Ciência fundamental https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br O que pensam os jovens cientistas no Brasil? Thu, 02 Dec 2021 15:29:05 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 A forma mais perfeita de comunicação https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/11/13/a-forma-mais-perfeita-de-comunicacao/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/11/13/a-forma-mais-perfeita-de-comunicacao/#respond Sat, 13 Nov 2021 10:23:16 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/luna-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=585 Por Pedro Lira

Na matemática, Luna Lomonaco busca dar sentido à aleatoriedade

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Quem via Luna Lomonaco na creche, aos quatro anos, escrevendo cartas de amor em nome dos colegas –era a única da sala que já sabia ler e escrever–, poderia apostar que aquela criança de olhos atentos e pensamento rápido seguiria carreira literária. Não foi bem assim. Interessada em questões filosóficas sobre a vida, ela decidiu cursar matemática para buscar respostas nos números, segundo ela “a forma mais perfeita de comunicação”. 

Mas a relação com a disciplina nem sempre foi harmoniosa. Nascida nos arredores de Milão em 1985, e criada numa cidadezinha perto de Verona, no ensino médio Lomonaco optou pelo clássico –estudou línguas, literatura, filosofia. Então resolveu cursar matemática, acreditando que a disciplina poderia responder a questões fundamentais da humanidade, como “o que é a verdade?”. “Cheguei na graduação com ideias filosóficas. Com 19 anos eu era muito sem noção”, brinca. 

No primeiro ano na Universidade de Pádua, sentiu um choque. Ela, que sempre fora a primeira da turma, não conseguia acompanhar as aulas de exatas. “Se você é parte de uma minoria social e te falta conhecimento, as pessoas te tratam como burro. Por eu ser mulher na matemática e não ter aprendido certos conceitos da área no ensino médio, me convenceram de que eu era ruim.” Mesmo com as adversidades e a tentação de voltar a estudar filosofia, o orgulho e a paixão falaram mais alto e ela não desistiu. 

Lomonaco conseguiu uma bolsa Erasmus para estudar na Espanha. Financiada pela Comissão Europeia, a bolsa é parte de um programa que permite a mobilidade de alunos do ensino superior pela Europa. “Eu era ótima em línguas mortas, como latim, mas não tão boa nas outras. A escolha da Universidade de Barcelona foi fácil pois espanhol é a língua mais próxima do italiano”, confessa. 

Sua relação com os números se consolidou. “Os professores respondiam minhas perguntas e eu já não era tratada como inferior”, lembra. Voltou a Pádua apenas para se formar e retornou à Espanha; engatou no mestrado, também em Barcelona. Dez dias depois da defesa da dissertação, partiu para Dinamarca, para um doutorado na Universidade de Roskilde. 

O clima frio e as relações humanas distantes dificultaram a vida da pesquisadora, apaixonada por interações sociais. Mas foi lá que ela engatou uma parceria com o matemático Carsten Lunde Petersen. O artigo que escreveram juntos rendeu à italiana o prêmio da Sociedade Brasileira de Matemática (SBM), que reconhece o melhor trabalho original de pesquisa na área. E não só: foi na Dinamarca que conheceu um pesquisador holandês de física teórica, com quem se casou. Seguem juntos, agora nos trópicos. 

O doutorado não foi suficiente para Lomonaco. Ainda com dúvidas fundamentais sobre a matemática pura, ela conseguiu uma bolsa da Academia Chinesa de Ciências. A experiência na Ásia foi libertadora. “Pela primeira vez senti que podia trabalhar no meu ritmo, sensação desconhecida na Europa”, conta. Mas não só isso. Foi lá que a italiana viu o mundo com outros olhos. “Eu percebi que tinha uma visão limitada, eurocêntrica. Ir trabalhar na China abriu muito meus horizontes.” 

A partir de então não quis mais saber do continente europeu. Ainda na China, um professor lhe recomendou que procurasse uma vaga na Universidade de São Paulo. “Passar no concurso da USP foi um dos momentos mais felizes da minha carreira”, ela relembra. 

Especialista em sistemas dinâmicos, Lomonaco estuda o conjunto de Mandelbrot, um tipo de forma geométrica determinada por fórmulas matemáticas que consegue dar sentido a eventos aparentemente aleatórios. Hoje é uma autoridade em dinâmica complexa, campo da matemática dedicado à investigação dos fenômenos caóticos. “No Brasil, minha carreira progrediu de uma forma que nunca poderia ter imaginado.” 

Atualmente docente do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, no Rio de Janeiro –uma das duas mulheres no quadro com 48 pesquisadores–, Luna Lomonaco é um nome de peso na matemática brasileira. Em 2018 recebeu o prêmio Para Mulheres na Ciência, promovido pela L’Oréal, Unesco e Academia Brasileira de Ciências. O programa, que visa favorecer o equilíbrio de gênero na pesquisa brasileira, apoia nomes de destaque em diferentes áreas da ciência. 

Ela também foi a primeira mulher a ganhar o Prêmio da Sociedade Brasileira de Matemática e o Reconhecimento Umalca, distinção internacional que homenageia pesquisadores de excelência na América Latina e Caribe. Na cerimônia, Lomonaco dedicou a honraria a todas as mulheres cientistas.

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Pedro Lira é jornalista e social media no Instituto Serrapilheira.

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Sobre os ombros dos nanicos https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/08/09/sobre-os-ombros-dos-nanicos/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/08/09/sobre-os-ombros-dos-nanicos/#respond Mon, 09 Aug 2021 10:07:11 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/blog_textodiversidade_mp-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=502 Por Luiz Augusto Campos

A desigualdade dentro da ciência

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“Se eu pude ver além foi porque estava sobre os ombros dos gigantes”. De mote da página inicial do Google Scholar a título de um best seller de Stephen Hawking, este adágio se tornou símbolo e síntese de como o avanço científico se daria. A história da frase é bem mais complexa, porém. Embora formulada séculos antes, sua versão mais famosa se origina de uma carta enviada por Isaac Newton em resposta a um de seus maiores desafetos, Robert Hooke, que reclamava da falta de reconhecimento de suas contribuições filosóficas às leis da gravidade.

À época, Newton não apenas reivindicava a autoria dessas leis como também discordava de Hooke quanto à importância do conhecimento especulativo para a ciência. Em sua perspectiva, as descobertas científicas seriam feitas em grande medida contra os gigantes, e não a partir deles. O que poucos sabem é que a menção ao gigantismo dos pensadores do passado era provavelmente uma referência irônica de Newton à baixa estatura de Hooke. Logo, mais do que sintetizar o avanço do conhecimento científico, a metáfora seria uma alfinetada sarcástica nas duvidosas teorias de seu interlocutor. Mais importante ainda, ele estava insinuando que Hooke estava longe de ser um desses titãs e que sua contribuição às teorias da gravidade era mínima.

Mas a menção recorrente dessa frase nos dias atuais não apenas contraria uma má interpretação de seu uso mais célebre. Embora sejamos seduzidos pelo heroísmo de precursores como Copérnico, Galileu, Einstein ou Pasteur, a lógica da descoberta científica hoje é muito distinta daquela de outrora. Nomes como Charles Darwin e Thomas Edison, por exemplo, trabalhavam solitários, com experimentos artesanais em laboratórios quase caseiros. Nada mais distante do trabalho coletivo, rotinizado e articulado em rede da ciência contemporânea. Nela, o papel de insights pessoais é importante, porém bem menor do que aquele desempenhado pelo acúmulo de conhecimento realizado por numerosos cientistas.

Não há demérito em deslocar a ênfase nos gigantes para os nanicos, ao contrário. Reconhecer o papel dos muitos em comparação aos poucos é lutar contra uma tendência intrínseca à ciência de distribuir financiamentos e prebendas acadêmicas para seletos indivíduos, invisibilizando o trabalho coletivo por detrás das grandes descobertas. Essa lógica reforça o que o sociólogo Robert Merton chamou de “efeito Mateus”: na ciência, como na parábola bíblica dos talentos, “a quem tem, mais será dado, e terá em grande quantidade, mas a quem não tem, até o que tem lhe será tirado”.

Não existe consenso sobre o que promove o reforço das desigualdades internas à ciência, mas os múltiplos filtros próprios da carreira acadêmica e a lógica altamente hierarquizada dos laboratórios parecem ser elementos centrais. O papel das lideranças na gestão de projetos complexos continua fundamental, mas elas próprias não ignoram as dificuldades em compartilhar as conquistas. Em entrevistas com laureados pelo Nobel na década 1970, Harriet Zuckerman já destacava o incômodo desses cientistas com o excessivo reconhecimento individual que recebiam. Muitos lamentavam que a atenção gerada pelo prêmio encobrisse o trabalho coletivo de numerosas equipes. Ao cunhar a noção de “efeito Matilda”, Margaret Rossiter ressaltou como essa invisibilização afetava as mulheres em particular, mas o mesmo parece se aplicar a cientistas de várias outras minorias políticas.

Afora os raros momentos de revolução paradigmática, a ciência não se faz sobre os ombros de gigantes, mas sobre as contribuições de nanicos. Mesmo as descobertas mais inovadoras costumam se valer do trabalho conjunto de numerosos cientistas que publicam centenas de artigos, trabalhando em laboratórios com equipes de assistentes em estruturas quase industriais, conectadas por redes globais de cooperação. Se as hierarquias acadêmicas têm seu papel na gestão, produção e reprodução da ciência, elas não podem redundar em uma acumulação sem fim de desigualdades e assimetrias. O desafio é, portanto, produzir uma estrutura de recompensas que premie grandes lideranças sem, contudo, ignorar o papel fundamental do trabalho coletivo, sobretudo daqueles e daquelas cientistas oriundos de grupos desfavorecidos e discriminados.

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Luiz Augusto Campos é professor de sociologia do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ, editor-chefe da revista acadêmica DADOS e pesquisador da diversidade no mundo acadêmico.

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É preciso escolher entre ciência ou religião? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/02/17/e-preciso-escolher-entre-ciencia-ou-religiao/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/02/17/e-preciso-escolher-entre-ciencia-ou-religiao/#respond Wed, 17 Feb 2021 12:00:00 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/Ciencia-Religiao-web2-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=328 Por Lisiane Müller

Mais do que ignorar o debate espinhoso, é necessário ampliá-lo

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No mito grego sobre a caixa de Pandora, conta-se que o titã Prometeu, ao roubar o fogo dos deuses e dar aos homens, despertou a ira de Zeus. Para se vingar, o deus de todos os deuses enviou ao mundo Pandora, a primeira das mulheres, entregando a ela uma caixa com a recomendação de que nunca fosse aberta. Após um tempo, como Zeus já esperava, ela sucumbiu à curiosidade e espiou o interior da caixa, liberando todos os males e doenças no mundo. Zeus vingara-se dos homens e de Prometeu.

A curiosidade de Pandora é considerada uma característica inerentemente humana; se por um lado sua utilização de maneira inadvertida pode trazer prejuízos, por outro é ela quem tem nos impulsionado a explorar e fazer grandes descobertas sobre a natureza e o Universo. E é inspirada por essa curiosidade que proponho uma espiada na seguinte questão: ciência e religião são antagônicas? Inimigas? Explorar os limites intelectuais desse debate seria abrir uma caixa de Pandora?

Ouso pressupor que não, e nesse cenário secular de divergências adiciono ao debate uma reflexão: como nós, cientistas, temos lidado com este assunto? Para entender sobre os processos evolutivos darwinianos, precisamos abandonar todas as crenças religiosas? O debate é espinhoso, mas a importância dele se mede em números: o crescente negacionismo em nossa sociedade e os mais de 170 milhões de brasileiros que no último censo demográfico declararam ter alguma religião.

A resposta para um cientista pode ser um tanto óbvia: toda religiosidade que não seja objeto de pesquisa deve ficar do lado de fora dos laboratórios. Mas encerrar o debate por aqui pode ser perigoso. Ao negligenciar ou ignorar a existência das crenças religiosas, cientistas podem acabar alavancando ainda mais a ruptura de comunicação que vem sendo fomentada por alguns setores religiosos no Brasil. E o resultado pode ser a pressão moral e social para que os grupos impactados escolham lados.

O que acontece quando saímos do nosso ambiente de trabalho? Diversidade é a resposta. Existem cientistas que em suas vidas pessoais são católicos, candomblecistas, evangélicos, ateus e isso não interfere em sua ética científica profissional. Compreender a importância da exclusão de ideais religiosos na ciência, mas sem negligenciar a realidade cultural e religiosa do país, talvez seja o ponto-chave. E mais do que ignorar essa discussão, é preciso que a gente a amplie e a diversifique.

Como exemplo prático, vamos pensar numa situação cotidiana para muitos brasileiros: tomar um remédio. É preciso desacreditar em Deus para engolir um comprimido desenvolvido por cientistas? É preciso escolher entre convicção religiosa e medicamentos? Se suas respostas foram não, o mesmo pensamento deveria ser aplicado à teoria da evolução, porque, estranhe ou não, a medicina e os estudos evolutivos estão fundamentados a partir da mesma ciência e da mesma objetividade científica.

É nesse ponto que cientistas e pessoas religiosas no Brasil têm entrado em maior conflito, gerando discussões unilaterais e um afastamento social preocupante. E como nós, brasileiros e cientistas, estamos nesse debate? Sabemos o que pensam nossos familiares, amigos e colegas de trabalho? Estimular um debate público amplo, que inclua vozes diferentes para ampliar os limites intelectuais desse assunto é fundamental para que possamos enxergar outros cenários e novos caminhos. Dar maior protagonismo às pesquisas das áreas das ciências humanas –que vêm produzindo extenso e aprofundado conhecimento científico– também é importante.

Hoje a caixa de Pandora sobre ciência e religião talvez tenha se transformado na caixa fechada em si –na falta do debate– e não mais em seu conteúdo. Se a caixa está na nossa frente, por que não usar da nossa curiosidade para abri-la e explorá-la? E tenho certeza que tiraremos de letra: afinal, fazer e responder perguntas não é um dos aspectos fundamentais da ciência?

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Lisiane Müller é cofundadora do projeto de divulgação científica “Evolução para Todes” e mestranda no Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva (LAAAE) no Instituto de Biociências da USP.

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Tal qual o cosmos, a ciência deve englobar tudo e todos https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/01/13/tal-qual-o-cosmos-a-ciencia-deve-englobar-tudo-e-todos/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/01/13/tal-qual-o-cosmos-a-ciencia-deve-englobar-tudo-e-todos/#respond Wed, 13 Jan 2021 10:00:07 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/mulheres_negras_valentina-fraiz.alan-brito.web_-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=304 Por Wyllian Torres

O astrônomo Alan Brito busca uma nova cultura científica

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Desde pequeno Alan Alves Brito sabia que queria ser astrônomo. Aos oito anos, por ocasião da passagem do cometa Halley, ele teve certeza. Em seu quintal na cidadezinha de Valença, ao sul da Bahia, o céu livre da poluição dos centros urbanos alimentava sua curiosidade e dava asas a sua imaginação. “A ciência também é um exercício de criatividade”, ele diz hoje, aos 42 anos.

Brito está à frente de pautas importantes como o antirracismo na ciência e na divulgação científica. Ele compartilha sua experiência em projetos de pesquisa que promovem a equidade racial e de gênero no ensino.

Professor e pesquisador na Universidade Federal do Rio Grande do Sul desde 2014, o astrofísico coordena duas iniciativas. A primeira, “Akotirene: Kilombo Ciência”, busca aumentar a participação de mulheres negras na ciência. Surgiu em 2018 como parte do edital “Elas nas Exatas” –parceria do Instituto Unibanco, Fundo ELAS, Fundação Carlos Chagas e ONU Mulheres. Mesmo com o fim do edital, que durou um ano, o trabalho continua sob sua coordenação e das matriarcas do Morada da Paz, quilombo localizado no município de Triunfo, interior do estado.

Por meio da “pedagogia do encantamento”, o projeto constrói um lugar onde aprender e ensinar se mesclam nas tradições do pensamento africano. Os orixás, divindades da religião iorubá, também são os professores, pois ensinam sobre a natureza e a ancestralidade.

Já o “Zumbi Dandara dos Palmares” é um projeto de pesquisa aplicada que mobiliza uma equipe de professores e pesquisadores de diferentes áreas, sob a coordenação de Brito. A ideia é ambiciosa. “Engloba movimentos sociais, a Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul e 15 escolas –metade delas recebe estudantes dos quilombos urbanos, situados em Porto Alegre, e a outra metade em territórios quilombolas espalhados pelo estado”, diz. O trabalho, que deve durar 18 meses, propõe a elaboração de políticas públicas que abracem a pauta da equidade racial.

Por meio do currículo de ciências da natureza, ele trabalha a etnoastronomia e explora a relação cultural e milenar com os astros. Sua intenção é construir o conhecimento ancorado nos saberes populares dos quilombos, “historicamente inviabilizados por conta do racismo estrutural”, comenta Brito.

O astrofísico ressalta o constante diálogo da astronomia com diversas áreas do conhecimento. Para responder a perguntas sobre, por exemplo, o surgimento das estrelas, precisamos da física para entender o processo da gravidade, e da química para explicar as estruturas moleculares. “A astronomia atrai estudantes de todas as idades. As pessoas são curiosas, querem entender como tudo se formou, o que são galáxias, o que são estrelas. Ela fomenta essa curiosidade científica”, diz Brito.

E mais: a astronomia humaniza os processos da ciência ao nos dar a perspectiva de que todos somos cidadãos e cidadãs do cosmos. “Ela nos traz essa responsabilidade de cuidar do planeta Terra, nessa relação intrínseca do sujeito com a natureza.”

Para Brito, é necessário articular uma nova cultura científica no país, que ajude a pensar uma outra construção de ciência e tecnologia. “A gente precisa de mais observatórios, planetários, museus de ciência que tragam narrativas de todos os povos que passaram pela Terra, ao longo de milênios, que olharam para o céu e contaram histórias”, diz o pesquisador.

Brito não vê, no futuro, como responder às questões da ciência moderna e contemporânea sem uma contribuição direta da astronomia. Afinal, estamos sozinhos? É a astrobiologia, com os avanços das pesquisas na biologia, que contribui na busca dessa resposta, por exemplo. Pluralizar as narrativas também é essencial para construir nossa cosmovisão. A ciência, tal qual o cosmos, deve englobar tudo e todos.

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Wyllian Torres é jornalista.

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Racismo e ciência https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/11/30/racismo-e-ciencia/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/11/30/racismo-e-ciencia/#respond Mon, 30 Nov 2020 14:10:08 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/inglez.valentina-fraiz.web_-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=264 Por Mariana Inglez

O que temos feito para romper com o legado da justificativa “biológica” para a opressão?

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No artigo “O Escravo do Naturalista”, publicado na revista “Ciência Hoje”, Ildeu de Castro Moreira revela como importantes naturalistas que estiveram no Brasil no século XIX se beneficiaram do conhecimento de povos indígenas e de pessoas escravizadas para a coleta e identificação de espécies nativas. O próprio Museu Imperial de História Natural da época, por exemplo, teve sua coleção formada a partir do trabalho de pessoas escravizadas. Ao longo da minha formação, sempre fui uma das poucas biólogas negras da turma e não me lembro de aulas que revisassem esses episódios ou estimulassem uma reflexão sobre o tema.

Lideranças científicas fundadoras e proeminentes em antropologia física ou biológica, hoje minha área de atuação, usaram suas pesquisas e sua crença na superioridade de pessoas brancas europeias para justificar e fomentar políticas que resultaram em desigualdades e violências que se mantêm até hoje contra pessoas não brancas. Vale lembrar dos zoológicos humanos com exposições antropológicas, tanto para entretenimento do público quanto para interesses de pesquisadores. Espalhados sobretudo na Europa e nos Estados Unidos, e atuantes até o final dos anos 1950, esses zoológicos exploraram diferentes etnias indígenas, povos asiáticos e, mais frequentemente, povos africanos.

Foi só depois da Segunda Guerra Mundial que cientistas de diferentes áreas, e da antropologia física em especial, começaram a reavaliar as definições sobre “raças” humanas. A discussão continuou até 1996, quando a American Association of Physical Anthropologists (AAPA) produziu um documento definindo que todos os humanos pertencem a uma única espécie que não está estruturada em raças; que as diferenças entre populações resultam tanto de fatores hereditários quanto ambientais e sociais; que não existem evidências que provem a inferioridade ou superioridade de uma ou outra “raça”; finalmente, que todos os seres humanos têm o mesmo potencial para assimilar conhecimento e cultura, ou seja, não existem diferenças biológicas entre supostas raças que definam o potencial intelectual ou cultural de cada um.

Em junho deste ano, em resposta ao movimento Black Lives Matter, a mesma AAPA publicou carta em apoio às populações negras e indígenas. Enquanto cientistas dessa disciplina que forneceu uma justificativa “biológica” para o colonialismo, a escravidão e a opressão contínua, é importante que atuemos efetivamente para romper com este legado. Assim como no passado houve um movimento para que as esferas dominantes aderissem aos preceitos da comunidade científica da época, hoje precisamos nos engajar contra o racismo e seus impactos na sociedade.

Acredito que a produção científica em geral deva ser mais autocrítica e comprometida com pautas sócio-raciais, já que reconhecer diferentes vozes é uma maneira de restituir autoridade a minorias discriminadas. Enquanto não existir diversidade, não seremos capazes sequer de identificar as desigualdades e atuar para resolução de problemas delas decorrentes.

Esse artigo é um chamado à reflexão e à ação, em especial aos pares brancos que seguem maioria em todas as ciências acadêmicas. O que tem sido feito para impulsionar a inclusão racial, valorizar a diversidade e promover os direitos humanos? Estamos tentando tornar nossos campos de estudo mais diversos e descolonizar os saberes dentro da universidade?

Mais do que estudar a variação e a biologia em nossa espécie, precisamos movimentar as estruturas internas do próprio fazer científico nacional, ampliando o diálogo com públicos mais diversos e apoiando as pautas de inclusão racial.

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Mariana Inglez é doutoranda no Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva (LAAAE), no Instituto de Biociências (USP), e coordenadora do projeto de divulgação científica “Evolução para Todes”.

Este artigo é o último de uma série de três textos do blog Ciência Fundamental em homenagem ao mês da consciência negra.

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A cientista que se inspira em princesas https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/11/25/a-cientista-que-se-inspira-em-princesas/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/11/25/a-cientista-que-se-inspira-em-princesas/#respond Wed, 25 Nov 2020 05:00:15 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/Serrapilheira-Gabriela-Ramos-Leal-2-300x215.png https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=260 Por Saulo Pereira Guimarães

Gabriela Leal é a primeira brasileira a chegar à final da “Copa do Mundo” da comunicação científica

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Gabriela Ramos Leal está vivendo um conto de fadas. Aos 34 anos, ela foi a primeira mulher a vencer a etapa brasileira do FameLab, a Copa do Mundo da comunicação científica, e a primeira pessoa a representar o país na etapa final da fase internacional da disputa, que terá seu resultado anunciado nesta quinta-feira, dia 26 de novembro. Com vídeos sobre medicina veterinária, a pesquisadora provou que o limite de três minutos por apresentação é suficiente para traduzir de forma clara temas tidos por muitos como difíceis de entender.

Estabanada, a carioca é capaz de quebrar uma caneca no afã de atender o celular. Fala de forma contagiante e tem um jeito divertido que conquista o interlocutor. Porém, diante das câmeras, ela vira estrela de cinema. A dicção expressiva combina com o carisma, surgem sorrisos à la Kamala Harris e passa a ser impossível não ouvir o que Leal tem a dizer. Foi assim em todas as etapas do FameLab 2020, a 15ª edição do concurso criado na Inglaterra, em que cientistas de 32 países apresentaram seus temas de pesquisa em vídeos de até 90 segundos transmitidos pela internet e foram julgados em função do conteúdo, clareza e carisma das apresentações. São qualidades básicas para uma professora, ofício que ela aprecia desde pequena e hoje exerce nas aulas de embriologia veterinária na Universidade Castelo Branco, no Rio de Janeiro.

Foi na infância que começou a relação da atual cientista com seus objetos de estudo. Nascida em Quintino, na Zona Norte do Rio, ela cresceu num prédio em que a entrada de animais era proibida, e por isso na primeira infância seu amor pelos bichos foi meramente platônico. Aos 11 anos Gabi se mudou e ganhou seu primeiro cão, que viveu longevos 18 anos, tendo morrido em 2016. Àquela altura, já veterinária formada, ela descobria uma nova paixão: a pesquisa científica. A convivência com a fauna a ensinou a admirar a lealdade dos cães e até as raras demonstrações de afeto dos gatos, que considera “bons julgadores de caráter”. “Conseguimos ser bem mais humanos quando estamos em contato com os animais”, ela diz.

Fã de princesas, Leal tem em seu quarto 15 peças ligadas ao universo Disney. Mas ela está longe de fazer o gênero princesinha cordata. Em agosto, quando pipocaram críticas contra a nomeação de um médico veterinário para o comando do Programa Nacional de Imunização, ela defendeu a escolha do profissional. Lembrou que seus colegas têm um papel importante no controle de doenças, a ponto de setores como a inspeção de produtos de origem animal só poderem operar com veterinários. “Estamos vivendo uma pandemia que começou porque alguém entrou em contato com carne de animal silvestre não inspecionada em Wuhan, na China. Aqui no Brasil, o trabalho da vigilância sanitária existe justamente para evitar que este tipo de situação aconteça”, ela explica.

No FameLab, a cientista conquistou o público ao falar sobre animais geneticamente modificados para a produção de substâncias que ajudam no tratamento de doenças, como a insulina produzida no leite da vaca (a apresentação pode ser vista aqui, a partir de 47m20s). Agora aguarda ansiosa pelo resultado do concurso, que poderá ter um significado especial não só para ela.

Filha de mãe negra e pai branco, ela demorou a aceitar seu cabelo, foi a única negra de sua turma de graduação, e até hoje só viu um palestrante negro nos congressos dos quais participou. Em seus atendimentos no hospital veterinário em que trabalha, tutores de animais já duvidaram de sua condição de médica. A pesquisadora identifica esta e outras situações como efeitos colaterais do chamado racismo estrutural.

Suas conquistas mostram que, nesta história, o final feliz pode ser o menos importante. “Tenho consciência de que meu trabalho é essencial para inspirar outras pessoas a chegar mais longe”, resume a veterinária.

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Saulo Pereira Guimarães é jornalista.

Este artigo é o segundo de uma série de três textos do blog Ciência Fundamental em homenagem ao mês da consciência negra.

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Por que a ciência precisa de diversidade? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/11/20/por-que-a-ciencia-precisa-de-diversidade/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/11/20/por-que-a-ciencia-precisa-de-diversidade/#respond Fri, 20 Nov 2020 08:00:06 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/diversidade-catarina-bessell.web_-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=254 Por Michel Chagas

Não é só uma questão de justiça social: ela gera pesquisas melhores

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Se a diversidade étnico-racial vem ganhando espaço na agenda de muitos setores da sociedade –nos negócios, na representação política, nas artes, no jornalismo–, nas ciências em geral ela ainda é tímida. Essa lacuna é marcante principalmente em relação ao desafio de reduzir a sub-representação no universo de professores universitários, no financiamento de pesquisas científicas e entre os destinatários das bolsistas de pesquisas.

As pessoas negras (pretos e pardos) representam 56% da população brasileira, mas foi somente em 2019 que pela primeira vez os estudantes negros passaram a ser maioria nas universidades públicas. Segundo o censo da educação superior, porém, apenas 16% do universo de docentes se declarou negro.

Essas disparidades estampam as consequências do racismo e de uma sociedade historicamente desigual. Tais anomalias têm origem no passado, e temos falhado em corrigi-las no presente. Em pleno século XXI é inadmissível fechar os olhos para a ausência de pessoas negras nos diversos setores de nossa sociedade. É nesse contexto que a Coalizão Negra por Direitos –que reúne 150 organizações e coletivos do movimento negro– reafirma que “enquanto houver racismo não haverá democracia“. Não alcançaremos um desenvolvimento robusto e sustentável com mais da metade da população ainda lutando para exercer sua plena cidadania.

A diversidade não é só uma questão de justiça social: os benefícios que ela traz ao ambiente dos negócios e da ciência já foram demonstrados em algumas pesquisas. O trabalho “The Diversity–Innovation Paradox in Science“, de 2020, por exemplo, promovido ao longo de três décadas pela Universidade de Stanford, na Califórnia, analisou dados de quase todos os doutorandos dos Estados Unidos, de todas as áreas do conhecimento, e comprovou que estudantes de grupos sub-representados são significativamente mais criativos que os demais.

A consultoria McKinsey, por sua vez, explorou o ambiente coorporativo na pesquisa “Delivering Through Diversity“, de 2018, mas as conclusões a que chegou são igualmente relevantes para outros segmentos, reafirmando a conexão positiva entre a diversidade no local de trabalho e o desempenho financeiro das empresas.

Por fim, um editorial da revista “Nature”, de 6 de junho de 2018, com o título “Science benefits from diversity“, já afirmava que fomentar a participação de grupos sub-representados não é apenas mais justo, como pode produzir pesquisas melhores. O editorial sublinha que uma ciência sem diversidade é um problema de todos, e que “grupos de laboratórios, departamentos, universidades e financiadores nacionais devem encorajar a participação na ciência do maior número possível de setores da população. É a coisa certa a fazer –tanto moralmente quanto para ajudar a construir um futuro sustentável para a pesquisa que verdadeiramente represente a sociedade”.

Esses são alguns dos muitos estudos que evidenciam que não há como negar o sucesso do desempenho de grupos não homogêneos, na ciência bem como nas demais atividades. E todos nós, individual e coletivamente, podemos adotar atitudes ou estimular medidas para romper com a sub-representação de pessoas negras. Entre alguns procedimentos a serem postos em prática, podemos mencionar: levantamento de dados sobre o perfil étnico-racial e de gênero nas áreas das ciências; ampliação do acesso desses grupos à pesquisa e ao ensino; garantia e desenvolvimento de linhas de apoio e financiamento a suas pesquisas; aplicação de recursos em treinamentos, mentorias e colaborações.

A diversidade não se encerra com a inclusão de diferentes em determinado grupo ou ambiente, assim como não está restrita a características étnico-raciais. No entanto, num país como Brasil, composto em sua maioria de mulheres e pessoas negras, promover a inclusão de tais grupos é condição indispensável para seu desenvolvimento sustentável. Se é fundamental para a ciência, é fundamental para a sociedade.

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Este artigo é o primeiro de uma série de três textos do blog Ciência Fundamental em homenagem ao mês da consciência negra.

Michel Chagas é gestor de Ciência no Instituto Serrapilheira

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Os supersensores e a experiência de um cientista baiano na África do Sul https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/10/22/os-supersensores-e-a-experiencia-de-um-cientista-baiano-na-africa-do-sul/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/10/22/os-supersensores-e-a-experiencia-de-um-cientista-baiano-na-africa-do-sul/#respond Thu, 22 Oct 2020 10:30:14 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/igor_miranda.web_-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=235 Por Jeferson Batista

Igor Miranda quer tornar o tal do futuro tecnológico mais humano

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Baiano de Salvador, Igor Dantas Miranda nasceu e cresceu em Nordeste de Amaralina, bairro popular e populoso da cidade. Com pai engenheiro e mãe matemática, desde criança foi estimulado a desenvolver habilidades aritméticas, cercado de revistas, jogos e brinquedos. Na adolescência, aprendeu sozinho a programar computador. Seu ingresso no curso de engenheira elétrica, na Universidade Federal da Bahia (UFBA), foi uma extensão natural desse percurso.

É na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, onde hoje leciona em cursos de engenharia elétrica e de computação, que o professor compartilha com colegas e alunos seu interesse por um futuro ainda mais tecnológico. Ele investiga modelos matemáticos para processar dados gerados por supersensores  –equipamentos criados a partir de uma combinação de sensores menores e que pretendem mudar, ainda mais, a experiência humana com a tecnologia.

Antes disso, Miranda acumulou no currículo mestrado e doutorado em engenharia na UFBA, pós-doutorado na sul-africana Universidade de Stellenbosch, passagens por instituições de pesquisa e desenvolvimento, além de publicações em revistas internacionais. Aos 37 anos, é casado com a pesquisadora da área de zootecnia Rosani Matoso, com quem tem uma filha de três anos. Ele faz questão de incentivá-la precocemente a seguir o caminho da ciência, do mesmo modo que foi incentivado por seu pai.

Mas, voltando aos supersensores: medicina, educação e segurança são apenas algumas das áreas que vão se beneficiar dessas ferramentas. “A ideia é desenvolver equipamentos com capacidade de observação aumentada, mas com dimensões e custos reduzidos, ou seja, supersensores minimalistas: mais potentes e, ao mesmo tempo, mais simples”, explica o cientista.

O tal futuro tecnológico só fará sentido se for acessível, mais humano e menos nocivo à sociedade, ele sustenta. Assim, em seu doutorado o cientista investigou um sistema de detecção e localização de disparo de armas de fogo, dentro da área de sensores de som. Partindo de uma tecnologia com um preço elevado, decidiu fazer uma versão mais barata.

Com base em sua pesquisa, Miranda oferece modos de identificar as origens dos tiros e, consequentemente, mapear os focos de violência urbana, que, como lembra, afeta sobretudo a população negra. “Entendi que tornar a tecnologia mais acessível é a motivação da minha vida. E é importante que esse desenvolvimento tecnológico avançado seja feito em todas as regiões e por grupos racialmente diversos”.

O pós-doutorado na África do Sul foi promissor. Lá, o pesquisador atuou com uma experiente equipe da área de engenharia aplicada à medicina e inteligência artificial, focada em monitorar pacientes de tuberculose por meio do som da tosse. Agora, em parceria com colegas sul-africanos, ele está investigando como o nível de saturação e a frequência respiratória podem ser parâmetros importantes para estabelecer o estágio da Covid-19 no organismo.

Miranda, que segue a linha Ketu do candomblé, lembra, com um sorriso, da experiência de conhecer pessoas do grupo étnico-linguístico iorubá  –idioma que estuda– ao longo de sua estada em território africano. Foi uma vivência de “conexão com a ancestralidade” e “uma ferramenta para compreender sua realidade local”.

Para o professor, a ciência brasileira, em especial a nordestina, tem vários pontos em comum com a ciência feita em países africanos, como a criatividade, muitas vezes movida pela falta de recursos, e o foco em melhorar a vida das pessoas.

Ao lado da mulher e de outros cientistas, Miranda fundou o Instituto Mancala em prol da diversidade racial e com o objetivo de promover pesquisa desde uma perspectiva negra e indígena. “Só assim teremos chance de dar certo enquanto sociedade e evitar os erros do passado e do presente”, ele pondera.

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Jeferson Batista é jornalista.

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Igualdade de gênero em revistas científicas só ocorrerá em 18 anos https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/09/16/igualdade-de-genero-em-revistas-cientificas-so-ocorrera-em-dezoito-anos/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/09/16/igualdade-de-genero-em-revistas-cientificas-so-ocorrera-em-dezoito-anos/#respond Wed, 16 Sep 2020 10:30:24 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/rafael-loyola-catarina-bessell-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=210 Por Rafael Loyola

Menos de 30% dos editores em periódicos da ciência da conservação são mulheres; disparidade também existe em outras áreas

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O último relatório do Fórum Econômico Mundial apontou que a desproporção de gênero no trabalho aumentou: só daqui a 257 anos o equilíbrio será alcançado. Por ora, os salários dos homens ainda são em média 40% maiores que os das mulheres.

Quer um exemplo de como essa segregação funciona estruturalmente? Com a crise da Covid-19, a renomada École Normale Supérieure de Paris cancelou as entrevistas presenciais para a admissão em seus cursos e aplicou uma prova escrita que não revelava a identidade dos candidatos. Sabe o que aconteceu? O teste selecionou duas vezes mais mulheres que homens. Um número fora da curva se comparado aos últimos cinco anos de seleção.

Esse é só mais um exemplo de que mulheres são sub-representadas em diversas áreas. Não é diferente na ciência, onde elas tendem a ser (erroneamente) consideradas menos aptas, sobretudo em STEM (ciências, tecnologia, engenharia e matemática).

Pensando nisso, há quase dois anos fiz uma provocação aos meus alunos: em que pé estava a liderança e participação feminina em revistas de nossa área de estudo? A presença de mulheres no corpo editorial de publicações científicas é fundamental, uma vez que são os editores que decidem o que virá à luz, direcionando assim a pesquisa nas diferentes áreas da ciência. Tais editores são em geral escolhidos segundo sua liderança e contribuição acadêmica, além do reconhecimento dos pares.

Nosso estudo, que foi liderado por mulheres, avaliou a desigualdade de gênero no corpo editorial de revistas da área de conservação da natureza. Examinamos o expediente de 31 revistas internacionais, no intuito de verificar se houve maior atuação feminina ao longo do tempo.

Não foi surpresa a significativa disparidade de gênero entre os editores: de cada dez profissionais, três eram mulheres. Se considerarmos o cargo de editor(a)-chefe, a porcentagem era ainda menor, meros 19%. Tal desproporção persistia em todos os continentes, independentemente do impacto do periódico no meio acadêmico. É um fenômeno global e consistente.

Tal discrepância numérica não envergonha apenas o campo das ciências de conservação: porcentagem inferior a 30% de mulheres editoras também ocorre em outras áreas da ciência, como ecologia, matemática e medicina. Embora tenha crescido o número de mulheres em cargos editoriais das revistas de conservação, seguindo o ritmo atual, estimamos que a igualdade entre os gêneros só será atingida daqui a 18 anos.

São diversos os fatores que explicam essa assimetria. A homofilia é um deles: homens tendem a publicar pesquisas em parceria com colegas do mesmo gênero e editores homens tendem a convidar profissionais do mesmo gênero para revisar os artigos submetidos às revistas. Esse padrão cria um círculo vicioso: homens publicam mais e por isso são mais frequentemente convidados para atuar como editores de revistas científicas.

Projetos e ações inclusivas focando questões de gênero, cor, etnia e idade têm dado gás à consciência da necessidade de diminuir as desigualdades. A própria ciência já provou que grupos de pesquisa e de trabalho que valorizam a diversidade são mais produtivos e capazes de encontrar melhores soluções para problemas complexos.

A conservação da biodiversidade é um desafio complexo por natureza, que beneficia uma comunidade diversa e inclusiva disposta a solucioná-lo. A Agenda 2030 da ONU listou entre seus 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) a garantia de oportunidades iguais para a liderança feminina em todos os níveis de deliberações. O mesmo acontece em outras agendas internacionais como a convenção da ONU sobre diversidade biológica. Do ponto de vista acadêmico, não precisamos esperar até 2038 para que mulheres possam tomar decisões importantes na ciência internacional da conservação.

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Rafael Loyola é biólogo e doutor em ecologia. É diretor científico da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável, professor da Universidade Federal de Goiás e membro da Academia Brasileira de Ciências.

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Mais perto da internet quântica graças a uma brasileira https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/07/29/mais-perto-da-internet-quantica-gracas-a-uma-brasileira/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2020/07/29/mais-perto-da-internet-quantica-gracas-a-uma-brasileira/#respond Wed, 29 Jul 2020 10:30:29 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/Serrapilheira_SJ_samurai_f_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=172 Por Clarice Cudischevitch

Samuraí Brito quase desistiu, mas acabou na capa da “Physical Review Letters”

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A internet quântica ainda não existe, mas é questão de tempo. Por ora, graças a uma mulher, brasileira, nordestina, descobrimos que as fibras óticas que hoje suportam a internet não darão conta da comunicação quântica em escala global.

Essa mulher é Samuraí Brito, autora principal de um estudo pioneiro que foi capa de uma das publicações sobre física mais importantes do mundo, a “Physical Review Letters”. A descoberta, embora soe pouco animadora, é importante para entendermos a estrutura necessária para operacionalizar a internet quântica, aquela que garantirá segurança absoluta na troca de informações. Ao mostrar as propriedades estatísticas de uma rede que ainda nem existe, a física abriu caminhos para as pesquisas que a tornarão possível.

Desde criança ela sabia que queria ser cientista. Uma das cinco mulheres na turma de cinquenta alunos na graduação em física na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a jovem se desafiava para superar suas próprias expectativas e se destacar em meio aos “meninos superpoderosos”, como ela diz. “A gente cresce num ambiente tão machista que acha que os nomes de sucesso sempre serão dos homens, e acaba querendo ser igual a eles.”

Ao se casar e engravidar ainda nos primeiros anos da faculdade, sentiu os olhares de reprovação. “Alguns professores falaram que eu deveria largar a física, como se não pudesse ser mãe e fazer ciência ao mesmo tempo. Não ouvi de ninguém ‘não desista’. Sumi por dois anos e quando voltei não era mais ninguém ali.”

Após concluir a licenciatura, ela se inscreveu no processo seletivo para o mestrado. Foi reprovada. Como teve gente que passou com notas mais baixas que as dela, Brito procurou o coordenador para entender o que tinha acontecido. Ele respondeu que não tinha explicação. Ela então decidiu cursar o bacharelado e se propôs a tirar nota máxima em todas as disciplinas. Dito e feito.

Uma das matérias obrigatórias para ser admitida no mestrado era física quântica, o terror dos alunos. Sem os pré-requisitos para se matricular no curso, Brito pediu para seguir as aulas como ouvinte. Foi uma das melhores alunas da turma. “No final do semestre, um professor me perguntou: ‘Você é casada? Tem filhos? Não estou entendendo suas notas. Não esperava esse rendimento’.” Foi convidada a ingressar no mestrado por, agora sim, “ter o perfil”.

Única aluna da turma no mestrado a tirar A em todas as disciplinas, na seleção do doutorado ela passou em primeiro lugar e conseguiu a melhor bolsa do CNPq, fundamental para que pudesse se manter financeiramente. No início do doutorado, outra gravidez inesperada. Como a qualificação seria pouco depois do parto, ela fez as provas no puerpério. Passou.

Samuraí é um nome indígena e significa “fruta doce”. Seu avô paterno era descendente de índio, mas foi a avó, cigana, que sonhou que viria uma neta e que a criança teria esse nome. Sua mãe tinha certeza de que teria um menino, e na época não havia dinheiro para o ultrassom.

Ela estudou em escolas públicas a vida toda. No ensino médio, queria ingressar na escola técnica e, sem dinheiro para o curso preparatório, participava de aulões promovidos por vereadores num ginásio em Natal. “Tínhamos que anotar nossas dúvidas num papel, amassar numa bolinha e jogar no palco. Os professores pegavam algumas e respondiam”, conta. “Fora o preconceito machista, não tive nenhuma decepção na carreira. Nunca me arrependi de ter escolhido essa área.”

Cada vez mais interessada pela relação entre a informação quântica e a teoria das redes (em geral aplicada à física clássica), Brito chegou ao pós-doc no Instituto Internacional de Física, em Natal. Integra o grupo de Rafael Chaves, com quem publicou o paper que foi parar na capa da PRL.

No estudo, a pesquisadora propõe o primeiro modelo de redes para a internet quântica e, por meio de simulações numéricas, prova que para criá-la precisaremos de uma estrutura diferente da atual. Seu grupo, no entanto, não parou por aí. Eles já cogitam uma solução alternativa para operar a internet do futuro: satélites distribuidores de emaranhamento quântico. São cenas de um próximo paper.

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Clarice Cudischevitch é jornalista, coordenadora do blog Ciência Fundamental e gestora de comunicação no Instituto Serrapilheira.

Esta coluna foi produzida especialmente para a campanha #CientistaTrabalhando, que celebra o Dia Nacional da Ciência. Ao longo do mês de julho, colunistas cedem seus espaços para abordar temas relacionados ao processo científico, em textos escritos por convidados ou por eles próprios.

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