Ciência fundamental https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br O que pensam os jovens cientistas no Brasil? Thu, 02 Dec 2021 15:29:05 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 A forma mais perfeita de comunicação https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/11/13/a-forma-mais-perfeita-de-comunicacao/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/11/13/a-forma-mais-perfeita-de-comunicacao/#respond Sat, 13 Nov 2021 10:23:16 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/luna-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=585 Por Pedro Lira

Na matemática, Luna Lomonaco busca dar sentido à aleatoriedade

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Quem via Luna Lomonaco na creche, aos quatro anos, escrevendo cartas de amor em nome dos colegas –era a única da sala que já sabia ler e escrever–, poderia apostar que aquela criança de olhos atentos e pensamento rápido seguiria carreira literária. Não foi bem assim. Interessada em questões filosóficas sobre a vida, ela decidiu cursar matemática para buscar respostas nos números, segundo ela “a forma mais perfeita de comunicação”. 

Mas a relação com a disciplina nem sempre foi harmoniosa. Nascida nos arredores de Milão em 1985, e criada numa cidadezinha perto de Verona, no ensino médio Lomonaco optou pelo clássico –estudou línguas, literatura, filosofia. Então resolveu cursar matemática, acreditando que a disciplina poderia responder a questões fundamentais da humanidade, como “o que é a verdade?”. “Cheguei na graduação com ideias filosóficas. Com 19 anos eu era muito sem noção”, brinca. 

No primeiro ano na Universidade de Pádua, sentiu um choque. Ela, que sempre fora a primeira da turma, não conseguia acompanhar as aulas de exatas. “Se você é parte de uma minoria social e te falta conhecimento, as pessoas te tratam como burro. Por eu ser mulher na matemática e não ter aprendido certos conceitos da área no ensino médio, me convenceram de que eu era ruim.” Mesmo com as adversidades e a tentação de voltar a estudar filosofia, o orgulho e a paixão falaram mais alto e ela não desistiu. 

Lomonaco conseguiu uma bolsa Erasmus para estudar na Espanha. Financiada pela Comissão Europeia, a bolsa é parte de um programa que permite a mobilidade de alunos do ensino superior pela Europa. “Eu era ótima em línguas mortas, como latim, mas não tão boa nas outras. A escolha da Universidade de Barcelona foi fácil pois espanhol é a língua mais próxima do italiano”, confessa. 

Sua relação com os números se consolidou. “Os professores respondiam minhas perguntas e eu já não era tratada como inferior”, lembra. Voltou a Pádua apenas para se formar e retornou à Espanha; engatou no mestrado, também em Barcelona. Dez dias depois da defesa da dissertação, partiu para Dinamarca, para um doutorado na Universidade de Roskilde. 

O clima frio e as relações humanas distantes dificultaram a vida da pesquisadora, apaixonada por interações sociais. Mas foi lá que ela engatou uma parceria com o matemático Carsten Lunde Petersen. O artigo que escreveram juntos rendeu à italiana o prêmio da Sociedade Brasileira de Matemática (SBM), que reconhece o melhor trabalho original de pesquisa na área. E não só: foi na Dinamarca que conheceu um pesquisador holandês de física teórica, com quem se casou. Seguem juntos, agora nos trópicos. 

O doutorado não foi suficiente para Lomonaco. Ainda com dúvidas fundamentais sobre a matemática pura, ela conseguiu uma bolsa da Academia Chinesa de Ciências. A experiência na Ásia foi libertadora. “Pela primeira vez senti que podia trabalhar no meu ritmo, sensação desconhecida na Europa”, conta. Mas não só isso. Foi lá que a italiana viu o mundo com outros olhos. “Eu percebi que tinha uma visão limitada, eurocêntrica. Ir trabalhar na China abriu muito meus horizontes.” 

A partir de então não quis mais saber do continente europeu. Ainda na China, um professor lhe recomendou que procurasse uma vaga na Universidade de São Paulo. “Passar no concurso da USP foi um dos momentos mais felizes da minha carreira”, ela relembra. 

Especialista em sistemas dinâmicos, Lomonaco estuda o conjunto de Mandelbrot, um tipo de forma geométrica determinada por fórmulas matemáticas que consegue dar sentido a eventos aparentemente aleatórios. Hoje é uma autoridade em dinâmica complexa, campo da matemática dedicado à investigação dos fenômenos caóticos. “No Brasil, minha carreira progrediu de uma forma que nunca poderia ter imaginado.” 

Atualmente docente do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, no Rio de Janeiro –uma das duas mulheres no quadro com 48 pesquisadores–, Luna Lomonaco é um nome de peso na matemática brasileira. Em 2018 recebeu o prêmio Para Mulheres na Ciência, promovido pela L’Oréal, Unesco e Academia Brasileira de Ciências. O programa, que visa favorecer o equilíbrio de gênero na pesquisa brasileira, apoia nomes de destaque em diferentes áreas da ciência. 

Ela também foi a primeira mulher a ganhar o Prêmio da Sociedade Brasileira de Matemática e o Reconhecimento Umalca, distinção internacional que homenageia pesquisadores de excelência na América Latina e Caribe. Na cerimônia, Lomonaco dedicou a honraria a todas as mulheres cientistas.

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Pedro Lira é jornalista e social media no Instituto Serrapilheira.

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O paradoxo do baixo peso ao nascer https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/09/14/o-paradoxo-do-baixo-peso-ao-nascer/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/09/14/o-paradoxo-do-baixo-peso-ao-nascer/#respond Tue, 14 Sep 2021 10:12:33 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/marcel-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=529 Por Marcel Ribeiro-Dantas

Ajustes bem-intencionados podem nos levar a estimativas erradas

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A taxa de mortalidade em recém-nascidos é maior entre aqueles que nascem com baixo peso. Recém- nascidos de mães fumantes têm maior chance de nascer com baixo peso. Paradoxalmente, recém-nascidos com baixo peso cujas mães são fumantes têm uma taxa de mortalidade menor que recém-nascidos com baixo peso de mães não fumantes. Então fumar é bom?

O bioestatístico Jacob Yerushalmy, israelense naturalizado americano, apresentou esse argumento pela primeira vez em 1964, quando já havia o consenso de que o cigarro era prejudicial à saúde. Mas apenas em 2006 esse paradoxo foi satisfatoriamente explicado –Yerushalmy havia morrido mais de três décadas antes.

Os dados que o pesquisador havia recolhido não eram fruto de uma olhadinha superficial, já que ele foi responsável por um estudo com mais de 15 mil crianças em São Francisco, nos Estados Unidos. Vários estudos já mostravam que recém-nascidos de mães fumantes pesavam menos e, como o baixo peso estava associado a um maior risco de óbito, se esperava que isso implicasse uma mortalidade maior. O próprio Yerushalmy discutiu esse assunto com cautela, mal acreditando no que os números lhe diziam.

Cerca de duas décadas mais tarde, o americano David Sackett, um dos pais da medicina baseada em evidência, se deparou com um problema semelhante. Ao analisar 257 pacientes hospitalizados, ele detectou uma associação estatística forte entre aqueles com doenças locomotoras e doenças respiratórias, ou seja, era possível fazer predições sobre uma das condições ao saber se o paciente tinha tido a outra. Havia plausibilidade nesse achado, já que doenças locomotoras podiam levar a inatividade, o que poderia acarretar um quadro de doença respiratória. Sabemos, porém, que correlação não implica causalidade. Em um episódio nos Estados Unidos, por exemplo, foi observado que sempre que a venda de sorvete aumentava, havia mais ataques de tubarão. Estaria o consumo de sorvete provocando os tubarões!? Não! No verão as pessoas compram mais sorvete e vão mais à praia. Já no inverno, se ninguém entra na água, o tubarão fica a ver navios.

Foi por compreender a possibilidade de existência de vieses nos dados hospitalares que Sackett repetiu sua análise com 2783 indivíduos, incluindo pacientes não hospitalizados. Para sua surpresa, se antes havia uma correlação forte –centenas de pacientes acompanhados de perto, plausibilidade biológica–, agora as duas condições pareciam não ter nada a ver uma com a outra. (Lembre-se que o número de indivíduos na primeira análise não era desprezível: foram mais de 15 mil as crianças estudadas por Yerushalmy.)

O fenômeno que ocorreu nesses dois estudos é conhecido como viés de colisão. O termo colisão vem da representação gráfica das relações causais: A → B ← C. A e C causam B e as setas “colidem” em B. Em algumas análises de dados, existem razões para ajustarmos nossas medidas com base em certas condições –como por exemplo não misturar alhos com bugalhos, ou seja, não comparar laranjas com bananas. Esse tipo de intuição leva muitos pesquisadores a achar que devem ajustar suas variáveis de interesse por todas as demais variáveis medidas, como se mais sempre fosse melhor.

Hoje, no entanto, é sabido que algumas variáveis, chamadas colisoras, não precisam ser ajustadas, e que se forem irão causar o efeito contrário: enviesar a análise, em vez de remover viés. O que Sackett fez foi ajustar por uma variável colisora: hospitalização (doenças locomotoras → hospitalização ← doenças respiratórias). Em alguns casos pesquisadores não escolhem estudar apenas pacientes hospitalizados: investigam o que está ao seu alcance. Já Yerushalmy tomou a decisão de observar apenas crianças que nasceram com baixo peso (fumar durante gestação → baixo peso ← outras causas para baixo peso).

Um raciocínio que elucida o paradoxo do baixo peso ao nascer é que existem várias razões que podem causá-lo, como anomalias genéticas graves, com um efeito negativo mais forte que o provocado por mães fumantes durante a gestação. Digamos, hipoteticamente, que 10% dos bebês com baixo peso ao nascer, filhos de mães fumantes, irão a óbito, mas que outras causas para o baixo peso levam ao óbito em 50% dos casos. Nesse caso é melhor ter baixo peso porque a mãe fumou do que por outras causas mais graves (e cujas mães não fumavam). Isso não significa que é melhor fumar, mas que nesse caso específico (nascer com baixo peso) existem causas mais letais. Se considerarmos todos os bebês, com baixo peso ou não, a mortalidade é muito menor em bebês de mães que não fumaram. Já no caso de Sackett, pacientes graves eram hospitalizados. Ao observar não só pacientes hospitalizados, era possível ver o dado sem viés, isto é, que as duas condições tinham uma relação muito fraca entre elas, se é que existia.

Esse paradoxo por muito tempo nos intrigou e, mesmo solucionado, sua mensagem principal segue pouco conhecida:  ao contrário da crença de que quanto mais variáveis ajustadas melhor, existem aquelas cujo ajuste pode enviesar a análise.

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Marcel Ribeiro-Dantas é pesquisador no Institut Curie, parte da PSL Research University e doutorando na Universidade Sorbonne, onde pesquisa Inferência Causal em dados observacionais da área de saúde.

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Os dados (não?) mentem https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/07/16/os-dados-nao-mentem/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/07/16/os-dados-nao-mentem/#respond Fri, 16 Jul 2021 13:16:43 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/imagem-ciência-de-dados-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=480 Por Edgard Pimentel

Correlações, causalidades e conclusões espúrias

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Uma boa estratégia para obter informações sobre o mundo, e se preparar pra enfrentá-lo, é observar. Dar uma conferida no tempo e apanhar um guarda-chuva, olhar pros lados antes de atravessar a rua. Buscamos os dados, analisamos e tomamos decisões. O processo parece simples, mas às vezes é bem complicado. Os dados podem ser muitos, são passíveis de imprecisões, os métodos de análise nem sempre se revelam os mais adequados e, sobretudo, nossa pergunta pode estar errada. Afinal, contra dados, há argumento?

Tales de Mileto, reputado por inaugurar uma cosmologia independente dos mitos, é também referido como um ávido observador –segundo a lenda, ele chegou a cair num poço enquanto caminhava observando as estrelas. Mas, munido de dados, ele teria previsto um eclipse e determinado a data dos solstícios. E, segundo Aristóteles, ele teria prenunciado colheitas favoráveis e até concluído que a Terra era redonda.

Não estava sozinho, Tales. Hiparco, Eratóstenes e Ptolomeu são apenas alguns que reuniram observações e dados para responder a perguntas fundamentais sobre o mundo. A acurácia do modelo ptolomaico é impressionante, mesmo operando sob a hipótese do geocentrismo. A própria queda do paradigma geocêntrico e a revolução copernicana, ou as leis de Kepler, se beneficiaram dos dados obtidos pelo dinamarquês Tycho Brahe no complexo situado na ilha de Ven.

Nestes casos, um conjunto de observações levou a previsões. Mas não é clara a conexão entre os dados e os fenômenos previstos. Teria sido causalidade? Será que condições meteorológicas no inverno causariam boas colheitas nas estações seguintes? Ou apenas haveria uma forte correlação entre estes fatos?

Causalidade é sutil, e está ligada à ideia de implicação. Aparece quando um fato leva a outro: uma bola de bilhar se choca com outra e causa seu movimento; o vapor numa caldeira aciona um mecanismo. No universo dos dados a ideia é a mesma. Suponha que aumentos nos gastos do governo causem aumentos do nível de demanda agregada, e por consequência do emprego. Então, sempre que os dados indicarem que houve o primeiro, podemos esperar pelo segundo. Mais ainda, podemos usar o primeiro para produzir o segundo. Causalidade está muito próxima da ideia de uma regra, ou um modelo.

Correlação é diferente. Pode ser fruto da causalidade ou mero produto do acaso –e pode ser espúria! No livro “Spurious Correlations”, Tyler Vigen reúne exemplos divertidos de correlações. O número de doutores em engenharia civil nos EUA é altamente correlacionado ao consumo de queijo muçarela. Já o número de doutores em ciência da computação é fortemente correlacionado às vendas de HQs. Um favorito: o número de estudantes matriculados nas universidades norte-americanas corresponde quase perfeitamente ao número de acidentes domésticos causados por quedas de televisores.

E daí? Ora, correlações elevadíssimas podem ocorrer mesmo entre fatos não relacionados. E podem ser úteis: se soubermos que no próximo ano haverá muitos doutores em engenharia, será que vale a pena investir em muçarela? E se aumentar o número de calouros nas universidades, não seria o caso de prestar mais atenção aos televisores em casa? Não que exista uma regra que prescreva a relação entre estes fatos. Ainda assim, olhar pros dados pode nos indicar um caminho.

Até aqui a discussão é, digamos, platônica; os dados estariam corretos e descreveriam exatamente o que esperamos. Na realidade, as coisas não funcionam bem assim. Veja os censos do IBGE de 1991 e 2000. Os dados de cada questionário (microdados) contêm informação muito valiosa. Em particular, nos permitem comparar várias dimensões da vida econômica e social no país em dois momentos. Mas há alguns detalhes.

A moeda nacional não era a mesma em 1991 e 2000, tampouco o número de municípios no país. Ou seja, apesar da correção dos dados e do exame de analistas muito experientes, há sutilezas que podem levar a imprecisões se os atores do processo não estiverem articulados. Como no caso recente sobre vacinas supostamente vencidas, em que um esforço multidimensional para informar levou profissionais a revisitar dados e conclusões, e a forma como eles são obtidos. Do ponto de vista da análise de dados, o aprendizado e o refinamento que resultam desses processos se tornam patrimônio social e melhoram a vida das pessoas.

Seja pela causalidade, seja por meio de correlações inimagináveis, ou até pela estranheza das conclusões, os dados estão lançados. Basta perguntar.

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Edgard Pimentel é matemático e professor da PUC-Rio.

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Elementar, senhores juízes: a matemática e a espionagem https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/07/08/elementar-senhores-juizes-a-matematica-e-a-espionagem/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/07/08/elementar-senhores-juizes-a-matematica-e-a-espionagem/#respond Thu, 08 Jul 2021 10:35:35 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/enigma-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=470 Por Edgard Pimentel

A criptografia no sistema de justiça

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O trabalho de um matemático é parecido com o de um detetive, um espião ou um promotor. Em matemática, começamos com algumas suspeitas, certas pistas e um pouco de intuição. Depois de um tempo vem a descoberta e as evidências que a sustentam. Mas o sentido inverso desta comparação pode ser bem interessante: a matemática dos agentes secretos, da segurança nacional e até mesmo dos tribunais.

Mensagens secretas existem desde que as pessoas começaram a se comunicar. E a necessidade de proteger seus conteúdos está na origem de uma importante área da matemática, a criptografia. Este conjunto de técnicas tem dois objetivos, duais: de um lado, desenvolver regras que permitam codificar mensagens com segurança; do outro, obter estratégias para quebrar esses códigos.

Um exemplo elementar é a chamada cifra de César, que o historiador romano Suetônio assim descreveu: escreve-se a mensagem secreta e então substituem-se as letras A por D; B por E; C por F, e assim por diante. Substituímos uma letra qualquer por aquela que ocupa três posições adiante no alfabeto. Mas e quando as letras acabam? O que fazer com o X ou o Z? Simples: o X será substituído por A; o Y será trocado por B, e o Z por C. Ora, identificar o fim e o início de uma lista está bastante presente na matemática. A noção de aritmética modular, ou congruência, devida ao alemão Gauss, é uma formalização desta ideia.

A cifra de César é um exemplo de criptogafia por substituição. Um modo de fortalecer uma cifra de substituição é recorrer a mais de um alfabeto (letras e números, digamos), a chamada cifra polialfabética. Um bom exemplo é a cifra de Hill, que associa cada letra a um número e usa álgebra linear para produzir mensagens cifradas por meio da multiplicação de matrizes. São polialfabéticos os sistemas de criptografia Enigma e Purple que a Alemanha e o Japão utilizaram na Segunda Guerra Mundial.

Mais recentemente, matemática de extrema sofisticação entrou em campo. Descobriu-se que um sujeito capaz de guardar segredos é o logaritmo discreto (não se trata de uma piada!). O logaritmo discreto pode ser definido em qualquer grupo. E calculá-lo em alguns grupos pode ser muito difícil. Assim, um código cuja chave depende de resolver logaritmos discretos sobre estes grupos é mais difícil de ser quebrado. Aqui, entram em cena números primos muito (muito!) grandes e curvas que nos lembram a orla de Copacabana.

Decifrar mensagens secretas é descobrir verdades, e este exercício se manifesta também nos tribunais. A admissão de evidências baseadas em DNA deve-se à teoria das probabilidades. Os treze pares de genes usados para identificação variam tanto que a chance de duas pessoas distintas dividirem os mesmos pares é inferior a 1 em 400 trilhões. Já a análise estatística dos fragmentos de alguns projéteis foi utilizada para tentar responder se havia ou não um segundo atirador em Dallas, naquela sexta-feira de novembro de 1963.

Mas se servir da matemática nos tribunais não é unanimidade. Em artigo publicado na “Harvard Law Review”, Laurence Tribe, que é professor emérito de direito constitucional naquela universidade, trata o tema com cautela. O problema? O uso da matemática como peça infalível poderia acarretar erros no sistema de justiça.

No fim do século XIX, o militar francês Alfred Dreyfus foi acusado de fornecer informações secretas ao exército alemão. A análise estatística de sua grafia em um memorando comprovaria sua culpa. Em 1904, os matemáticos Darboux, Appel e Poincaré entraram em campo e revisitaram a análise estatística da tal grafia. A conclusão desses notáveis foi que a análise era amadora e decorria do mau uso das probabilidades. E estava equivocada.

Mas o recado deste trio é muito mais profundo: para ser útil de verdade, e melhorar a vida das pessoas inclusive em dimensões secretas, a matemática precisa ser feita (e usada) com decoro.

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Edgard Pimentel é matemático e professor da PUC-Rio.

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Dois rabinos se encontram na lousa https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/05/29/dois-rabinos-se-encontram-na-lousa/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/05/29/dois-rabinos-se-encontram-na-lousa/#respond Sat, 29 May 2021 10:24:41 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/catarina-talmud-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=428 Por Edgard Pimentel

Um passeio pela matemática na tradição judaica

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Pensar matemática (ou sobre ela) é natural. Como consequência, várias sociedades se dedicaram ao tema, ao longo dos tempos. Por exemplo, são diversas as contribuições dos gregos e os avanços da matemática árabe. Há ainda os feitos da matemática oriental, e a matemática subsaariana, que informa a matemática egípcia, ou o conhecimento matemático pré-colombiano. E há a tradição matemática judaica.

O Talmud, palavra que em hebraico significa estudo, é um conjunto de livros que abordam diversos aspectos da vida judaica. Escrito ao longo dos séculos 1 e 6 e impresso pela primeira vez na Veneza do século 16, ele é composto de seis grandes partes que se desdobram em mais de sessenta tratados. De forma muito simplificada, a obra registra a Torá oral e sua interpretação.

Uma das discussões no Talmud é sobre o número Pi, que é definido como a razão entre o comprimento de uma circunferência e seu diâmetro. Este número aparece em situações variadas, da engenharia civil à navegação aeroespacial, passando pelas telecomunicações. No Talmud, pode-se ler que um círculo cuja circunferência é igual a três palmos terá um palmo de diâmetro. Ou seja, que o número Pi é igual a 3. O surpreendente é que o texto parece antecipar a incorreção de tal assertiva, e como justificativa cita o livro bíblico de Reis I. É aqui que um quebra-cabeça importante se instala.

Por um lado, o texto bíblico afirma que Pi vale 3; por outro, os sábios, ou rabinos, do Talmud conhecem aproximações de Pi que contrariam este fato. Mais ainda, suspeitam ser impossível determinar este número de modo cabal. Como conciliar a afirmação bíblica –supostamente blindada– e o conhecimento disponível sobre o tema? Inúmeras tentativas se apresentam, mas a mais curiosa sustenta que a escolha do valor 3 serviria para simplificar os cálculos: seria mais fácil entender um valor “redondo”. Mais ainda: para finalidades rituais, o valor 3 seria suficiente.

É apenas em 1168 que um dos principais intelectuais da tradição judaica medieval, Maimônides, oferece uma resposta ao dilema de seus antecessores. Em um de seus comentários ao Talmud, Maimônides afirma que o número Pi é irracional, que 3,14 é uma aproximação conhecida “e aceita pelas pessoas educadas”, e finalmente decide que, uma vez que conhecer o número todo é impossível, a escolha por utilizar sua parte inteira –ou seja, o número 3– era justificada.

A importância de Maimônides para a matemática judaica extrapola este caso particular. Em seu Guia dos Perplexos, ele menciona –sem demonstrar– propriedades geométricas que havia aprendido na versão em árabe das Cônicas, de Apolônio. Como esta obra não havia sido traduzida para o hebraico, matemáticos da tradição judaica se dedicaram a estabelecer, de forma independente, tais propriedades. Surgiram então, variadas demonstrações dos fatos mencionados por Maimônides.

O interesse da intelectualidade judaica pela matemática pode ter se iniciado a partir de questões da observância religiosa –para saber, por exemplo, como construir estruturas de acordo com os preceitos da tradição. Mas rapidamente tornou-se independente. Em 1321, Levi ben Gershon publica a obra Maaseh Hoshev [A arte de calcular]. Em muitos aspectos, este texto parece aqueles utilizados hoje: uma parte teórica, seguida de aplicações e uma lista de problemas.

Antes ainda, Ibn Ezra, em seu Livro dos Números, de 1146, fornece diversos exemplos para discutir importantes fatos sobre séries numéricas. E também no século 12 é Abraham Bar Hiya que nos ensina a calcular a área do círculo tratando-o como um… triângulo! Bar Hiya pensava o círculo como um disco de vinil: se o cortássemos longitudinalmente e abríssemos suas ranhuras, teríamos um triângulo cuja altura é o raio do círculo e cuja base é seu diâmetro. Seu método foi formalizado rigorosamente apenas na década de 90 do século passado.

Na tradição judaica, a matemática aparece de diversas maneiras: no estudo do número Pi, no interesse por somas e aproximações de números importantes, na busca pelo pensamento rigoroso, e em muitos outros níveis. A propósito, como em qualquer sociedade, em qualquer ponto do tempo.

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Edgard Pimentel é matemático e professor da PUC-Rio.

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Calculando o futuro da Amazônia https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/04/27/calculando-o-futuro-da-amazonia/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/04/27/calculando-o-futuro-da-amazonia/#respond Tue, 27 Apr 2021 10:30:31 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/ilustracao_hirota_serrapilheira_02-300x215.png https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=387 Por Pedro Lira

O xis da questão pode estar nas partes mais desmatadas

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Com a escalada do desmatamento na Amazônia –segundo o INPE, ele cresceu 34% em um ano–, os períodos de seca na região, além de mais intensos, estão mais longos. Estudos recentes apontam que um terço da umidade da Amazônia provém da floresta e, desse total, mais da metade é oriunda da transpiração das árvores. A situação cada vez mais preocupante impele os cientistas a investigar até que ponto a floresta consegue suportar a seca.

A matemática Marina Hirota, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), utiliza uma abordagem inovadora para encontrar os limites de sobrevivência das mais de 40 mil espécies de árvores espalhadas pelo bioma. Valendo-se de modelos matemáticos, ela aposta na heterogeneidade dos ecossistemas para prever o futuro da Amazônia.

Considerando variáveis específicas, seu grupo busca avaliar a resistência da floresta a períodos prolongados de seca. O sistema atual mede a velocidade de superação da planta –depois da seca, de quanto tempo ela necessita para se reerguer? “Nós vamos fazer diferente”, ela destaca. Ou seja: os pesquisadores vão estimar até quando a planta fica de pé antes de sucumbir.

Os cientistas elaboraram um projeto que parte das plantas para entender como o clima ameaça a vegetação. Ao contrário do método de downscaling –que parte do clima para entender seu impacto na floresta–, tradicionalmente usado na ecologia, o upscaling faz um caminho em outra direção e analisa em quais condições de escassez de chuvas a floresta pode colapsar. Hirota esclarece: “Pegamos uma comunidade altamente estudada, ou seja, recortes de 10m x 30m da floresta, e por meio de um modelo matemático tentamos reproduzi-la para a bacia toda” –que tem mais de 5 milhões de quilômetros quadrados.

Mas com os incêndios e desmatamentos batendo recordes, por que apostar na seca? Hirota explica que este mediador é apenas o primeiro passo no vasto estudo de resiliência. “Com as adaptações necessárias das variáveis, essa ferramenta que estamos criando pode ser usada para prever outros impactos florestais, como os incêndios.”

Para a professora, as consequências das queimadas, seca e desmatamento são incontestáveis, embora seu resultado na floresta talvez não seja tão óbvio como possa parecer ao leigo. “Pensando na bacia inteira, a Amazônia é muito grande e heterogênea, não dá para dizer se ela vai se transformar numa enorme savana. Acho uma conclusão incerta, sobretudo se considerarmos as respostas de diferentes regiões da Amazônia a mudanças”, ela diz. “Mesmo que a floresta chegue a seu extremo, essas regiões ainda poderão sustentar uma floresta, ainda que de um tipo diferente da que conhecemos hoje.”

Hirota acredita que as áreas mais desmatadas –nas regiões leste, nordeste e sudeste da floresta– podem guardar o futuro da Amazônia. “Queremos testar a hipótese de que essas regiões, as menos estudadas e em geral os maiores alvos de desmatamento, influenciam diretamente na resiliência do bioma como um todo.”

Se sua hipótese se provar certa, nossos olhos deveriam estar voltados para essas partes mais desmatadas do território, e não para as regiões ainda virgens. A pesquisadora explica que, cortando-se uma árvore no sul da Amazônia, por exemplo, o sudeste da floresta também sofre, já que as regiões estão conectadas pelo fluxo de umidade e o sistema natural do amortecimento dos períodos de seca do bioma. “Tentamos dizer para quem implementa políticas de preservação que esses são lugares que precisam ser estudados. O conhecimento dessas plantas vai nos ajudar a prever o que vai acontecer com a Amazônia no futuro.”

Para investigar um ecossistema tão diverso, a equipe não poderia ser diferente. No grupo, quase integralmente brasileiro, matemáticos, físicos e economistas com um pé na biologia se uniram para pensar soluções para a maior floresta tropical do mundo –sempre em diálogo com os saberes tradicionais e comunidades locais. “Essa diversidade de ideias ajuda na abordagem de baixo para cima que usamos, o upscaling. Tem sido uma experiência maravilhosamente desafiadora”, conclui Hirota.

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Pedro Lira é jornalista e social media no Instituto Serrapilheira

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Uma guerra sob nossos pés https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/03/24/uma-guerra-sob-nossos-pes/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/03/24/uma-guerra-sob-nossos-pes/#respond Wed, 24 Mar 2021 10:04:19 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/raizes-larissa-ribeiro-wide-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=358 Por Pedro Lira

Embaixo da terra, plantas travam briga silenciosa por água e minerais

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Como estudar a parte da vegetação que se esconde no subsolo? O crescimento das raízes das plantas se pauta por alguma regra? Pesquisadores do Brasil, Espanha e EUA se uniram para responder a essa questão fundamental da ecologia e as conclusões foram surpreendentes. As árvores competem entre si e “calculam” como e onde suas raízes devem crescer, de acordo com a proximidade das plantas vizinhas –e concorrentes.

A lógica é simples. Uma planta só vai expandir suas raízes se os recursos naturais no ponto onde ela se encontra forem suficientes para lhe gerar benefícios. Quem explica é um dos principais autores do estudo, o físico Ricardo Martinez-Garcia, docente no Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e no Instituto Sul-Americano de Pesquisa Fundamental, em São Paulo. “É mais custoso para uma planta absorver recursos a dois metros de seu caule do que a dez centímetros dele, pois, como ela não pode se deslocar, é necessário produzir uma raiz mais longa.” Ou seja, ela precisa ponderar custos e ganhos.

O grau de complexidade aumenta se houver uma segunda planta nos arredores, quando então as duas passam a competir pelos recursos disponíveis. Imagine certa quantidade de água em determinado ponto, que fica a dois metros de uma planta e a meio metro de outra. Mesmo que as duas plantas dividissem essa água disponível de maneira idêntica, a mais próxima da fonte a obteria a um custo menor.

Os pesquisadores chegaram a essa conclusão graças a uma simulação de como as plantas espalham suas raízes sob a terra. O cálculo foi pensado a partir da teoria dos jogos, ramo da matemática que investiga situações estratégicas nas quais os objetos de estudo escolhem como agir em busca de um resultado melhor.

O estudo ganhou destaque após estampar a capa da revista Science, em dezembro de 2020. Até então havia duas teorias contraditórias para explicar o comportamento das raízes de uma planta em presença de uma concorrente. Uma sustenta que as plantas respondem à competição reduzindo o tamanho de seu sistema radicular, ou seja, elas investem menos em raízes diante de concorrentes. Já a outra mira a massa total de raízes produzidas, seja quando a planta cresce sozinha, seja quando disputa os recursos com concorrentes, quando então ela produz mais raízes.

Afinal, uma planta, na presença de outras plantas, reduz seu sistema radicular ou produz mais raízes? “Como nosso trabalho incorpora o número de raízes que uma planta produz e também a posição do espaço onde ela as produz, conseguimos conciliar as duas teorias: se têm concorrentes, as plantas produzem mais raízes perto do caule e menos longe dele.”

Do ponto de vista teórico, a descoberta é fundamental para entender melhor os ecossistemas do planeta. Segundo Garcia-Martinez, a ferramenta pode ajudar a prever como os biomas otimizam recursos hídricos e respondem a mudanças climáticas. “Em termos de ciência aplicada, o modelo pode nos ajudar a desenvolver cultivos otimizados, distribuindo as plantas de tal modo que elas produzam mais frutos, já que vão gastar menos energia espalhando raízes”, explica.

Esta foi apenas a primeira etapa do estudo. Os pesquisadores partem agora para aprofundar o modelo, investigando as interações em sistemas com mais de duas plantas, com espécies e em condições climáticas diferentes.

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Pedro Lira é jornalista e social media no Instituto Serrapilheira

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Quantas pedras há na orla de Copacabana? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/03/17/quantas-pedras-ha-na-orla-de-copacabana/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/03/17/quantas-pedras-ha-na-orla-de-copacabana/#respond Wed, 17 Mar 2021 10:03:14 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/orla_serrapilheira_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=352 Por Edgard Pimentel

Talvez seja isso que Drummond, sentado perto do forte, esteja tentando responder

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A praia de Copacabana se mistura à história da matemática: foi lá que Stephen Smale vislumbrou uma certa ferradura muito especial. É lá também que o olhar de Carlos Drummond de Andrade, sentado perto do forte, perde-se ao longe. Com todo o tempo do mundo disponível, será que ele estaria tentando quantificar o verso e responder, afinal, quantas pedras há no meio do caminho?

O calçadão da orla de Copacabana se estende por 4 quilômetros, cobertos por um desenho feito de pedras brancas e pretas que acabou virando um cartão-postal da cidade. Quantas pedras há no calçadão de Copacabana? Como podemos contar quantas pedras há nessa orla?

A primeira estratégia para resolver o problema é contar uma por uma. Mas seus inconvenientes são óbvios: a temperatura pode não ser a mais amena e sempre há o risco de se distrair com a beleza do entorno. Sem contar que requer uma paciência de Jó.

Tentemos outro método. Suponha que a largura do calçadão seja de 4 metros. E vamos supor que ele tem a forma de um retângulo. Assim, sua área seria de 16 mil metros quadrados. Já que no calçadão cabem 16 mil quadrados de 1 metro cada lado, vamos nos concentrar em um deles. Para simplificar, vamos chamar estes quadrados menores de unitários.

A ideia é simples: se soubermos quantas pedras há em um quadrado unitário, basta multiplicar a resposta por 16 mil e teremos uma estimativa para o calçadão inteiro. Aqui, o exercício se reduziu a contar quantas pedras há em uma área (bem) menor.

Vamos fazer uma estimativa sem sair de casa. Suponha que cada pedra seja perfeitamente quadrada, com lados de 5 centímetros. Assim, haveria 400 delas em cada quadrado unitário. E no calçadão inteiro haveria algo como 6,4 milhões de pedrinhas. Mas tem um detalhe crucial: a conta só funciona se todas as pedras tiverem o mesmo formato e as mesmas medidas. Uma hipótese muito forte, talvez.

Uma alternativa é atribuir probabilidades às formas e tamanhos das pedras. Um metro quadrado corresponde a 10 mil centímetros quadrados. A ideia é cobrir 10 mil centímetros quadrados com pedras de 25, 16, e 9 centímetros quadrados, e um ‘resto’. Vamos supor que 20% das pedras sejam as de 25 centímetros quadrados, 40% delas sejam as de 16 centímetros quadrados e outros 20% sejam as de 9 centímetros quadrados.

Este cenário requer 80 pedras de 25 centímetros quadrados (pra cobrir 2 mil dos 10 mil centímetros quadrados), 250 pedras de 16 centímetros quadrados e 222 pedras de 9 centímetros quadrados. O total já está em 552 pedras e ainda faltam 2 mil centímetros quadrados a serem cobertos. Estes 2 mil centímetros quadrados da nossa ignorância são cobertos por pedras de vários tamanhos, e pelo rejunte entre elas (por melhor que seja o mestre calceteiro, sempre há lá qualquer coisa). Digamos que existam aqui outras 150 pedras, elevando o total para 702. O total do calçadão passa a 11 milhões e 232 mil pedras!

Fazer variar a ocorrência de cada formato de pedra trará resultados diferentes. Mas qualquer ocorrência suposta a priori pode implicar erros gigantescos. Afinal estamos a multiplicar o que não sabemos por números como 16 mil!

Vamos tentar algo empírico –vamos pra rua! Ao caminhar pela orla, podemos nos deter, delimitar 1 metro quadrado e contar quantas pedras há nele. Após 500 metros, repetimos o experimento. Ao final do calçadão, teremos oito amostras. Podemos calcular a média e multiplicar por 16 mil. Pelas minhas contas, teríamos 8 milhões e 128 mil pedras. Uma vez mais, há problemas: se uma reforma recente alterou o padrão da calçada, os dados podem produzir erros.

Outra estratégia envolve ter à mão um computador e pedir ajuda à inteligência artificial. O plano é ensinar a máquina a contar pedras a partir de uma foto de alta resolução. Com um drone, sobrevoamos o calçadão e tiramos diversas fotografias. Alimentamos o computador com tais imagens e perguntamos a ele quantas pedras há. Claro que uma sombra fora de lugar ou um passarinho podem produzir distorções na análise. E o custo computacional pode ser elevadíssimo. Mas talvez não seja má ideia.

Uma resposta definitiva parece impossível. E talvez irresponsável. Mas refletir sobre uma questão assim é como caminhar na orla: independentemente de onde se chega, o caminho é o que mais importa.

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Edgard Pimentel é matemático e professor da PUC-Rio.

Sabemos que as crianças fazem as melhores perguntas, e que a ciência pode ter boas respostas para elas. Todo mês, a série “Perguntas de criança, respostas da ciência” convida um cientista a responder uma dessas questões fundamentais. Você tem uma sugestão de pergunta ou de pauta para o blog? Veja aqui como colaborar.

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A natureza nos ensina a agir coletivamente https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/02/27/a-natureza-nos-ensina-a-agir-coletivamente/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/02/27/a-natureza-nos-ensina-a-agir-coletivamente/#respond Sat, 27 Feb 2021 10:05:43 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/catarina-bessell-simon-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=337 Por Clarice Cudischevitch

Simon Levin mistura matemática, biologia e sociologia para entender o comportamento humano

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Por que peixes nadam em cardumes? Como pássaros voam em bando tão harmonicamente? O que motiva pessoas a não usarem máscara em uma pandemia? Um dos fenômenos mais fascinantes das ciências da vida é, justamente, o conflito entre o comportamento individual e o coletivo. Mas ele não é exclusivo do mundo biológico. O ecólogo Simon Levin o extrapola para as ciências sociais buscando entender condutas de uma espécie em particular: a humana.

Isso porque, embora a seleção natural atue nas diferenças entre indivíduos, a cooperação existe na natureza desde o nível celular até em diferentes animais. Diretor do Centro de BioComplexidade e professor de ecologia e biologia evolutiva da Universidade de Princeton (EUA), Levin aplica a matemática, sua formação original, para estudar essas duas tendências conflitantes.

Na biologia, elas já são relativamente conhecidas. Pela seleção natural, os organismos mais aptos a sobreviver têm mais chances de passar suas características para os descendentes e, assim, perpetuar seus genes. Em “O Gene Egoísta”, o biólogo Richard Dawkins afirma que um comportamento coletivo, como voar em bando, é adotado por conferir maior probabilidade de sobrevivência a uma linhagem genética.

Quando falamos de interações humanas, no entanto, a conversa é mais complexa. Se peixes nadam em cardumes para benefício mútuo –lutar contra predadores, por exemplo–, adotar um comportamento coletivo que gere benefícios em maior escala para a sociedade geralmente implica restringir ações individuais. “Precisamos aprender com a natureza como alcançar a cooperação”, diz Levin.

Na matemática, é a teoria dos jogos, técnica que modula o comportamento estratégico de agentes em diferentes situações, que dá conta de entender essas relações. Um exemplo clássico: se as pessoas priorizassem o transporte público ao carro, o congestionamento diminuiria, beneficiando a todos. Nesse cenário, no entanto, indivíduos acabariam saindo de carro para aproveitar o fluxo do trânsito, voltando a sobrecarregar as vias. Para a coletividade, seria melhor a cooperação do que ações individuais egoístas.

Essa mistura de matemática com sociologia e toques de biologia é útil para entender a pandemia da Covid-19. Levin, que passou mais de 40 anos estudando a dinâmica de doenças infecciosas, explica que, no caso do coronavírus, aplicamos modelos que predizem a disseminação do vírus, as diferenças entre pacientes com e sem sintomas e outros aspectos que ajudam a pensar em estratégias. Mas falta o componente social.

“Vemos grupos que hesitam em se vacinar. Por quê?”, questiona Levin. “Há os que se recusam a usar máscaras. China, Japão e Ásia em geral são países mais abertos a esse tipo de proteção, enquanto outros, como a Suécia, resistem. Entender isso é um problema das ciências sociais.”

Levin vai além: como decisões coletivas são tomadas? Como normas sociais são criadas e mantidas? Como indivíduos interagem? Um de seus estudos do momento quer entender a dinâmica das polarizações políticas. “Pessoas fazem parte de grupos diferentes, que às vezes se sobrepõem. Desenvolvemos modelos em que os indivíduos mudam suas opiniões ou migram de grupo baseados em interações com outras pessoas.”

Modelos desse tipo também são aplicados em contextos internacionais. Analisam, por exemplo, não apenas as relações entre nações, mas também as influências de organizações como ONU e OMS nas decisões e mudanças de posicionamento dos países.

Tantas incursões interdisciplinares renderam a Levin, hoje com 79 anos, uma produção científica de quase 700 publicações. Doutor desde 1964, é verdade que o cientista não começou agora, mas o segredo é outro.

“Conto com um grupo maravilhoso de estudantes e nada poderia acontecer sem eles”, diz. “O trabalho é fruto de muita colaboração, por isso o esforço de formar pessoas é tão importante. A razão de eu ainda ter alunos é justamente o quanto eu aprendo com eles e vejo o quanto podem construir. Quando as pessoas trabalham juntas podem fazer muito mais.” Eis aí um exemplo humano bem-sucedido de comportamento coletivo.

Simon Levin participará do lançamento no Brasil do Programa de Formação em Biologia e Ecologia Quantitativas, oferecido pelo Instituto Serrapilheira e pelo Instituto Sul-Americano para Pesquisa Fundamental (ICTP-SAIFR). Ele vai ministrar um webinar no dia 2 de março, às 11h. Mais informações aqui.

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Clarice Cudischevitch é jornalista, gestora de Comunicação no Instituto Serrapilheira e coordenadora do blog Ciência Fundamental.

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Quando a arte é um problema de matemática https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/02/03/quando-a-arte-e-um-problema-de-matematica/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/02/03/quando-a-arte-e-um-problema-de-matematica/#respond Wed, 03 Feb 2021 13:19:50 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/arte_linoca_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=319 Por Edgard Pimentel

O binômio de Newton é tão belo como a Vênus de Milo

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A matemática tem inspirado e favorecido a arte. Perspectiva, proporção e simetria, por exemplo, são fundamentais nas artes plásticas. E o cravo foi bem temperado com uma boa pitada matemática. As bandeirinhas de Volpi, os azulejos de Athos Bulcão, o cubismo… Mas, e o contrário? Será que a arte inspira a matemática?

Vem do outro lado do Atlântico uma evidência da conexão entre arte e matemática. Segundo Fernando Pessoa, “o binômio de Newton é tão belo como a Vênus de Milo”, só que as pessoas não se dão conta disso. Aqui, a arte empresta seus ideais como uma seta que aponta para beleza do objeto matemático. Mas talvez se possa ir adiante.

Em 1954, o Congresso Internacional de Matemáticos (ICM, International Congress of Mathematicians) ocorreu em Amsterdã. Do programa constava uma exposição de Escher, cuja obra tem caráter fortemente geométrico. Basta ver suas escadas finitas que parecem sempre subir. Ou o revestimento de um plano com uma única figura (e.g. um peixinho alado) por meio de transformações matemáticas, sem deixar nenhum espaço vazio. O peixinho é uma região fundamental para um grupo de simetria –transformações do peixinho que resultam nele próprio.

Naquele congresso, Escher teve a oportunidade de se aproximar de cientistas como os matemáticos Harold Coxeter e o vencedor do Nobel Roger Penrose, também físico. A troca de cartas com o primeiro o inspirou a finalizar as obras “círculos-limite”: uma mesma figura se replica no interior de um círculo, ficando cada vez menor à medida que se aproxima das bordas.

Mas o contrário também teria lugar: as obras do artista teriam motivado, ao menos em parte, Roger Penrose e seu pai, Lionel Penrose. Em um artigo de 1958, publicado no The British Journal of Psychology, pai e filho discutem ilusões de ótica e a percepção de formas impossíveis. Uma das duas referências do trabalho é o catálogo da exposição de Escher, aquela de 1954.Talvez Escher e seus “parças” sejam uma via de mão dupla para a inspiração entre arte e matemática.

Por outro lado, será que a matemática poderia responder a alguma pergunta importante da arte?

Datar uma obra que não tem registro cronológico é tarefa relevante para a história da arte. Ou entender se, e como, o estilo de um/a artista se alterou com o tempo. E a matemática pode ajudar a desvendar essas questões. Como? Tratando uma pintura como um objeto matemático, uma função. E decompondo essa função em unidades menores. O estudo dessas unidades menores é uma chave que destrava informações sobre o/a artista em questão.

Uma ferramenta muito eficiente nesse sentido são as ondaletas: funções muito especiais que, como o nome sugere, parecem ondinhas, pequeninas e bem-comportadas. E extremamente poderosa –a ponto de o formato JPEG depender delas. Quando uma pintura é analisada por meio de ondaletas, o resultado é um conjunto de números que carregam informações sobre a pintura.

Na década passada, os museus Van Gogh e Kröller-Müller puseram à disposição de um estudo multidisciplinar mais de cem fotografias de alta resolução das obras de Van Gogh. Combinando ondaletas com aprendizagem de máquina, um grupo de cientistas obteve informações surpreendentes. Eles encontraram evidências, por exemplo, de que o número de pinceladas de Van Gogh é maior no período em que ele está em Paris e não em Arles. Uma das pesquisadoras-líder daquele grupo era a matemática belga Ingrid Daubechies.

Em 2018, o ICM aconteceu no Rio de Janeiro. Na ocasião, Daubechies discorreu acerca do estudo das obras de Van Gogh e de outros problemas da arte que motivaram pesquisas matemáticas. Dentre eles, a pesquisadora falou dos desafios por trás da remoção de rachaduras em uma pintura, capaz de revelar um texto de Tomás de Aquino em uma peça dos irmãos Van Eyck.

Arte, matemática e ciência devem ter muito mais em comum do que nos salta aos olhos –afinal, são formas de elaboração do espírito humano. Tomara que haja cada vez mais gente que se dê conta disso.

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Edgard Pimentel é matemático e professor da PUC-Rio.

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