença, compreendê-la melhor é uma das prioridades mundiais da pesquisa em saúde.

Para entender essa patologia, nossos melhores amigos, os cães, que já nos ajudam a caminhar quando não enxergamos, a viajar de avião quando sentimos pânico, a nos recuperarmos de quadros neuropsiquiátricos, podem mais uma vez vir em nosso auxílio.

A expectativa de vida desses animais dobrou nos últimos trinta anos. Um cachorro de porte pequeno, que costumava viver cerca de nove anos, hoje pode chegar a espetaculares dezoito anos. Outro fato marcante é como eles vivem. Enquanto trabalho, acompanho o dia a dia da minha cachorra, Baleia (isso mesmo, uma homenagem ao livro “Vidas Secas” de Graciliano Ramos). A rotina dela é muita parecida com a minha: ela tem seus horários para comer, para passear, para dormir e para se distrair com seus brinquedos. No auge dos seus dez meses, ela já responde aos comandos, morre de medo da palavra “não”, e recentemente aprendeu a me avisar quando quer um biscoito.

Será que, quando velhos, esses cães “humanizados” podem desenvolver Alzheimer? Os cães até podem apresentar certo grau de declínio cognitivo, mas raramente manifestam os sintomas graves de demência que acometem a fase final da doença nos humanos. O que nos intriga, porém, é que eles, à semelhança dos humanos, acumulam grumos insolúveis da proteína beta-amiloide no cérebro –minúsculas “pedrinhas” que ajudam a caracterizar o Alzheimer. Acredita-se que essas “pedrinhas” atrapalhem a comunicação entre os neurônios, fazendo com que o cérebro atrofie e que apareçam os sintomas. Apesar da presença desses grumos, os cães não desenvolvem manifestações graves como nós. O que os torna resistentes? O que nos torna vulneráveis? Compreender as diferenças entre o cérebro humano e o canino pode ter grande utilidade para entender e até tratar as enfermidades que afetam o nosso cérebro.

Pouca gente sabe da existência do astrócito, uma célula cerebral que foi primeiramente descrita em meados do século 19 e parece ter evoluído muito mais nos humanos do que nos cães e em outros mamíferos. Em formato de estrela, essa célula especializada é muito abundante no cérebro humano: para se ter uma ideia, o córtex cerebral, que é a nossa região cerebral mais evoluída e que constitui 82% da massa do cérebro, parece ter mais astrócitos do que neurônios. Nos últimos anos, eles, que sempre foram considerados os auxiliares dos neurônios (o Robin da dupla), estão conquistando o papel de protagonista.

Diversos estudos têm demonstrado que essas células podem controlar nossa memória e cognição –cientistas têm conseguido manipular nossa capacidade de lembrar de algo ou não, somente as ativando e desativando. Seriam elas as responsáveis pela vulnerabilidade dos humanos ao mal de Alzheimer? As diferenças entre as características dos astrócitos dos humanos e dos cães podem ajudar, quem sabe, a responder essa pergunta. Uma resposta já temos de antemão –os cães, realmente, são os nossos melhores amigos.

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Eduardo Zimmer é bioquímico e professor no Departamento de Farmacologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Sabemos que as crianças fazem as melhores perguntas, e que a ciência pode ter boas respostas para elas. Todo mês, a série “Perguntas de criança, respostas da ciência” convida um cientista a responder uma dessas questões fundamentais. Você tem uma sugestão de pergunta ou de pauta para o blog? Veja aqui como colaborar.

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As ovelhas de um olho só https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/04/19/as-ovelhas-de-um-olho-so/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/04/19/as-ovelhas-de-um-olho-so/#respond Mon, 19 Apr 2021 15:55:21 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/serrapilheira_ilustracao_ovelhas_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=379 Por Rossana Soletti

Um caso curioso nos ajuda a responder por que temos dois olhos

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O livro infantil Somos todos extraordinários, da norte-americana R. J. Palacio, conta a história de um garotinho de um olho só que vive como um garoto comum, mas enfrenta olhares espantados e dedos apontados. Ele sabe que não pode mudar seu rosto, mas acredita que as pessoas possam mudar o modo como o enxergam. Terminada a leitura, minha filha de sete anos me perguntou: “Se o menino é extraordinário e se somos todos extraordinários, então por que nós nascemos com dois olhos”?

A pergunta pode ser simples, mas a resposta é um tanto complexa. Comecei por contar a ela uma outra história.

Na década de 50, numa fazenda no interior dos Estados Unidos as pessoas foram surpreendidas pelo nascimento de ovelhas com um olho só. O mistério das ovelhas ciclopes atraiu atenção e muitos palpites, ainda mais depois que outras ninhadas semelhantes aparecerem em fazendas vizinhas. Para resolver essa charada, convocaram os cientistas do Departamento de Agricultura, mas ninguém imaginava que seriam necessários tantos anos de investigação.

A primeira hipótese era de que uma doença genética estivesse causando as alterações, mas após uma série de cruzamentos feitos em laboratório, nada aconteceu: todas as ovelhas nasciam com dois olhos e o rosto típico da espécie. Os pesquisadores observaram então que o nascimento das ovelhas ciclopes obedecia a um padrão sazonal, além de ser restrito aos rebanhos que pastavam em altitudes elevadas.

Foi aí que surgiu a hipótese de que um fator ambiental pudesse estar interferindo na gestação daqueles animais. A identificação desse fator não ocorreu da noite para o dia, é claro. Cerca de dez anos e muitas análises depois, veio enfim a resposta: as ovelhas estavam consumindo uma planta herbácea nativa da região que provocava malformações na cabeça do feto, caso ingerida nas primeiras semanas de gestação.

Pronto, mistério resolvido: era só retirar a planta das pastagens e não nasceriam mais ovelhas ciclopes. Mas, assim como fazem as crianças, os cientistas sempre querem saber os porquês: por que a ingestão dessa planta provocava o nascimento de ovelhas com um olho só? Lá se foram mais alguns anos de pesquisa até o isolamento e a caracterização dos constituintes químicos da planta, com a identificação do culpado, nomeado de ciclopamina.

E foi somente três décadas depois que a outra peça do quebra-cabeças foi desvendada e as coisas começaram a se encaixar: pesquisadores observaram que para o correto desenvolvimento do cérebro, dos olhos e de outras estruturas da face dos animais (incluindo os seres humanos), as células do embrião precisam receber informações, na hora certa, de proteínas que agem como guias sinalizadores em uma via chamada Hedgehog, ou Hh. Quando o embrião ainda é muito menor do que um grão de arroz, os sinalizadores da via Hh atuam nas células que ficam no meio da face, levando as instruções para que elas migrem lateralmente, proliferem e estabeleçam dois campos visuais. Caso essa via seja bloqueada, diversas malformações cerebrais e faciais podem ocorrer, como a ciclopia. E quem é que pode bloquear a via Hh? Eureka, é a ciclopamina!

Tantas décadas de pesquisa e de descobertas nos trouxeram entendimentos que vão além dos processos necessários para a formação dos olhos e da face de ovelhas, ratos ou seres humanos. Compreender o modo como as células se comunicam nos ajuda também a pensar em tratamentos para reajustar células com erros na sinalização. Hoje sabemos que em algumas células tumorais a via Hh pode estar ativada em excesso, e por isso inibidores dessa via, parecidos com a ciclopamina, já são utilizados no tratamento de um tipo de câncer de pele e estão sendo testados para vários outros tipos de câncer.

Assim como na ficção do menino que com apenas um olho nos mostra a beleza da diversidade, a construção do conhecimento científico pode nos levar a caminhos extraordinários.

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Rossana Soletti é professora da UFRGS Litoral e atua principalmente em oncobiologia, morfologia e divulgação científica.

Sabemos que as crianças fazem as melhores perguntas, e que a ciência pode ter boas respostas para elas. Todo mês, a série “Perguntas de criança, respostas da ciência” convida um cientista a responder uma dessas questões fundamentais. Você tem uma sugestão de pergunta ou de pauta para o blog? Veja aqui como colaborar.

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Quantas pedras há na orla de Copacabana? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/03/17/quantas-pedras-ha-na-orla-de-copacabana/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/03/17/quantas-pedras-ha-na-orla-de-copacabana/#respond Wed, 17 Mar 2021 10:03:14 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/orla_serrapilheira_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=352 Por Edgard Pimentel

Talvez seja isso que Drummond, sentado perto do forte, esteja tentando responder

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A praia de Copacabana se mistura à história da matemática: foi lá que Stephen Smale vislumbrou uma certa ferradura muito especial. É lá também que o olhar de Carlos Drummond de Andrade, sentado perto do forte, perde-se ao longe. Com todo o tempo do mundo disponível, será que ele estaria tentando quantificar o verso e responder, afinal, quantas pedras há no meio do caminho?

O calçadão da orla de Copacabana se estende por 4 quilômetros, cobertos por um desenho feito de pedras brancas e pretas que acabou virando um cartão-postal da cidade. Quantas pedras há no calçadão de Copacabana? Como podemos contar quantas pedras há nessa orla?

A primeira estratégia para resolver o problema é contar uma por uma. Mas seus inconvenientes são óbvios: a temperatura pode não ser a mais amena e sempre há o risco de se distrair com a beleza do entorno. Sem contar que requer uma paciência de Jó.

Tentemos outro método. Suponha que a largura do calçadão seja de 4 metros. E vamos supor que ele tem a forma de um retângulo. Assim, sua área seria de 16 mil metros quadrados. Já que no calçadão cabem 16 mil quadrados de 1 metro cada lado, vamos nos concentrar em um deles. Para simplificar, vamos chamar estes quadrados menores de unitários.

A ideia é simples: se soubermos quantas pedras há em um quadrado unitário, basta multiplicar a resposta por 16 mil e teremos uma estimativa para o calçadão inteiro. Aqui, o exercício se reduziu a contar quantas pedras há em uma área (bem) menor.

Vamos fazer uma estimativa sem sair de casa. Suponha que cada pedra seja perfeitamente quadrada, com lados de 5 centímetros. Assim, haveria 400 delas em cada quadrado unitário. E no calçadão inteiro haveria algo como 6,4 milhões de pedrinhas. Mas tem um detalhe crucial: a conta só funciona se todas as pedras tiverem o mesmo formato e as mesmas medidas. Uma hipótese muito forte, talvez.

Uma alternativa é atribuir probabilidades às formas e tamanhos das pedras. Um metro quadrado corresponde a 10 mil centímetros quadrados. A ideia é cobrir 10 mil centímetros quadrados com pedras de 25, 16, e 9 centímetros quadrados, e um ‘resto’. Vamos supor que 20% das pedras sejam as de 25 centímetros quadrados, 40% delas sejam as de 16 centímetros quadrados e outros 20% sejam as de 9 centímetros quadrados.

Este cenário requer 80 pedras de 25 centímetros quadrados (pra cobrir 2 mil dos 10 mil centímetros quadrados), 250 pedras de 16 centímetros quadrados e 222 pedras de 9 centímetros quadrados. O total já está em 552 pedras e ainda faltam 2 mil centímetros quadrados a serem cobertos. Estes 2 mil centímetros quadrados da nossa ignorância são cobertos por pedras de vários tamanhos, e pelo rejunte entre elas (por melhor que seja o mestre calceteiro, sempre há lá qualquer coisa). Digamos que existam aqui outras 150 pedras, elevando o total para 702. O total do calçadão passa a 11 milhões e 232 mil pedras!

Fazer variar a ocorrência de cada formato de pedra trará resultados diferentes. Mas qualquer ocorrência suposta a priori pode implicar erros gigantescos. Afinal estamos a multiplicar o que não sabemos por números como 16 mil!

Vamos tentar algo empírico –vamos pra rua! Ao caminhar pela orla, podemos nos deter, delimitar 1 metro quadrado e contar quantas pedras há nele. Após 500 metros, repetimos o experimento. Ao final do calçadão, teremos oito amostras. Podemos calcular a média e multiplicar por 16 mil. Pelas minhas contas, teríamos 8 milhões e 128 mil pedras. Uma vez mais, há problemas: se uma reforma recente alterou o padrão da calçada, os dados podem produzir erros.

Outra estratégia envolve ter à mão um computador e pedir ajuda à inteligência artificial. O plano é ensinar a máquina a contar pedras a partir de uma foto de alta resolução. Com um drone, sobrevoamos o calçadão e tiramos diversas fotografias. Alimentamos o computador com tais imagens e perguntamos a ele quantas pedras há. Claro que uma sombra fora de lugar ou um passarinho podem produzir distorções na análise. E o custo computacional pode ser elevadíssimo. Mas talvez não seja má ideia.

Uma resposta definitiva parece impossível. E talvez irresponsável. Mas refletir sobre uma questão assim é como caminhar na orla: independentemente de onde se chega, o caminho é o que mais importa.

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Edgard Pimentel é matemático e professor da PUC-Rio.

Sabemos que as crianças fazem as melhores perguntas, e que a ciência pode ter boas respostas para elas. Todo mês, a série “Perguntas de criança, respostas da ciência” convida um cientista a responder uma dessas questões fundamentais. Você tem uma sugestão de pergunta ou de pauta para o blog? Veja aqui como colaborar.

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