Ciência fundamental https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br O que pensam os jovens cientistas no Brasil? Thu, 02 Dec 2021 15:29:05 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 As montanhas que destruíram a vida https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/11/23/as-montanhas-que-destruiram-a-vida/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/11/23/as-montanhas-que-destruiram-a-vida/#respond Tue, 23 Nov 2021 10:13:00 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/montanhas-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=594 Por Fabrício Caxito

Os indícios de uma relação não tão amistosa

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Já sabemos que por meio de seu intemperismo e erosão as montanhas podem ter influenciado o surgimento de formas de vida complexas, fornecendo os nutrientes e o oxigênio necessários ao metabolismo dos animais (como abordei em um texto anterior, “As montanhas que criaram a vida”). Mas será que a ligação entre elas e a vida no planeta foi sempre tão amistosa?

Em algumas regiões do globo, como na costa sudoeste da África, os pescadores já estão familiarizados com um fenômeno: as águas se turvam e adquirem forte coloração esverdeada, vermelha ou amarelada. A despeito da beleza do espetáculo, causado por uma proliferação descontrolada de algas microscópicas, essas “marés vermelhas” ou “florações algais” podem ser bastante prejudiciais ao ecossistema marinho. Ao bloquear a luz solar e diminuir a quantidade de oxigênio nas águas, esses microrganismos podem expulsar ou levar à morte peixes e outros organismos complexos. Atualmente, uma das razões mais comuns da eutrofização, que é o nome que os cientistas dão ao fenômeno, é a poluição humana despejada nos oceanos, rica em nutrientes para as algas, que assim se reproduzem em excesso.

E por que as florações algais nos ajudam a entender a relação entre as montanhas e a vida complexa no planeta?

No período Ediacarano –lá se vão 600 milhões de anos–, surgiram algumas novidades: as primeiras grandes cadeias de montanha de estilo moderno, isto é, altas e contínuas como os Himalaias;  as primeiras formas de vida mais complexas do que simples bactérias e protozoários, como os animais; as conchas e outros mecanismos de proteção e ornamentos. Essas inovações e o desenvolvimento acelerado dos organismos foram possíveis devido à erosão das cadeias de montanhas que, recém-formadas, entregaram aos mares adjacentes uma quantidade balanceada de nutrientes e oxigênio.

Para as formas de vida que habitavam alguns mares, porém, a história não teve final feliz. Em muitos deles, hoje situados em continentes do hemisfério norte, os primeiros organismos complexos deram lugar às formas de vida ricas e variadas que caracterizam a chamada explosão cambriana, no período geológico que se seguiu. Já em alguns mares antigos preservados no hemisfério sul, como o mar Bambuí, em Minas Gerais, Bahia e Goiás, não há registros dessa explosão de vida complexa.

O mar Bambuí foi desenvolvido em uma situação peculiar no Ediacarano: ele começou por volta de 630 a 600 milhões de anos, ao lado de uma grande cadeia de montanhas cujos remanescentes se encontram hoje no Brasil central. A erosão dessas montanhas forneceu os nutrientes e o oxigênio necessários para o desenvolvimento de formas de vida ediacaranas, como organismos do tipo Cloudina sp., os primeiros a apresentar conchas calcáreas para se proteger de predadores no fundo do mar. Porém, logo na sequência, há uns 540 milhões de anos, o Bambuí viu-se cercado de montanhas por todos os lados, e acabou por se tornar uma bacia fechada, semelhante ao que hoje é o mar Morto. A erosão dessas montanhas forneceu uma quantidade descontrolada de nutrientes para a bacia, e a falta de conexão com o oceano impediu a renovação das águas. Com a estagnação das águas, a bacia sofreu forte eutrofização –as florações algais tóxicas exauriram o oxigênio e impediram o desenvolvimento de uma fauna típica cambriana.

Existe um efeito “Cachinhos Dourados” na relação entre cadeias de montanhas e vida complexa. Na história, a menina não consegue comer o mingau do Papai Urso por ser muito quente, nem o da Mamãe Ursa, por ser muito frio, mas o do Urso Filho está na temperatura certa para ela, bem como a cama do ursinho e assim por diante. Efeitos desse tipo ou de nível ótimo são conhecidos e discutidos em várias áreas, como na definição das zonas habitáveis de sistemas estelares, onde um planeta deve estar a uma distância ótima de uma estrela. Se as montanhas provêm os fatores necessários para a vida, um excesso delas ao redor de um antigo mar pode ter ocasionado um efeito contrário, deletério para a vida complexa. Falamos sobre isso neste artigo publicado recentemente na revista Scientific Reports.

A história registrada nos antigos mares pode nos ensinar. Lemos nas rochas a devastação e até a extinção de antigas formas de vida, causadas pelo excesso de nutrientes nas águas. Infelizmente, hoje estamos simulando esses efeitos naturais por meio do derramamento de poluentes nos oceanos, a intervalos muito mais rápidos do que a história da Terra já conheceu. Cabe a nós compreender os avisos que o planeta nos dá, e evitar seguir deliberadamente por caminhos que já se provaram catastróficos.

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Fabrício Caxito é professor de geologia e aluno de filosofia na UFMG.

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A idade da Terra e o abismo do tempo https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/11/03/a-idade-da-terra-e-o-abismo-do-tempo/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/11/03/a-idade-da-terra-e-o-abismo-do-tempo/#respond Wed, 03 Nov 2021 18:57:52 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/caxito-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=577 Por Fabrício Caxito

Sem vestígio de um começo, sem perspectiva de um fim

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“A mente pareceu rodopiar ao olhar tão fundo no abismo do tempo…” Assim o cientista e matemático John Playfar resumiu sua perplexidade quando, em 1788, o amigo James Hutton o levou até Siccar Point, um penhasco na Escócia. O naturalista, químico, médico e geólogo Hutton ocuparia uma posição central no iluminismo escocês do século XVIII, ao lado de figuras como Joseph Black, Adam Smith, David Hume, James Watt e Benjamin Franklin.

O ser humano havia muito já se perguntava sobre a idade da Terra. Já Aristóteles, ao observar que trechos de terra acabaram se tornando mar e vice-versa, havia interpretado o fenômeno como prova de que mudanças observadas na superfície terrestre indicavam um enorme tempo geológico, talvez infinito. Esta ideia de um tempo cíclico e infinito, porém, logo começa a ser desafiada pelos epicuristas, contemporâneos de Aristóteles, que acreditavam num tempo linear, com começo, meio e fim.

Na Idade Média e no Renascimento foram feitas várias tentativas para estimar a data do começo da Terra. O arcebispo James Ussher foi o responsável pela mais famosa delas, de 1658 –partindo da contagem retroativa das gerações da Bíblia, ele concluiu que o mundo havia surgido no dia 23 de outubro de 4004 a.C.

Para aqueles que conheciam e estudavam o mundo natural, porém, esses números eram fantasiosos. Em 1666, Nicolau Steno, médico anatomista da corte de Fernando II de Médici, apresentou uma explicação para as chamadas glossopetrae, ou pedras-língua, rochas de formato triangular imersas no interior de outras rochas na natureza. A explicação para a ocorrência dessas pedras era controversa: Plínio, o Velho, achava que elas haviam caído do céu em noites de lua; Athanasius Kirchner, contemporâneo de Steno, falava de uma “virtude lapidificante”, que com o tempo transformaria todas as coisas naturais em pedra. Steno foi o primeiro a apresentar a interpretação correta: as glos­sopetrae são de fato dentes fósseis de tubarão solidificados em novas rochas. Com o avanço dos estudos de campo e o reconhecimento de diversas camadas com conteúdo fóssil distinto, os cientistas consideraram modestas as estimativas de Ussher e outros religiosos: para o desenvolvimento, e mesmo a extinção, de todas aquelas formas de vida, meros 6 mil anos eram uma idade equivocada.

E aqui entra em cena James Hutton. Em 1875, ele apresentou à Sociedade Real de Edimburgo suas ideias sobre o tempo necessário para a formação da superfície terrestre, mas a recepção de suas hipóteses não foi das mais calorosas. Em busca de provas, Hutton decide empreender uma série de viagens de campo na Escócia, durante as quais descobre diversas evidências.

Em Siccar Point, por exemplo, camadas de rochas com mergulhos diferentes são separadas por uma superfície que os geólogos chamam de “discordância”. Por mergulho, entende-se o ângulo com o qual que cada camada de rocha faz com a superfície da Terra. Hutton foi o primeiro a interpretar corretamente o significado disso. O conjunto de rochas inferior, abaixo da discordância, teria se depositado horizontalmente em um fundo de oceano, lago ou outro tipo de bacia sedimentar. Depois, este conjunto de rochas precisaria ter sido soerguido acima do nível do mar e sofrido uma inclinação de suas camadas devido à deformação no momento de soerguimento, como se fossem levantadas por uma retroescavadeira.

Hoje sabemos que isso ocorre sobretudo nas zonas em que duas placas tectônicas se encontram, formando as cadeias de montanhas. Após o soerguimento das rochas, estas começam a ser erodidas pela ação do vento, da chuva e outros agentes intempéricos. Uma vez que a montanha é erodida até a base, nova bacia sedimentar pode se formar por cima dela, e novos sedimentos podem se acumular horizontalmente sobre a superfície que marca a linha erosiva da cadeia de montanhas. Estes sedimentos que se depositam por cima da superfície podem, por sua vez, ser também soerguidos posteriormente e sofrer erosão, recomeçando assim o ciclo. Hutton reconheceu o enorme significado das discordâncias: o tempo geológico devia ser muito mais extenso do que se pensava, dados os diversos ciclos de deposição, soerguimento, erosão, deposição, soerguimento…

E qual é a resposta para a pergunta inicial de Aristóteles, dos epicuristas, de Ussher, Steno e tantos outros? Por métodos de datação utilizando o decaimento radioativo, hoje sabemos que a Terra tem na verdade cerca de 4,5 bilhões de anos. Você consegue imaginar o que significa este número, ou, assim como Playfar, sua mente parece também “rodopiar ao olhar tão fundo no abismo do tempo”?

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Fabrício Caxito é professor de geologia e aluno de filosofia na UFMG.

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O que é a vida? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/21/o-que-e-a-vida/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/21/o-que-e-a-vida/#respond Thu, 21 Oct 2021 10:05:12 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/vida-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=560 João Miguel de Oliveira, 6 anos, carioca, fez essa complexa pergunta fundamental para a série “Perguntas de criança, respostas da ciência”. O Serrapilheira chamou três cientistas de áreas diferentes para (tentar) respondê-la.

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A vida é a ordem em meio à desordem, por Hugo Aguilaniu, biólogo geneticista

Na condição de geneticista que pesquisa o envelhecimento, devo dizer que a definição mais estrita de vida não é, de fato, tão simples. A primeira ideia que vem à mente é que um ser vivo deve ser capaz de se mover. Se o movimento macroscópico não for sistemático, deve ser pelo menos molecular: as moléculas devem se transformar ativamente em outras moléculas. Embora isso seja observado em todos os seres vivos, o movimento molecular não é específico dos seres vivos, pois basta pôr duas moléculas reativas em presença uma da outra para dar início aos fluxos químicos, aos movimentos. É, portanto, uma condição necessária, mas não suficiente.

Outra característica da vida é a capacidade de se perpetuar. Os seres vivos são, em sua maioria, mortais, mas podem perpetuar a vida por meio da reprodução, quando então o código genético com todas as informações é fielmente replicado. Não é impossível, porém, que alguns organismos se perpetuem sem se reproduzir, por meio de uma eficiente regeneração. De todo modo, é sempre necessário perpetuar e/ou reproduzir nossa informação genética.

A replicação do código genético implica a capacidade de os seres vivos se manterem em ordem. Estar vivo é precisamente manter certa organização molecular dentro de si. Quando a vida sai de um organismo, podemos ver que os tecidos se decompõem e são logo reduzidos a compostos químicos individuais, não mais ordenados entre si. Essa manutenção da ordem é muito cara em termos energéticos: enquanto houver vida, ela não pode parar. O metabolismo e a ingestão de moléculas que carregam certa quantidade de energia química –o que chamamos nutrição– é que impulsionam esse processo.

Os seres vivos, portanto, consomem energia ao seu redor para se manter em ordem. De acordo com a segunda lei da termodinâmica, sabemos que a ordem mantida nos indivíduos vivos só é possível ao preço da criação de uma desordem. E essa, por sua vez, é ainda maior que a ordem – tanto que a entropia, a desordem do universo, cresce inexoravelmente.

Uma tabela periódica da vida, por Daniel Valente, físico

Para um físico, a pergunta vai muito além de “como funcionam os organismos vivos tais como os conhecemos”. Há várias comunidades de cientistas buscando uma compreensão que englobe a vida-como-a-conhecemos e a vida-como-poderia-ser.

Suponhamos, por um instante, uma busca por vida fora da Terra. Caso encontremos um sistema auto-organizado e autorreplicante, porém de composição molecular completamente distinta da nossa, como reconhecê-lo como vivo? Tornados, por exemplo, são estruturas auto-organizadas que “sobrevivem” enquanto há energia disponível na atmosfera, mas ninguém os considera organismos realmente vivos. Fogo também sobrevive enquanto dura a energia que o alimenta e, curiosamente, é capaz de se autorreplicar (pense na chama de uma vela quanto toca um novo pavio).

Se a auto-organização e a autorreplicação não são critérios suficientes, será que seria suficiente adicionar a evolução darwiniana à lista? Para constatar que isso não tem muita serventia, basta analisar a chamada “vida artificial” –programas de computador capazes de se autorreplicar, competir por recursos (alocação de memória, energia elétrica na máquina) e desenvolver características complexas a partir de programas simples. Mas essa vida artificial poderia ser posta em pé de igualdade com a vida natural?

Alternativamente à busca por definições, ou por uma lista de atributos, cientistas têm procurado respostas na física do comportamento emergente. Tentamos ver emergir, nos mais diversos sistemas (do nanométrico ao macroscópico) e contextos (contendo fontes de energia luminosa, elétrica, química, térmica), imitações e sobretudo generalizações de todas as possíveis características excepcionalmente similares às dos organismos vivos tal como os conhecemos (auto-organização, automontagem, autorrecuperação, autorreplicação, mutação, adaptação). Algumas buscas se inclinam para os aspectos energéticos da auto-organização longe do equilíbrio termodinâmico (generalizando a noção de metabolismo como um processo emergente na matéria), enquanto outras se inspiram nos aspectos informacionais (imitando o código genético e a capacidade de processamento de informação que emergem em toda célula viva).

Físicos do passado primeiro precisaram responder “o que é gravidade?” para depois criar os satélites artificiais e o GPS. Cientistas do presente têm tentado inventar toda sorte de vida artificial, na expectativa de um dia responder de modo exato a “o que é vida”. Quem sabe ainda haverá uma “tabela periódica da vida”, na qual ordenaremos os sistemas por seu “grau de vida” desde os obviamente não vivos até os obviamente vivos?

A vida é uma obra de Gaia, por Adriana Alves, geóloga

Para um geólogo, a vida envolve os processos compreendidos entre o nascimento e a morte. Entretanto, ao contrário dos biólogos, nós não nos referimos necessariamente apenas a animais, plantas e bactérias como seres vivos. Planetas, estrelas e até vulcões fazem parte desse grupo. Uma estrela, por exemplo, como o Sol, vive para queimar combustível e fornecer luz e calor no processo; um planeta vive para diminuir a temperatura de seu interior até que sua dinâmica interna se paralise. Nós, seres viventes clássicos da biologia, nos originamos da combinação quase milagrosa e acidental de carbono, oxigênio, nitrogênio e hidrogênio… E foi o surgimento dos seres fotossintetizantes  –aqueles que consomem gás carbônico como combustível e soltam oxigênio como subproduto dessa reação– que nos propiciou a atmosfera rica em oxigênio que boa parte dos seres que conhecemos necessitam para seguir vivendo.

Não fosse o pulsante dinamismo da Terra, os continentes não existiriam e o planeta ainda seria uma bola de lava. Sem essa dinâmica tampouco haveria deriva continental, nem as placas tectônicas se encontrariam. Esse “não encontro” impossibilitaria a migração dos hominídeos, que existiriam isolados em algum ponto remoto da África.

Como uma mãe (Pacha Mama ou Gaia), a Terra nos fornece tudo o que precisamos para a vida biológica desde o surgimento da nossa (e de todas) espécie(s). Seja por influenciar a distribuição dos nutrientes do subsolo e a ocupação do território por caçadores coletores, seja por definir a distribuição de metais preciosos usados nos chips do computador em que ora escrevo, a vida humana e de todos os demais seres só se tornou viável por conta da dinâmica peculiar e caprichosa de Gaia.

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Hugo Aguilaniu é diretor-presidente do Instituto Serrapilheira, Daniel Valente é professor da UFMT e Adriana Alves é professora da USP.

Sabemos que as crianças fazem as melhores perguntas, e que a ciência pode ter boas respostas para elas. Todo mês, a série “Perguntas de criança, respostas da ciência” convida cientistas para responderem uma dessas questões fundamentais. Você tem uma sugestão de pergunta? Veja aqui como colaborar.

 

 

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O que faz um vulcão adormecido renascer das cinzas? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/09/o-que-faz-um-vulcao-adormecido-renascer-das-cinzas/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/09/o-que-faz-um-vulcao-adormecido-renascer-das-cinzas/#respond Sat, 09 Oct 2021 10:23:38 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/serrapilheira_vulcoes_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=545 Por Adriana Alves

Nem sempre conseguimos prever a natureza

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Desde o dia 19 de setembro, as imagens do vulcão Cumbre Vieja, na ilha espanhola de La Palma, nas Canárias, tomaram conta dos noticiários. A visão do rio incandescente que desce numa cadência voraz tem deslumbrado a todos, cientistas ou não, afligindo os moradores.

Depois de meio século adormecido, o Cumbre Vieja despertou furioso e suas lavas já recobrem quatro quilômetros quadrados. A chegada da língua de fogo à costa acendeu o alerta para a potencial emissão de gases tóxicos disseminados pelo súbito resfriamento da lava em choque com o mar.

Mas como é que um vulcão adormecido entra em erupção sem dar pistas? Por que as autoridades não evacuaram previamente as casas na rota da lava? Por que não foi possível impedir a destruição das cerca de mil edificações no entorno?

Perguntas similares, que variam apenas quanto à localização do fenômeno, vêm sendo pesquisadas há décadas, e a geologia já tem respostas satisfatórias para qualquer vulcão terrestre adormecido, porém ainda ativo. Já em janeiro de 2021 pesquisadores de diversas nacionalidades assinaram um texto na revista “Scientific Reports” alertando para a iminente erupção do lado mais jovem da ilha, o Cumbre Nueva. O trabalho, servindo-se de dados de radar de alta resolução e de uma inovadora técnica de tratamento e interpretação de imagens, destacava o aumento anômalo do edifício vulcânico, um dos principais indícios de retorno à vida de vulcões inativos.

O crescimento insólito decorre da injeção de grande volume de magma proveniente das profundezas do manto terrestre, uma massa quente e carregada de espécies voláteis, sobretudo água, gás carbônico e dióxido de enxofre. Só para se ter uma ideia, o vulcão expeliu cerca de 250 mil toneladas de enxofre desde o primeiro dia de erupção… O odor nas cercanias não deve estar agradável, mas a irritação dos olhos e vias aéreas deve incomodar muito mais.

Vulcões adormecem quando o magma do reservatório que os alimenta se cristaliza, impedindo que a lava se movimente. A chegada de novos pulsos de magma “rejuvenesce” o reservatório ao fundir parte desses cristais, permitindo que o sistema volte a fluir.

A pressão excessiva causada pelo efeito combinado do volume de magma recém-chegado e da expulsão de espécies voláteis desses novos pulsos (mais ou menos o que ocorre quando se abre a tampa de uma garrafa de bebida gaseificada) leva ao “inchaço” da estrutura, provocando o rompimento de zonas de fraqueza do edifício e a consequente erupção. Todo esse processo é acompanhado de uma mudança drástica na composição e no volume dos gases exalados pelo vulcão. Tal alteração, somada ao aumento no registro de sismos, são os marcadores da chegada de novos pulsos de magmas, potencialmente desencadeadores de erupções.

No caso do sistema vulcânico de La Palma, todos esses indícios estavam presentes, e o que impediu o sucesso do plano de preservação das edificações foi a imprevisibilidade dos fenômenos naturais. Os cientistas foram surpreendidos por uma migração do conduto vulcânico principal que implicou uma alteração do ponto de saída da lava, que era esperada para a região Cumbre Nueva –onde o inchaço do edifício era mais evidente no início do ano. Entretanto, a erupção foi deslocada para o sul, e a lava recobriu depósitos vulcânicos mais antigos do Cumbre Vieja. Ainda que a natureza siga sempre o caminho mais fácil, este nem sempre se mostra óbvio, a despeito dos avanços tecnológicos.

Tais avanços também não implicam maiores chances de alteração do curso das lavas, já que exemplos “bem-sucedidos” são irrisórios e duvidosos. Na Itália, por volta de 1670 foi construída uma trincheira em torno do Monte Etna com a intenção de redirecionar o fluxo de lava. A iniciativa funcionou em termos, já que a lava se desviou para uma comunidade vizinha. Muitas pelejas e algumas mortes depois, a trincheira se mostrou insuficiente para acomodar o crescente volume de lava e ambas as localidades foram afetadas pela erupção.

Se não temos poder para afetar a dinâmica interna da Terra, tampouco temos meios eficazes de impedir que sua pujança nos dobre sob o peso de nossa insignificância.

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Adriana Alves é geóloga e professora da USP.

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Quando o mundo congelou https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/09/23/quando-o-mundo-congelou/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/09/23/quando-o-mundo-congelou/#respond Thu, 23 Sep 2021 10:14:47 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/iceberg-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=532 Por Fabrício Caxito 

Da Bahia ao Mato Grosso, os registros de um período glacial de 635 milhões de anos atrás

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Imagens de hominídeos atravessando o estreito de Bering entre a Ásia e a América, mamutes gigantescos e extensões de gelo que iam do polo Norte até Nova York costumam nos vir à mente quando ouvimos falar em era do gelo. Este momento, porém, é apenas parte do último período glacial em que o planeta está vivendo, iniciado há cerca de 2,6 milhões de anos –sim, continuamos em uma era do gelo, só que estamos em um de seus períodos interglaciais. No entanto, em seus 4,5 bilhões de anos de história, a Terra passou por situações de variação climática muito mais extremas. Em pelo menos alguns desses episódios, as capas polares se espraiaram praticamente até o equador, congelando o planeta quase por completo. Estes momentos são chamados “Terra Bola de Neve”.

A Terra Bola de Neve mais bem caracterizada ocorreu há aproximadamente 635 milhões de anos, durante a glaciação Marinoana, marco do fim do período Criogeniano –que recebeu este nome (do grego “krýos”, “frio”) pela abundância de depósitos glaciais encontrados no mundo todo. O estudo destas rochas fornece pistas muito importantes para compreender a evolução climática do planeta.

Como reconhecer os registros de um período glacial antigo? Ao atravessar os continentes, as geleiras, capazes de se movimentar em velocidades de até um quilômetro por ano, arrancam pedaços de rochas. Tais fragmentos, envoltos no gelo, se destacam da massa principal, transformando-se em icebergs que, por sua vez, afastam-se milhares de quilômetros da terra firme. No oceano, à medida que os icebergs derretem, os pedaços de rocha entranhados no gelo (e coletados em terra firme) se libertam e caem diretamente no fundo do oceano. Uma das formas mais fáceis de identificar antigos eventos glaciais é procurar por estes “dropstones”, ou clastos pingados –fragmentos exóticos, diferentes de tudo que está a seu redor, enfiados no meio da lama fina de depósitos no fundo do mar.

Curiosamente, esse tipo de rocha desta mesma idade pode ser visto em diversas regiões do Brasil, como na Chapada Diamantina baiana, na Serra do Espinhaço mineira e na região serrana do Mato Grosso. O mais interessante, porém, são os depósitos encontrados logo acima das rochas marinhas contendo dropstones: tratam-se de carbonatos, típicos de clima quente, hoje presentes apenas nos mares próximos ao equador, como no banco das Bahamas. Como é possível a existência de rochas de clima quente diretamente em contato com aquelas de clima glacial?

Aí entra a teoria da Terra Bola de Neve, que ganhou força no final do século passado com o trabalho dos cientistas americanos Joseph  Kirchvink e Paul Hoffman, e da equipe liderada por este último. Uma de suas hipóteses é que, durante o período de glaciação, todo o planeta, incluindo a superfície dos mares, foi coberto por uma capa de gelo. Em condições normais, os gases gerados no interior da Terra e expelidos pelos vulcões são consumidos e reabsorvidos pelo oceano. Em uma situação do tipo Bola de Neve, porém, a troca de gases fica praticamente interrompida devido à capa de gelo interposta entre a atmosfera e os oceanos. A atmosfera se concentra cada vez mais em gases expelidos pelos vulcões, dentre os quais o CO2 e o metano, causadores de efeito estufa.

A Terra Bola de Neve traz, pois, em si, a semente de sua ruína, pois a acumulação dos gases na atmosfera acarreta um período de efeito estufa extremo que derrete as capas de gelo e faz com que as rochas carbonáticas de clima quente se depositem sobre as rochas glaciais.

O estudo de antigos episódios Bola de Neve pode nos dizer muito sobre períodos de variação climática intensa (tanto para o frio, quanto para o quente) pelos quais nosso planeta passou, e poderá novamente passar no futuro.

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Fabrício Caxito é professor de geologia e aluno de filosofia na UFMG.

Este texto é uma continuação do artigo “Quando o sertão foi mar”, do mesmo autor.

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Como a Terra construiu a Amazônia? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/09/06/como-a-terra-construiu-a-amazonia/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/09/06/como-a-terra-construiu-a-amazonia/#respond Mon, 06 Sep 2021 10:09:00 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/amazonia-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=526 Por Pedro Val

Uma conspiração geológica de 3 bilhões de anos

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A Amazônia ocupa 0.5% da superfície da Terra, mas abriga esmagadores 10% da biodiversidade mundial. Imensidão ecológica dessa grandeza não se constrói da noite para o dia. Como ela ocorreu?

Do limite costeiro atlântico ao limite andino, as rochas que sustentam o continente sob a Amazônia foram sendo amalgamadas de leste para oeste, como um engavetamento de carros. Ao longo de 3 bilhões de anos e até aproximados 900 milhões de anos atrás, cerca de seis pequenos continentes se tornaram o que hoje é a parte setentrional da América do Sul. Esse ambiente superestável (que as geociências chamam de cráton) é o primeiro “fator-Amazônia”. Com tanta estabilidade e rochas tão antigas expostas à superfície, os nutrientes que nelas existem vão se perdendo ao longo do tempo para a água da chuva e dos rios. Assim, a riqueza dos solos que recobrem estas rochas é muito maior a oeste da região, onde se encontram as rochas mais jovens. Desta configuração nasce um gradiente ecológico que se reflete em organismos com diferentes resistências ecológicas, forçando uma diversidade longitudinal.

No centro da Amazônia formou-se um corredor abaulado de oeste a leste, acumulando toneladas de sedimentos de origem fluvial e marinha de maneira alternada. Esta sequência se repetiu durante centenas de milhões de anos, preenchendo as depressões e dando origem às bacias sedimentares. Hoje estas rochas compõem o substrato da outra metade espacial da região, dos Andes ao Atlântico. O casamento desse substrato de rochas com o gigantesco volume de água e o clima local faz dos rios amazônicos verdadeiras serpentes a meandrar incessantes. Daí outro fator-Amazônia: condições propícias para separar e misturar populações de organismos aquáticos. Uma receita pronta para a biodiversidade.

Faltam, ainda, alguns elementos-chave, como a combinação do litoral atlântico e os Andes. Devido à tectônica de placas, o continente sulamericano encontrava-se grudado no continente africano há aproximados 250 milhões de anos. Como um zíper, a tectônica de placas iniciou o afastamento entre a América do Sul e a África no limite sul, que culminou na formação do oceano Atlântico. Há cerca de 110 milhões de anos, instalou-se um litoral na borda leste do que hoje é a Amazônia e, com isso, a foz do Amazonas. No entanto, ainda assim não havia um rio que atravessasse todo o continente. A Amazônia possuía duas grandes bacias hidrográficas, uma a leste, outra a oeste, fronteiriça ao atual estado do Amazonas, de norte a sul. Para juntá-las, outra conspiração geológica se urdiu. Em paralelo à lenta migração do continente rumo a oeste, toda a trama das placas tectônicas se rearranjava sob o Pacífico em função do fluxo mantélico no interior do planeta, a centenas de quilômetros de profundidade. Há aproximados 50 milhões de anos, formou-se a placa de Nazca, que desde então colide com o continente sulamericano. De tal colisão resultou o soerguimento dos Andes, fechando a lista de fatores-Amazônia. Os Andes começaram a soerguer na região da Bolívia e no sul do Peru nos últimos 20 a 30 milhões de anos, mas somente atingiram suas altitudes atuais nos últimos 10 milhões de anos.

Com seus majestosos quatro a seis quilômetros verticais, o peso das montanhas abaulou toda a região do sopé andino e até mesmo a região central da Amazônia. A depressão continental decorrente propiciou a entrada de águas marinhas pela Venezuela. O resultado foi um ambiente pantanoso que mistura água doce e água salgada, o “berço da vida”, segundo alguns pesquisadores. Cientificamente conhecido como lago Pebas, esta grande depressão continental perdurou aproximados 15 milhões de anos. A existência e as características desse lago são ainda fortemente debatidos por cientistas.

Os sedimentos oriundos dos Andes em franco soerguimento e erosão foram preenchendo o Pebas, empurrando-o cada vez mais para leste. Uma vez preenchida a depressão, rios conseguiram atravessar a Amazônia, de oeste a leste e, assim, em algum momento nos últimos 9 milhões de anos, formou-se a Amazônia como é hoje. Como sabemos disso? É nesse período que a pilha de sedimentos submersa no offshore logo a leste da foz do Amazonas começou a receber sedimentos tipicamente andinos e não mais das rochas antigas do cráton. E qual seria a idade da Amazônia? Além da proposta de 9 milhões de anos, há duas outras hipóteses principais: ela teria 6 milhões de anos ou 2.5 milhões de anos. Assim como o lago Pebas, o debate da idade da Amazônia é vigoroso.

A grande conexão fluvial propiciou que a fauna acumulada por milhões de anos a oeste se dispersasse para o leste. Há 2.5 milhões de anos, o planeta intensificou as variações em sua órbita que deram o gatilho para os famosos ciclos glaciais do Pleistoceno. Este foi o corolário das mudanças cíclicas na escala de milhares de anos no volume de água da Amazônia, modificando a rede fluvial e criando ciclos climáticos que afetariam o padrão de secas e cheias desde então.

Foram necessários 3 bilhões de anos de eventos geológicos para que a Amazônia chegasse ao que é hoje. Uma conspiração geológica sem paralelos.

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Pedro Val é geólogo e professor na Universidade Federal de Ouro Preto.

Em 2020 e 2021, o Painel Científico para a Amazônia – SPA, sob os auspícios da Sustainable Development Solutions Network, se reuniu para elaborar o primeiro relatório científico integrado sobre a Amazônia. Este texto é inspirado no Capítulo 1 desse documento, de autoria de Pedro Val e colaboradores. O relatório completo pode ser obtido em: https://www.theamazonwewant.org/

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Quando o sertão foi mar https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/08/24/quando-o-sertao-foi-mar/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/08/24/quando-o-sertao-foi-mar/#respond Tue, 24 Aug 2021 10:12:03 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/caxito-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=517 Por Fabrício Caxito

A separação da Pangeia formou um oceano. Será que não houve outros?

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A teoria da tectônica de placas, que ganhou força a partir dos anos 50 do século passado, revolucionou o modo como se olhava o mapa-múndi, com suas separações estanques de massas de água e massas terrestres. Pioneiros como o meteorologista alemão Alfred Wegener e o geólogo sul-africano Alexander du Toit lançaram mão de evidências como o encaixe das linhas da costa da América do Sul e da África, além da presença de rochas e fósseis similares nos dois continentes, e levantaram a hipótese de que, até cerca de 130 milhões de anos atrás, essas duas massas eram unidas em um só continente, a Pangeia. A descoberta da cisão da Pangeia a partir do período jurássico, gerando um novo oceano, o Atlântico, semeou a ideia de que, com o tempo, as massas continentais se deslocam, numa eterna dança de continentes que ocasionou a abertura e fechamento de oceanos e a criação de novas cadeias de montanhas onde duas massas continentais colidiram uma com a outra.

Se a América do Sul e a África se separaram, como suspeitaram Wegener e Du Toit, por que no passado não poderia ter havido, entre os continentes e oceanos, configurações que não conseguimos mais distinguir devido aos ciclos de abertura e fechamento que se sucederam no tempo geológico? Hoje sabemos que a Terra tem cerca de 4,5 bilhões de anos, tempo suficiente para diversos oceanos terem aberto e fechado, e diversos fragmentos de continentes terem colidido e formado supercontinentes em posições bem diferentes das atuais.

Uma pista para desvendar esse quebra-cabeça é procurar, nos continentes atuais, traços de antigos oceanos que se espremeram e se fecharam quando as massas continentais colidiram. A dificuldade de empreender essa pesquisa, porém, se deve, entre outras razões, à dificuldade de encontrar pedaços de antigos oceanos dentro dos continentes.

O fundo dos oceanos é constituído de rochas bastante densas, majoritariamente os basaltos, uma rocha escura muito rica em minerais de ferro e magnésio, bem diferente dos granitos que caracterizam os continentes, ricos em sílica e alumínio, elementos mais leves. Ainda bem que, em algumas situações muito específicas, pedaços de basalto que antes integraram o fundo oceânico acabaram se enfiando em meio às rochas do continente, ficando assim preservados para futuras investigações.

Isto ocorreu, por exemplo, nas zonas de subducção, que são aquelas em que uma placa tectônica entrou por baixo da outra e afundou para o manto terrestre. Neste movimento, pedaços de basalto do fundo do oceano podem ter se desprendido da placa submersa e subido à placa em que estava o continente que havia ficado por cima. Os pequenos pedaços de basalto acabaram ficando conservados como lascas sobre os granitos e rochas sedimentares continentais. Ou seja, estas rochas são muito diferentes de suas vizinhas. Elas têm uma coloração verde-escura específica dos basaltos e outras rochas associadas a eles, e por isto foram chamadas de ofiolitos, do grego “ophios” (serpente) e “lithos” (rocha).

Encontrar ofiolitos em campo e pôr a mão em um pedaço preservado de um antigo oceano é uma alegria enorme para os cientistas. Foi o que aconteceu na região de Monte Orebe, sertão na divisa entre Pernambuco e Piauí, quando, em 2014, um grupo de pesquisadores, do qual faço parte, encontrou e descreveu um pedaço de um oceano de cerca de 820 milhões de anos atrás e o nomeou “ofiolito Monte Orebe”. O estudo foi publicado na revista “Geology” e ajudou a desvendar a configuração de antigas placas tectônicas, continentes e oceanos no nordeste do Brasil.

Curiosamente, a região de Monte Orebe fica logo ao norte da barragem de Sobradinho, na Bahia. E foi a construção da barragem que inspirou a famosa canção de Sá e Guarabyra (por sua vez inspirada nas profecias de Antônio Conselheiro): “O sertão vai virar mar, dá no coração/ o medo que algum dia o mar também vire sertão”.

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Fabrício Caxito é professor de geologia e aluno de filosofia na UFMG.

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A teoria da evolução pensada pela inteligência artificial https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/05/16/a-teoria-da-evolucao-pensada-pela-inteligencia-artificial/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/05/16/a-teoria-da-evolucao-pensada-pela-inteligencia-artificial/#respond Sun, 16 May 2021 10:15:10 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/darwin_pixel-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=405 Por Adriana Alves

Um novo estudo usou ferramentas da IA para revisitar teorias já consolidadas

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Em trabalho publicado na revista “Nature”, no apagar das luzes de 2020, cientistas combinaram inteligência artificial e registro de fósseis para contribuir para uma das teorias mais aceitas da ciência: a evolução das espécies.

O surgimento da vida visível na Terra, há cerca de 540 milhões de anos, favoreceu a preservação fóssil de diferentes espécies. Foi o estudo desse registro que permitiu a identificação de cinco grandes extinções, bem como de inúmeros períodos de evolução acelerada das espécies. Curiosamente, a aceleração da evolução parecia decorrer de eventos de extinção em massa e da desimpedida evolução das espécies sobreviventes.

Até o ano passado, o link entre extinção e evolução estava sujeito a críticas baseadas, em parte, no caráter espacial e temporalmente irregular dos registros mais antigos de fósseis. Os resultados do novo estudo sugerem que, de fato, não há relação temporal entre a diversificação da vida e eventos catastróficos anteriores. Mais do que isso: em alguns casos, os períodos de diversificação acelerada da vida parecem, paradoxalmente, ter consequências similares às extinções em massa.

As ferramentas de inteligência artificial empregadas no estudo permitiram decifrar os padrões escondidos em uma base de dados paleontológicos que reúne pouco mais de 1,2 milhão de registros, referentes a mais de 170 mil espécies. Foi possível visualizar pela primeira vez nos últimos 540 milhões de anos os períodos de explosão da vida, de extinção em massa e de intenso surgimento de novas espécies desencadeado por crises biológicas.

Traduzidos em diagramas, os resultados do novo estudo permitem identificar não apenas as cinco maiores extinções em massa, mas também outros sete eventos de extinção de menor magnitude e quinze eventos de altíssimas taxas de surgimento de novas espécies. Além desses, dois eventos em que extinção e diversificação de espécies caminharam juntas são mostrados pela primeira vez com clareza.

Os padrões revelam um equilíbrio entre períodos de extinção em massa e de diversificação incrementada de espécies, com um contínuo de eventos separando esses dois extremos. Surpreendentemente, os resultados do trabalho indicam que os eventos de evolução acelerada da vida (aqueles com taxas incrementadas de mudanças adaptativas ou surgimento de novas espécies) não apresentam associação temporal com a maioria das extinções em massa que os precederam.

Muito pelo contrário, os padrões identificados indicam que a evolução acelerada pode ter efeitos destrutivos similares aos das grandes extinções em massa. Ao contrário do que se observa na dobradinha evolução/extinção, o papel da diversificação da vida na destruição de espécies seria promover maior competição, acarretando o desaparecimento de espécies menos adaptadas.

O quão disruptivo de fato será o novo estudo ainda descobriremos, pois essas conclusões com certeza serão alvo de escrutínio por parte de cientistas. O importante é que ele une duas tendências que vieram para ficar e que talvez fomentem avanços científicos sem precedência: de um lado, os recursos da inteligência artificial; de outro, o contraditório nos forçando a revisitar teorias já consolidadas.

Nota: alguns trechos do artigo foram editados no dia 19 de maio para que se tornassem mais claros.

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Adriana Alves é geóloga e professora da USP.

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Como as memórias climáticas nos ajudam a prever o futuro https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/05/05/como-as-memorias-climaticas-nos-ajudam-a-prever-o-futuro/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/05/05/como-as-memorias-climaticas-nos-ajudam-a-prever-o-futuro/#respond Wed, 05 May 2021 10:25:21 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/serrapilheira_memoriaclimatica-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=395 Por Renata Nagai

Que histórias os oceanos podem nos contar?

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“Viva o presente, planeje o futuro e esqueça o passado: o que passou, passou.” Quantas vezes não nos deparamos com esse tipo de conselho (sobretudo em anúncios publicitários)? Vivemos numa sociedade que vive o presente, olha para o futuro imediato e faz vista grossa para o passado. Mas quando topamos com uma situação nova, é a soma de nossas experiências que molda nossa reação e nos torna capazes de adaptação. Os cientistas climáticos aplicam essa mesma lógica para melhorar nossa capacidade de previsão, reação e adaptação às mudanças climáticas globais que devem ocorrer nos próximos oitenta anos: olhando para o clima no passado. Mas onde estão armazenadas essas informações e como é possível acessá-las?

Assim como nossas memórias pessoais não se situam em apenas uma parte do cérebro, os arquivos climáticos são armazenados em diferentes locais no registro geológico –estão nos anéis de crescimento de árvores, nas camadas de gelo, nas calotas polares e nas montanhas, nos sedimentos depositados no oceano profundo. Cada arquivo desses representa isoladamente um ponto no espaço, com latitude e longitude, e guarda informações de diferentes condições ambientais e em fatias de tempo distintas. Até pouco tempo atrás, a organização temporal e a obtenção de dados desses arquivos ainda representavam grandes desafios. Hoje os avanços tecnológicos e analíticos nos permitem determinar de forma confiável o momento de ocorrência de eventos climáticos e quão quente ou fria estava a temperatura do planeta.

Na última década, a comunidade científica procurou desenvolver ferramentas estatísticas aptas a unificar as memórias do clima recuperadas de diferentes fontes. Como se cada registro fosse uma célula piramidal, guardando partes específicas da memória do clima, e a conexão entre estes arquivos formasse uma espécie de rede neural, permitindo aos cientistas acessar em escala global a resposta do clima a mudanças naturais ou geradas pelo homem. Essas novas sínteses contemplam momentos específicos do passado: o passado recente, anterior à Revolução Industrial, e o passado pretérito, de milhões de anos atrás, quando a concentração de CO2 na atmosfera foi semelhante ao que é projetado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) para o ano de 2100.

Emergem das novas sínteses globais do passado recente, por exemplo, evidências de que eventos climáticos que ocorreram no passado e que eram reconhecidos como de impacto global, como a Pequena Idade do Gelo e o Período Quente Medieval, provavelmente foram regionais, com maior impacto no Hemisfério Norte. No entanto, a partir da Revolução Industrial, o aumento da temperatura média global é registrado em todos os arquivos climáticos, o que só reforça o papel do homem na mudança climática.

No entanto, é curioso observar que, se por um lado avançamos no entendimento do impacto das mudanças climáticas futuras em escala global, por outro percebemos que ainda não entendemos bem esse impacto em escalas espaciais menores, regionais e locais. Na última semana de fevereiro de 2021, por exemplo, um trabalho publicado na Nature Geoscience ganhou a mídia ao reportar que o aquecimento global está promovendo o enfraquecimento da circulação meridional do Atlântico de forma sem precedentes nos últimos mil anos, o que pode resultar em uma instabilidade de todo o sistema climático.

O que será que isso representa para a temperatura das águas do Atlântico que banham a margem continental brasileira? Se sabemos que a temperatura da superfície do mar influencia os padrões de precipitação no continente sul-americano e a própria diversidade de espécies de peixes de interesse comercial, quais serão as consequências dessas mudanças para nossa própria segurança alimentar? A resposta para essas perguntas pode estar nas memórias do clima armazenadas nos sedimentos marinhos. E assim como nossas memórias definem nossa compreensão do mundo e nos ajudam a prever o que está por vir, as memórias climáticas podem nos ajudar a compreender como o planeta respondeu a alterações no passado e, assim, nos auxiliam a enxergar de forma mais clara o futuro.

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Renata Nagai é oceanógrafa e professora na Universidade Federal do Paraná.

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Por que um país sem vulcões ainda deve se preocupar com eles? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/03/31/por-que-um-pais-sem-vulcoes-ainda-deve-se-preocupar-com-eles/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/03/31/por-que-um-pais-sem-vulcoes-ainda-deve-se-preocupar-com-eles/#respond Wed, 31 Mar 2021 13:09:18 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/vulcoes_serrapilheira_hor_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=362 Por Adriana Alves

Nem todos são tão inofensivos como o que está em erupção na Islândia

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Nas últimas semanas os noticiários nos brindaram com belas imagens da erupção de um vulcão islandês situado a 30 km da capital, Reykjavik. Cientistas aproveitam a oportunidade para coletar amostras frescas de lava, enquanto moradores jogam vôlei nas cercanias do vulcão que acabou se tornando uma atração turística. A aparente placidez da erupção pode enganar os espectadores sobre os perigos que vulcões ativos representam. Mas nem todo vulcão do país é tão inofensivo assim.

No século 18, nove mil islandeses morreram em decorrência de uma erupção vulcânica de grande magnitude. No vale do Nilo, a 5,5 mil quilômetros dali, os egípcios experimentaram uma das maiores crises agrícolas de sua história, que gerou uma onda de mortes por inanição e dizimou 1/6 dos habitantes da região.

Aparentemente desconectados, os dois eventos foram provocados por diferentes agentes de um mesmo autor: o vulcão Laki, no sul da Islândia. Os efeitos imediatos foram sentidos pelos islandeses, que inalaram gases tóxicos e conviveram com os funestos efeitos dos vastos volumes de lavas. No segundo sítio, as mortes foram desencadeadas pela nuvem de cinzas que se espalhou em direção ao sul, carregando, além de material particulado, gases como enxofre, que em altas concentrações pode levar à diminuição das temperaturas e causar chuvas ácidas, ambas com efeitos catastróficos para a agricultura.

Outro vulcão islandês teve efeitos que ficaram conhecidos no mundo todo. A explosão do Eyjafjallajökull em 2010 foi responsável por uma interrupção do tráfego aéreo global que acarretou graves consequências econômicas e sociais.

Mas por que vulcões de um mesmo país suscitaram efeitos significativos em áreas geográficas tão diversas? A resposta, desoladora para os cientistas, foi delineada em trabalho publicado na revista Nature Communications no início de 2021.

Historicamente, os vulcanólogos acreditavam que quanto maiores as partículas expelidas durante explosões vulcânicas, menor seria seu tempo de permanência na atmosfera e, por conseguinte, menor o alcance da nuvem de cinzas.

Entretanto, os resultados do trabalho indicam que, mesmo com diâmetros relativamente grandes, as partículas se mantêm em suspensão e viajam por dias e até meses a distâncias tão impressionantes quanto os mais de cinco mil quilômetros das cinzas do vulcão Laki, ou mesmo distâncias supra-oceânicas, como ocorreu com o Eyjafjallajökull.

Os mecanismos que governam a dispersão dessas partículas envolvem sofisticados fatores aerodinâmicos, mas as simulações numéricas e as observações de campo revelaram um sistema extremamente eficiente em que partículas de menor tamanho formam um invólucro em torno de partículas maiores, permitindo sua sustentação em suspensão. Essa viagem sustentada se dá em decorrência da maior interação proporcionada pelo aumento da área superficial do agregado de partículas e das intrincadas células de convecção do ar que se formam nos contatos entre elas. É como se ao pegar carona em uma partícula relativamente grande, as menores encontrassem um meio mais eficiente de chegar em maior número a distâncias substancialmente maiores. Não por acaso, o mecanismo foi apelidado de rafting, em alusão ao esporte radical.

A notícia é desoladora por um motivo em particular: os estudos foram conduzidos a partir da observação de vulcões relativamente pequenos, que não fazem sombra às maiores erupções que a Terra já testemunhou. Um desses gigantes, o sistema de Yellowstone, ora adormecido, tem potencial de causar explosões cuja magnitude sequer pode ser mostrada em livros, já que a magnitude do vulcanismo é representada em uma escala logarítmica –que está para os vulcões assim como a escala Richter está para os terremotos.

A cadeia vulcânica de Yellowstone, nos Estados Unidos, é composta por cerca de 60 mil quilômetros cúbicos do tipo mais explosivo de lava do planeta (as ricas em silício e gases). Se tal cenário já é assustador por si só, ele se torna mais catastrófico quando considerado o subsistema mais profundo, que apesar de menor potencial explosivo tem um volume quatro vezes maior que o sistema superficial.

O que aconteceria caso Yellowstone entrasse em erupção? Os seres petrificados de Pompéia e as superproduções hollywoodianas nos sugerem um prognóstico nada animador.

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Adriana Alves é geóloga e professora da USP.

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