Ciência fundamental https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br O que pensam os jovens cientistas no Brasil? Thu, 02 Dec 2021 15:29:05 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2  Por que o coração bate? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/11/29/por-que-o-coracao-bate/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/11/29/por-que-o-coracao-bate/#respond Mon, 29 Nov 2021 10:21:51 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/coração-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=600 Por Rossana Soletti

A origem dessa estrutura complexa

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O texto abaixo responde à pergunta de Pedro Henrique Nagai, paulistano, 5 anos, para a série “Perguntas de criança, respostas da ciência”.

A batida de um coração tem um simbolismo todo especial: ela significa vida, amor, paixão, ansiedade. Mas quando Pedro Henrique, de 5 anos, pergunta por que o coração bate, a resposta precisa ser reduzida a uma explicação biológica.

Vamos começar pelo coração já pronto, e depois voltamos para o início, quando nosso corpo ainda estava se formando. O coração é uma estrutura complexa, uma obra-prima que tem quatro câmaras: dois átrios, que recebem sangue do corpo e o repassam para dois ventrículos, que então bombeiam o sangue para grandes vasos. E ele produz seus próprios impulsos. Suas batidas são controladas por sinais elétricos que se espalham pelas células das câmaras cardíacas. Os átrios se contraem primeiro, para depois contrair os ventrículos, e assim surge a batida que a gente conhece.

Em geral imaginamos o coração como uma grande estrutura, mas ele não passa de um conjunto de células individuais: células musculares cardíacas formam as camadas de músculo; algumas células ajudam na sustentação e na forma do órgão; células nervosas coordenam os batimentos cardíacos e outras compõem os vasos sanguíneos. E é a interação entre todas elas que confere a habilidade de bombear sangue ao coração, o primeiro órgão funcional a ficar pronto, ainda quando somos um embrião. Uma das maiores descobertas sobre seu desenvolvimento foi constatar que muitas de suas células derivam de uma mesma célula-mãe logo nas primeiras semanas de vida.

À medida que o embrião vai se desenvolvendo, as células se diferenciam e se especializam, num processo comandado por sinais químicos. Algumas enviarão sinais a suas vizinhas, que se transformarão em células cardíacas, e por isso todas as células precursoras precisam estar no lugar certo e na hora certa. Por volta da terceira semana, o embrião é um sanduíche de três camadas e o coração começa a surgir na camada intermediária a partir de dois aglomerados de células que se diferenciam e originam outros tipos celulares.

Num embrião humano com quatro semanas, o coração é um tubo de duas câmaras que depois passará por um dobramento. Nessa etapa as células já fazem uma contração rítmica e há um fluxo de sangue, e essa pressão ajuda o coração a se dobrar e formar as quatro câmaras enquanto o embrião cresce. É por essa pulsação precoce que uma gestante consegue ouvir as batidas do coração do bebê logo nas primeiras semanas de gestação, quando o embrião ainda é muito primitivo.

Se separarmos essas células musculares cardíacas que se contraem e as pusermos em uma placa para serem cultivadas em laboratório, elas poderão reproduzir o batimento cardíaco. Se isoladas na placa, o batimento de cada célula é independente; quando aumentam em número e se encostam, o batimento começa a ser uníssono. Essa habilidade fantástica já foi observada por cientistas há mais de duas décadas e agora as pesquisas continuam, com o intuito de fazer com que essas células pulsantes se desenvolvam num coração de verdade, e de produzir tecido cardíaco a partir da transformação de outros tecidos nossos, como a pele, e encontrar explicações e tratamentos para diversas doenças.

E essas condições não são poucas: como vimos, com toda sua complexidade, depois que o coração está pronto tudo precisa funcionar em harmonia, como numa orquestra. As câmaras e as passagens entre elas precisam funcionar corretamente, as células devem bater no ritmo certo. Caso isso não aconteça, os batimentos podem ficar dessincronizados ou o volume de sangue necessário pode não ser bombeado. É por isso que as alterações cardíacas estão entre os defeitos mais frequentes em recém-nascidos, e que as doenças cardiovasculares estão entre as causas de morte mais comuns.

Há séculos os cientistas procuram compreender essa estrutura fantástica, complexa e poética, no encalço de mais longevidade e qualidade de vida para as pessoas.

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Rossana Soletti é doutora em ciências morfológicas e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Sabemos que as crianças fazem as melhores perguntas, e que a ciência pode ter boas respostas para elas. Todo mês, a série “Perguntas de criança, respostas da ciência” convida um cientista a responder uma dessas questões fundamentais. Você tem uma sugestão de pergunta? Veja aqui como colaborar.

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Epidemias e comportamentos: quem muda o quê? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/30/epidemias-e-comportamentos-quem-muda-o-que/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/30/epidemias-e-comportamentos-quem-muda-o-que/#respond Sat, 30 Oct 2021 10:14:01 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/manchuria-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=573 Por Mellanie Fontes-Dutra

O legado da pandemia da Covid-19

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Importantes vetores de nosso comportamento, os grandes desafios –como a pandemia da Covid-19– nos incitam a discutir o que provocou os cenários de conflagração e inspiram mudanças profundas, tanto em escala individual quanto social. Hoje, o que aplicamos na tentativa de contornar os impasses reflete um conjunto de conhecimentos e experiências de um tempo muitas vezes não tão remoto.

Resgatar medidas e enfrentamentos do passado pode favorecer estratégias mais eficazes no presente, daí a importância de relembrar crises sanitárias já enfrentadas –não só no Brasil, mas também no mundo.

Em 1910, um surto de uma doença misteriosa –que ficaria conhecida como praga da Manchúria – assolou o nordeste da China, somando 60 mil óbitos num período de quatro meses. Foi graças ao médico malaio Wu Lien-teh que uma ideia inovadora foi lançada, baseada em conclusões de que essa peste, causada pela bactéria Yersinia pestis (sim, você já ouviu falar dela na peste bubônica) poderia se transmitir de pessoa a pessoa, possivelmente por gotículas respiratórias. A partir de então, o médico aconselhou que se usassem máscaras para tratar pacientes infectados, protocolo que se estendeu a todos os profissionais de saúde, tivessem ou não às voltas com essa praga. E também recomendou a criação de centros de quarentena, bem como insistiu que as autoridades decretassem medidas de restrição da movimentação das pessoas. Lembra alguma coisa?

Logo depois, em 1918, o mundo conheceu a gripe espanhola, provocada pelo vírus influenza, responsável por cerca de 35 mil óbitos só no Brasil. Diante de todas as dificuldades e desafios para esse enfrentamento, a sociedade brasileira passou por uma transformação profunda e necessária envolvendo a saúde pública no país, uma vez que, em muitos lugares (no Brasil e no mundo), indivíduos de classe média ou alta detinham o privilégio de consultas médicas. Nossa história com os vírus influenza teve outros capítulos, um dos quais em 2009, com a tal “gripe suína” que deve estar na memória de muita gente. Foi então que se disseminou o uso do álcool gel, não mais um alien oferecido na entrada de um restaurante ou local público. Ao longo da epidemia dessa gripe, fechamos escolas e reduzimos a circulação das pessoas para enfrentar esse agente infeccioso. De novo, lembra alguma coisa?

Grandes pandemias apresentam um fator em comum: a transmissão alta e generalizada de um agente infeccioso que passa a infectar nossa espécie, e para o qual ainda não temos alternativa terapêutica. Mas experiências anteriores nos revelam que medidas não-farmacológicas, às quais podemos aderir tanto individual quanto socialmente, são críticas para conter a propagação. Por outro lado, modificações significativas na sociedade precisam ser um legado do pós-pandemia. Não devemos temê-las ou enxergá-las como uma tentativa de sequestro do que costumávamos entender como “normal” antes desse evento. São, antes, uma oportunidade de trilhar novos caminhos capazes de driblar situações futuras passíveis de se transformarem em grandes desafios, evitando assim incorrer em erros do passado. É possível ainda que muitas das mudanças daqui para frente, no comportamento da sociedade, já estivessem sendo preparadas, e acabaram sendo antecipadas como resposta à crise.

Nosso estilo de vida nos levou a grandes avanços tecnológicos, bem como a uma forte expansão territorial da nossa presença, todavia nos revelou o quanto precisamos amadurecer enquanto sociedade, entendendo nossa responsabilidade para com o planeta e todas as espécies que nele habitam. Mostrou-nos que talvez precisemos revisitar os conceitos de “viver em sociedade” e refletir como a evolução dessa sociedade está intrinsecamente relacionada às maneiras como o grupo trabalha de forma cooperativa, na saúde ou na doença.

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Mellanie Fontes-Dutra, biomédica, pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (RS) e coordenadora da Rede Análise Covid-19.

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Como as plantas identificam inimigos? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/27/como-as-plantas-identificam-inimigos/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/27/como-as-plantas-identificam-inimigos/#respond Wed, 27 Oct 2021 10:13:01 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/cacau-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=569 Por Pedro Lira

Paulo Teixeira busca a resposta nos pés de cacau da Bahia

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Quando, ainda no colegial, escutou falar do Projeto Genoma, Paulo Teixeira soube que seria cientista. As conversas com o pai, médico, sobre o genoma humano e as infinitas possibilidades da biologia molecular o levaram à carreira de pesquisador. Hoje professor da Universidade de São Paulo, seu laboratório investiga o sistema imunológico das plantas. Mais precisamente, como elas reconhecem os microrganismos que representam perigo.

Plantas, bem como humanos e outros animais, detectam a presença de organismos invasores. Tal percepção provoca uma resposta imune, mas os patógenos –fungos, vírus ou bactérias que causam doenças– possuem estratégias para manipular esse mecanismo de defesa. “A maior parte dos microrganismos com que as plantas interagem não são patogênicos. Algumas bactérias e fungos são benéficos e as ajudam a crescer, obter nutrientes, se defender de invasores. Como uma planta filtra o que é bom?”

O interesse do pesquisador se consolidou na graduação, na Unicamp. Na disciplina de genética e biologia molecular, ministrada pelo prof. Gonçalo Pereira, Teixeira teve seu primeiro contato com a genômica. “O professor –que anos depois se tornou meu orientador de doutorado– fez um miniprojeto genoma da vassoura-de-bruxa, doença que ataca os cacaueiros da Bahia. Simulamos todas as etapas de sequenciamento para entender a fundo o DNA do fungo”, conta.

O impacto da experiência foi tão positivo que Teixeira fez sua iniciação científica no laboratório de Pereira, onde trabalhou por anos. “Meu primeiro projeto de pesquisa, financiado pela Fapesp, foi para trabalhar com o fungo da vassoura-de-bruxa. Foi aí que mergulhei na relação entre plantas e microrganismos.” Quinze anos depois, ele ainda estuda os cacaueiros. “Olhando para trás, vejo que essa experiência na graduação construiu o que eu faço e o que sou como cientista.”

A pesquisa, que buscava melhorar a produção de cacau no Brasil, tomou outro rumo quando o pesquisador ingressou no pós-doutorado na Universidade da Carolina do Norte (EUA), com o objetivo de entender mais a imunidade das plantas. Adotou como objeto de estudo a Arabidopsis, organismo modelo sem importância econômica, mas de grande valor científico. “Mergulhei na ciência básica e exercitei minha criatividade na manipulação genética”, conta.

De volta ao Brasil, Teixeira retornou às origens, agora como professor. Em 2019, passou no concurso da USP e montou seu próprio laboratório, no qual onze cientistas investigam o sistema imune das plantas, incluindo um fenômeno muito conhecido mas pouco compreendido: a resistência do “não hospedeiro”. Funciona assim: em uma floresta habitada por diferentes espécies de plantas existe uma bactéria que adoece apenas uma espécie. Esta bactéria pode entrar em contato com outras plantas, as chamadas não hospedeiras, mas não lhes causa mal algum. O que determina a compatibilidade entre planta e patógeno?

A resposta talvez esteja nos receptores do sistema imune das plantas. “Os não hospedeiros conseguem detectar o patógeno usando receptores que a planta infectada não possui. O desafio é identificar quais são eles”, explica. No laboratório, eles utilizam como modelo uma bactéria que infecta laranjas. Mas em vez de estudar a ação do patógeno na laranjeira, injetam-no em plantas não hospedeiras, como o tomate e o tabaco. O passo seguinte é ver qual delas apresenta uma resposta imune. Ou seja, se o tomate ou o tabaco a reconhecem como ameaça. Em caso positivo, precisam saber como ocorre tal reconhecimento.

Uma bactéria invasora injeta no interior da célula em média trinta proteínas que são nocivas para a planta. A equipe se dedica a identificar qual a proteína responsável por ativar o sistema imunológico do hospedeiro. “É como estar numa sala com apenas uma lâmpada, mas trinta interruptores. Qual deles acende a lâmpada? É preciso testar um por um.”

Entender bem esse sistema pode, no futuro, ser a resposta para extinguir doenças como a vassoura-de-bruxa. Mas Teixeira avisa que pode levar um tempo até aplicar essas descobertas. “Estudo ciência básica para entender o que estou investigando. Primeiro vamos saber como funciona o sistema, depois transferir esse conhecimento para aplicar na prática.” Se o receptor imune de uma planta não hospedeira funcionar em uma planta hospedeira, a transferência de genes pode se tornar uma prática comum.

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Pedro Lira é jornalista e social media no Instituto Serrapilheira.

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O que é a vida? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/21/o-que-e-a-vida/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/21/o-que-e-a-vida/#respond Thu, 21 Oct 2021 10:05:12 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/vida-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=560 João Miguel de Oliveira, 6 anos, carioca, fez essa complexa pergunta fundamental para a série “Perguntas de criança, respostas da ciência”. O Serrapilheira chamou três cientistas de áreas diferentes para (tentar) respondê-la.

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A vida é a ordem em meio à desordem, por Hugo Aguilaniu, biólogo geneticista

Na condição de geneticista que pesquisa o envelhecimento, devo dizer que a definição mais estrita de vida não é, de fato, tão simples. A primeira ideia que vem à mente é que um ser vivo deve ser capaz de se mover. Se o movimento macroscópico não for sistemático, deve ser pelo menos molecular: as moléculas devem se transformar ativamente em outras moléculas. Embora isso seja observado em todos os seres vivos, o movimento molecular não é específico dos seres vivos, pois basta pôr duas moléculas reativas em presença uma da outra para dar início aos fluxos químicos, aos movimentos. É, portanto, uma condição necessária, mas não suficiente.

Outra característica da vida é a capacidade de se perpetuar. Os seres vivos são, em sua maioria, mortais, mas podem perpetuar a vida por meio da reprodução, quando então o código genético com todas as informações é fielmente replicado. Não é impossível, porém, que alguns organismos se perpetuem sem se reproduzir, por meio de uma eficiente regeneração. De todo modo, é sempre necessário perpetuar e/ou reproduzir nossa informação genética.

A replicação do código genético implica a capacidade de os seres vivos se manterem em ordem. Estar vivo é precisamente manter certa organização molecular dentro de si. Quando a vida sai de um organismo, podemos ver que os tecidos se decompõem e são logo reduzidos a compostos químicos individuais, não mais ordenados entre si. Essa manutenção da ordem é muito cara em termos energéticos: enquanto houver vida, ela não pode parar. O metabolismo e a ingestão de moléculas que carregam certa quantidade de energia química –o que chamamos nutrição– é que impulsionam esse processo.

Os seres vivos, portanto, consomem energia ao seu redor para se manter em ordem. De acordo com a segunda lei da termodinâmica, sabemos que a ordem mantida nos indivíduos vivos só é possível ao preço da criação de uma desordem. E essa, por sua vez, é ainda maior que a ordem – tanto que a entropia, a desordem do universo, cresce inexoravelmente.

Uma tabela periódica da vida, por Daniel Valente, físico

Para um físico, a pergunta vai muito além de “como funcionam os organismos vivos tais como os conhecemos”. Há várias comunidades de cientistas buscando uma compreensão que englobe a vida-como-a-conhecemos e a vida-como-poderia-ser.

Suponhamos, por um instante, uma busca por vida fora da Terra. Caso encontremos um sistema auto-organizado e autorreplicante, porém de composição molecular completamente distinta da nossa, como reconhecê-lo como vivo? Tornados, por exemplo, são estruturas auto-organizadas que “sobrevivem” enquanto há energia disponível na atmosfera, mas ninguém os considera organismos realmente vivos. Fogo também sobrevive enquanto dura a energia que o alimenta e, curiosamente, é capaz de se autorreplicar (pense na chama de uma vela quanto toca um novo pavio).

Se a auto-organização e a autorreplicação não são critérios suficientes, será que seria suficiente adicionar a evolução darwiniana à lista? Para constatar que isso não tem muita serventia, basta analisar a chamada “vida artificial” –programas de computador capazes de se autorreplicar, competir por recursos (alocação de memória, energia elétrica na máquina) e desenvolver características complexas a partir de programas simples. Mas essa vida artificial poderia ser posta em pé de igualdade com a vida natural?

Alternativamente à busca por definições, ou por uma lista de atributos, cientistas têm procurado respostas na física do comportamento emergente. Tentamos ver emergir, nos mais diversos sistemas (do nanométrico ao macroscópico) e contextos (contendo fontes de energia luminosa, elétrica, química, térmica), imitações e sobretudo generalizações de todas as possíveis características excepcionalmente similares às dos organismos vivos tal como os conhecemos (auto-organização, automontagem, autorrecuperação, autorreplicação, mutação, adaptação). Algumas buscas se inclinam para os aspectos energéticos da auto-organização longe do equilíbrio termodinâmico (generalizando a noção de metabolismo como um processo emergente na matéria), enquanto outras se inspiram nos aspectos informacionais (imitando o código genético e a capacidade de processamento de informação que emergem em toda célula viva).

Físicos do passado primeiro precisaram responder “o que é gravidade?” para depois criar os satélites artificiais e o GPS. Cientistas do presente têm tentado inventar toda sorte de vida artificial, na expectativa de um dia responder de modo exato a “o que é vida”. Quem sabe ainda haverá uma “tabela periódica da vida”, na qual ordenaremos os sistemas por seu “grau de vida” desde os obviamente não vivos até os obviamente vivos?

A vida é uma obra de Gaia, por Adriana Alves, geóloga

Para um geólogo, a vida envolve os processos compreendidos entre o nascimento e a morte. Entretanto, ao contrário dos biólogos, nós não nos referimos necessariamente apenas a animais, plantas e bactérias como seres vivos. Planetas, estrelas e até vulcões fazem parte desse grupo. Uma estrela, por exemplo, como o Sol, vive para queimar combustível e fornecer luz e calor no processo; um planeta vive para diminuir a temperatura de seu interior até que sua dinâmica interna se paralise. Nós, seres viventes clássicos da biologia, nos originamos da combinação quase milagrosa e acidental de carbono, oxigênio, nitrogênio e hidrogênio… E foi o surgimento dos seres fotossintetizantes  –aqueles que consomem gás carbônico como combustível e soltam oxigênio como subproduto dessa reação– que nos propiciou a atmosfera rica em oxigênio que boa parte dos seres que conhecemos necessitam para seguir vivendo.

Não fosse o pulsante dinamismo da Terra, os continentes não existiriam e o planeta ainda seria uma bola de lava. Sem essa dinâmica tampouco haveria deriva continental, nem as placas tectônicas se encontrariam. Esse “não encontro” impossibilitaria a migração dos hominídeos, que existiriam isolados em algum ponto remoto da África.

Como uma mãe (Pacha Mama ou Gaia), a Terra nos fornece tudo o que precisamos para a vida biológica desde o surgimento da nossa (e de todas) espécie(s). Seja por influenciar a distribuição dos nutrientes do subsolo e a ocupação do território por caçadores coletores, seja por definir a distribuição de metais preciosos usados nos chips do computador em que ora escrevo, a vida humana e de todos os demais seres só se tornou viável por conta da dinâmica peculiar e caprichosa de Gaia.

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Hugo Aguilaniu é diretor-presidente do Instituto Serrapilheira, Daniel Valente é professor da UFMT e Adriana Alves é professora da USP.

Sabemos que as crianças fazem as melhores perguntas, e que a ciência pode ter boas respostas para elas. Todo mês, a série “Perguntas de criança, respostas da ciência” convida cientistas para responderem uma dessas questões fundamentais. Você tem uma sugestão de pergunta? Veja aqui como colaborar.

 

 

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O Nobel que urge e que arde https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/13/o-nobel-que-urge-e-que-arde/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/13/o-nobel-que-urge-e-que-arde/#respond Wed, 13 Oct 2021 14:21:38 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/serrapilheira_pimenta_horizontal-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=553 Por Marília Zaluar P. Guimarães

A experiência de trabalhar com um (futuro) vencedor do prêmio

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“Então pedi a meus alunos e pós-docs que provassem os extratos das diferentes pimentas que produzimos, e constatamos que os que mais ardiam provocavam uma corrente maior no VR1.” Em fevereiro de 1998, aluna de doutorado do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da UFRJ, eu estava em Buenos Aires para um curso de duas semanas de biologia molecular aplicada à neurociência. Ouvi essa frase de David Julius, um dos ganhadores do prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia anunciado no último dia 4 de outubro. Ele nos contava como tinha sido o trabalho que descrevia a descoberta do receptor TRPV1 (então nomeado VR1), publicado no ano anterior. E então o professor abriu um sorriso largo, meio travesso, que arrancou gargalhadas da turma. Perplexa pela complexidade da pesquisa, que acompanhava com dificuldade, pude apreciar seu humor fino e irônico, com o qual mais tarde me familiarizaria.

Naquele dia pensei que queria fazer meu pós-doutorado com o dr. Julius, a quem nos referíamos carinhosamente por DJ. Começamos a conversar sobre essa possibilidade e acabei me candidatando a uma bolsa Pew Latin American Fellows. Em setembro de 2000 eu chegava à nada-ensolarada-apesar-de-ser-na-Califórnia São Francisco, onde me juntei a um time pequeno de pós-docs e alunos de doutorado.

No trabalho seminal sobre o TRPV1, Julius e colaboradores mostraram pela primeira vez como um sinal potencialmente doloroso pode se converter em uma mudança elétrica dos neurônios sensitivos. Já se sabia que substâncias pungentes como a capsaicina, presente em pimentas como a malagueta, excitavam esses neurônios. Mas como? Eles conseguiram clonar, ou obter múltiplas cópias de um gene que chamaram de VR1, responsável por codificar uma proteína capaz de conferir às células a capacidade de responder à capsaicina (evidentemente, a células desprovidas de tal habilidade). Aí viram que se tratava de uma proteína da superfície dos neurônios que permite a passagem de eletricidade na presença de determinados estímulos. Ou seja, ela traduz o sinal doloroso para a língua que os neurônios entendem muito bem.

Continuando a estudar esse clone, os pesquisadores constataram que ele também promovia respostas a temperaturas acima de 43 graus centígrados e que era modulado positivamente por prótons, ou soluções ácidas. Hoje sabemos que múltiplas vias de sinalização e moléculas exógenas, como por exemplo toxinas de aracnídeos, agem sobre essa proteína. Esses achados foram muito importantes para compreender a fisiologia da dor e têm potencialmente um impacto grande na busca de novos medicamentos analgésicos, uma vez que o TRPV1 é central em vários tipos de dor. Além da dor aguda, ele participa da dor inflamatória e da neuropática, essa última de difícil controle com os fármacos correntes.

Mas voltando ao trabalho de 1997. Com uma das células que eles fizeram produzir o VR1/TRPV1, registraram as variações elétricas induzidas pelos extratos de pimentas. Viram que quanto mais picante a pimenta, mais capsaicina, mais corrente elétrica. Eles precisavam mostrar essa atividade dos extratos nesse artigo, com as fotos das pimentas correspondentes? Provavelmente não, a atividade da capsaicina pura ou moléculas correlatas seria mais do que convincente. Mas foi um experimento de uma elegância marcante, traço presente na maioria das publicações do grupo liderado por Julius desde então.

Julius é reconhecido pelo cuidado com a escrita de seus artigos, sempre relatando os resultados de maneira muito clara e direta, sem recorrer a subterfúgios como falácias de lógica ou “torturas” da estatística. E ele prima por publicar poucos artigos por ano, dois ou três, mas sempre de alto impacto. Além disso, ao escolher as perguntas científicas, ele é de uma clareza de foco admirável, sobretudo aos olhos de uma pessoa dispersiva como eu. Por todas essas características profissionais e pessoais, e pelo conjunto de sua obra desde 1997, não foi surpresa quando pipocaram inúmeras mensagens informando que ele tinha sido laureado com o Nobel no dia 5. Já sabíamos que esse dia viria, e aliás esse Nobel urgia. E arde meu orgulho de ter trabalhado com esse pesquisador admirável.

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Marília Zaluar P. Guimarães é professora associada do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ e pesquisadora colaboradora do IDOR.

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O controle da malária pode estar no cardápio de um protozoário https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/06/o-controle-da-malaria-pode-estar-no-cardapio-de-um-protozoario/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/06/o-controle-da-malaria-pode-estar-no-cardapio-de-um-protozoario/#respond Wed, 06 Oct 2021 10:09:29 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/serrapilheira_malaria_blog_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=541 Por Fabio Gomes

Como o Plasmodium monta um exército especializado na transmissão da doença

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Há décadas, uma questão vem intrigando os pesquisadores da malária: como o Plasmodium, o protozoário causador da doença, coordena sua multiplicação e monta um exército de células altamente especializadas na infecção dos mosquitos que a transmitem? Na pesquisa sobre esse fenômeno pode estar a chave para o combate a esse mal que mata mais de 400 mil pessoas por ano no planeta.

Os principais sintomas da doença começam dias depois da picada do mosquito, quando o Plasmodium infecta e rompe nossas hemácias, as células sanguíneas responsáveis pelo transporte de gases. Na verdade, o que induz a febre típica da malária é esse rompimento de células, que ocorre em “ciclos de replicação” – daí a febre periódica da pessoa infectada. Ao longo desse ciclo, enquanto a maior parte dos parasitos se multiplicam em novas células que infectarão novas hemácias, outros se diferenciam em gametócitos, forma do invasor especializada na infecção de mosquitos. Os mecanismos desse processo não são bem compreendidos, mas alguns estudos sugerem que o apetite desses organismos é parte da equação.

Como outros parasitos, o Plasmodium utiliza os nutrientes do corpo do seu hospedeiro. As hemácias que eles infectam estão repletas de hemoglobina, proteína que se liga às moléculas de oxigênio e as transporta por nosso corpo. A hemoglobina presente na célula infectada é uma importante fonte de alimento para ele, mas não oferece um cardápio completo. Assim, ele vai buscar outros alimentos fora da célula infectada, incluindo outras fontes de aminoácidos, lipídeos e açúcares.

A glicose, o principal açúcar usado como fonte de energia, é um desses nutrientes “capturados”, e ao que tudo indica é peça central da coordenação da multiplicação do invasor. Em uma pesquisa com macacos infectados, pesquisadores constataram que uma dieta com teor reduzido de açúcares (hipocalórica) levava a uma redução das taxas de proliferação do Plasmodium. No entanto, outros nutrientes também participam da coordenação do ciclo de vida desse protozoário. Em um estudo recente, cientistas de Harvard e da Universidade de Glasgow apontaram para o papel da lisofosfatidilcolina durante a produção dos gametócitos. Importante componente de nossas membranas e do sangue, esse lipídeo também atua na regulação de nossa resposta imune. Ao longo da progressão da malária, ocorre uma redução dos níveis de lisofosfatidilcolina e de outros lipídios são consumidos à medida que a infecção progride. O usurpador detecta essa redução e, quando a lisofosfatidilcolina atinge um nível muito baixo, surgem as formas capazes de infectar os mosquitos.

Ao que tudo indica, o parasito identifica quando ele já retirou muitos recursos do hospedeiro e precisa migrar para um novo. Ainda faltam, porém, muitas peças nesse quebra-cabeça. Por exemplo, parece haver diferenças na dinâmica de formação de gametócitos entre as diferentes espécies de Plasmodium. Também existe uma sofisticada coordenação genética desse processo, e os cientistas ainda não entendem perfeitamente como o apetite dessas espécies coordena essa mecânica. Por outro lado, essas pistas incentivam novos estudos para refinar esse entendimento.

A administração de fármacos capazes de agir e matar os gametócitos é essencial para o controle da malária. No entanto, as principais drogas hoje disponíveis podem causar a destruição de hemácias em pessoas com deficiência da enzima G6PD, doença que afeta cerca de 400 milhões de pessoas no mundo. A necessidade do uso cuidadoso dessas drogas, incluindo a implementação de testes para triagem dessa deficiência, acaba limitando a administração do medicamento. Desvendar os mecanismos associados ao desenvolvimento da infecção e à formação de gametócitos pode ser um passo fundamental para identificar novos fármacos que possam bloquear esse processo e a infecção de novos mosquitos.

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Fabio Gomes é professor do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da UFRJ e membro do Laboratório de Ultraestrutura Celular Hertha Meyer. Twitter: @plasmovet

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Por que o coronavírus evolui mais rápido que a gente? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/09/28/por-que-o-coronavirus-evolui-mais-rapido-que-a-gente/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/09/28/por-que-o-coronavirus-evolui-mais-rapido-que-a-gente/#respond Tue, 28 Sep 2021 14:33:31 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/serrapilheira_mutacoes_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=537 Por Murilo Bomfim

Os vírus têm mais filhos em um dia do que podemos ter durante a vida inteira

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O texto abaixo responde à pergunta feita por Amílcar Borges de Jesus, baiano, 9 anos, para a série “Perguntas de criança, respostas da ciência”.

O combate à pandemia já não estava fácil há cerca de um ano, quando a variante Alpha do novo coronavírus deu as caras no Reino Unido e complicou ainda mais a situação. De lá para cá, outras variantes foram identificadas, dando a sensação de que, mesmo com as vacinas, estamos enxugando gelo. O que explica essa evolução tão rápida?

Vírus são seres muito simples, feitos apenas de uma cápsula proteica e do seu material genético (DNA, RNA ou ambos). Quando eles se reproduzem, as informações genéticas são copiadas — e essas cópias estão sujeitas a erros, gerando mutações. É como um telefone sem fio: alguma informação diferente da história original sempre pode ser passada para frente.

É o acúmulo desses erros que forma uma variante. Não é apenas a biologia, no entanto, que explica por que o novo coronavírus evolui mais rápido que os humanos. A questão também é matemática. As mutações que ocorrem na reprodução podem levar a mudanças evolutivas. Se, enquanto espécie, temos novas gerações a cada vinte ou trinta anos, o vírus se replica a cada dez ou vinte minutos. Com uma reprodução mais frequente, as chances de acumular mutações são bem maiores.

Voltando à biologia, existem mecanismos específicos que nos diferenciam dos vírus. Um deles é o sistema de reparação. Quando uma célula humana é copiada, o organismo é capaz de fazer uma checagem em busca de erros. Se um erro é detectado, é corrigido — o que limita nossas mutações. Esse sistema, no entanto, é sujeito a falhas: nesses casos, podemos desenvolver doenças genéticas, por exemplo.

O novo coronavírus também é capaz de fazer reparos, porém suas detecções são muito menos precisas que as dos humanos. A maior parte dos vírus nem conta com esse sistema (fosse esse o caso do coronavírus, faltariam letras no alfabeto grego para nomear variantes).

Além disso, o corpo humano é perspicaz ao organizar suas células. Elas podem ser divididas em dois grupos: somáticas e germinativas. As somáticas compõem a maior parte do organismo. Estão, por exemplo, nos olhos, no fígado, na pele. Elas se reproduzem com mais frequência e podem gerar mutações diversas (que vão de alterações imperceptíveis até a criação de tumores). Mas essas mutações não são passadas aos descendentes. A hereditariedade é poder exclusivo das células germinativas –os óvulos e os espermatozoides. O corpo entende que as mutações que ocorrem nessas células são transmitidas à prole, por isso o sistema de reparo das germinativas é especialmente rígido. Já no universo dos vírus, qualquer mutação é hereditária.

Ser vírus, no entanto, tem lá suas vantagens. A identificação da variante Alpha foi uma surpresa para a comunidade científica que acompanhava as mutações de perto. “Víamos um genoma estável e, de repente, surge uma variante com quinze, vinte mutações”, diz o geneticista Hugo Aguilaniu, diretor-presidente do Instituto Serrapilheira. Ele conta que isso é possível quando o vírus encontra um “reservatório”– um lugar onde ele pode se replicar sem ser percebido.

Existem duas teorias para explicar esta aparição repentina das variantes. Uma delas é a reprodução em pessoas imunodeprimidas, que podem abrigar o vírus por meses. Neste período, as mutações se acumulam e a pessoa infectada pode transmitir um coronavírus um pouco diferente daquele que a infectou.

A outra possibilidade é que o novo coronavírus tenha encontrado um reservatório não em humanos, mas em outros animais. Uma espécie suspeita são os visons, sacrificados em massa em países europeus por estarem infectados pelo patógeno. Neste caso, o vírus rapidamente se alastra pelo grupo, sofre mutações e pode voltar a infectar humanos.

Mesmo com tantas variantes, vacinar populações não é enxugar gelo. Enquanto vamos criando resistência contra casos graves de Covid-19, a tendência é que o vírus se torne menos agressivo à saúde humana, talvez sendo comparado a um resfriado qualquer. É bom para nós, que poderemos, enfim, nos livrar da pandemia, e bom para ele, que vai poder se replicar sem virar manchete.

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Murilo Bomfim é jornalista.

Sabemos que as crianças fazem as melhores perguntas, e que a ciência pode ter boas respostas para elas. Todo mês, a série “Perguntas de criança, respostas da ciência” convida um cientista a responder uma dessas questões fundamentais. Você tem uma sugestão de pergunta? Veja aqui como colaborar.

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O paradoxo do baixo peso ao nascer https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/09/14/o-paradoxo-do-baixo-peso-ao-nascer/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/09/14/o-paradoxo-do-baixo-peso-ao-nascer/#respond Tue, 14 Sep 2021 10:12:33 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/marcel-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=529 Por Marcel Ribeiro-Dantas

Ajustes bem-intencionados podem nos levar a estimativas erradas

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A taxa de mortalidade em recém-nascidos é maior entre aqueles que nascem com baixo peso. Recém- nascidos de mães fumantes têm maior chance de nascer com baixo peso. Paradoxalmente, recém-nascidos com baixo peso cujas mães são fumantes têm uma taxa de mortalidade menor que recém-nascidos com baixo peso de mães não fumantes. Então fumar é bom?

O bioestatístico Jacob Yerushalmy, israelense naturalizado americano, apresentou esse argumento pela primeira vez em 1964, quando já havia o consenso de que o cigarro era prejudicial à saúde. Mas apenas em 2006 esse paradoxo foi satisfatoriamente explicado –Yerushalmy havia morrido mais de três décadas antes.

Os dados que o pesquisador havia recolhido não eram fruto de uma olhadinha superficial, já que ele foi responsável por um estudo com mais de 15 mil crianças em São Francisco, nos Estados Unidos. Vários estudos já mostravam que recém-nascidos de mães fumantes pesavam menos e, como o baixo peso estava associado a um maior risco de óbito, se esperava que isso implicasse uma mortalidade maior. O próprio Yerushalmy discutiu esse assunto com cautela, mal acreditando no que os números lhe diziam.

Cerca de duas décadas mais tarde, o americano David Sackett, um dos pais da medicina baseada em evidência, se deparou com um problema semelhante. Ao analisar 257 pacientes hospitalizados, ele detectou uma associação estatística forte entre aqueles com doenças locomotoras e doenças respiratórias, ou seja, era possível fazer predições sobre uma das condições ao saber se o paciente tinha tido a outra. Havia plausibilidade nesse achado, já que doenças locomotoras podiam levar a inatividade, o que poderia acarretar um quadro de doença respiratória. Sabemos, porém, que correlação não implica causalidade. Em um episódio nos Estados Unidos, por exemplo, foi observado que sempre que a venda de sorvete aumentava, havia mais ataques de tubarão. Estaria o consumo de sorvete provocando os tubarões!? Não! No verão as pessoas compram mais sorvete e vão mais à praia. Já no inverno, se ninguém entra na água, o tubarão fica a ver navios.

Foi por compreender a possibilidade de existência de vieses nos dados hospitalares que Sackett repetiu sua análise com 2783 indivíduos, incluindo pacientes não hospitalizados. Para sua surpresa, se antes havia uma correlação forte –centenas de pacientes acompanhados de perto, plausibilidade biológica–, agora as duas condições pareciam não ter nada a ver uma com a outra. (Lembre-se que o número de indivíduos na primeira análise não era desprezível: foram mais de 15 mil as crianças estudadas por Yerushalmy.)

O fenômeno que ocorreu nesses dois estudos é conhecido como viés de colisão. O termo colisão vem da representação gráfica das relações causais: A → B ← C. A e C causam B e as setas “colidem” em B. Em algumas análises de dados, existem razões para ajustarmos nossas medidas com base em certas condições –como por exemplo não misturar alhos com bugalhos, ou seja, não comparar laranjas com bananas. Esse tipo de intuição leva muitos pesquisadores a achar que devem ajustar suas variáveis de interesse por todas as demais variáveis medidas, como se mais sempre fosse melhor.

Hoje, no entanto, é sabido que algumas variáveis, chamadas colisoras, não precisam ser ajustadas, e que se forem irão causar o efeito contrário: enviesar a análise, em vez de remover viés. O que Sackett fez foi ajustar por uma variável colisora: hospitalização (doenças locomotoras → hospitalização ← doenças respiratórias). Em alguns casos pesquisadores não escolhem estudar apenas pacientes hospitalizados: investigam o que está ao seu alcance. Já Yerushalmy tomou a decisão de observar apenas crianças que nasceram com baixo peso (fumar durante gestação → baixo peso ← outras causas para baixo peso).

Um raciocínio que elucida o paradoxo do baixo peso ao nascer é que existem várias razões que podem causá-lo, como anomalias genéticas graves, com um efeito negativo mais forte que o provocado por mães fumantes durante a gestação. Digamos, hipoteticamente, que 10% dos bebês com baixo peso ao nascer, filhos de mães fumantes, irão a óbito, mas que outras causas para o baixo peso levam ao óbito em 50% dos casos. Nesse caso é melhor ter baixo peso porque a mãe fumou do que por outras causas mais graves (e cujas mães não fumavam). Isso não significa que é melhor fumar, mas que nesse caso específico (nascer com baixo peso) existem causas mais letais. Se considerarmos todos os bebês, com baixo peso ou não, a mortalidade é muito menor em bebês de mães que não fumaram. Já no caso de Sackett, pacientes graves eram hospitalizados. Ao observar não só pacientes hospitalizados, era possível ver o dado sem viés, isto é, que as duas condições tinham uma relação muito fraca entre elas, se é que existia.

Esse paradoxo por muito tempo nos intrigou e, mesmo solucionado, sua mensagem principal segue pouco conhecida:  ao contrário da crença de que quanto mais variáveis ajustadas melhor, existem aquelas cujo ajuste pode enviesar a análise.

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Marcel Ribeiro-Dantas é pesquisador no Institut Curie, parte da PSL Research University e doutorando na Universidade Sorbonne, onde pesquisa Inferência Causal em dados observacionais da área de saúde.

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Uma dor chamada fantasma https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/08/31/uma-dor-chamada-fantasma/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/08/31/uma-dor-chamada-fantasma/#respond Tue, 31 Aug 2021 10:15:36 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/dor-fantasma-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=523 Por Renata Fontanetto

Por que algumas pessoas sentem membros que já não existem?

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“Pés, para que os quero se tenho asas para voar.” A frase acompanha um desenho de Frida Kahlo feito dias antes de ela ter a perna direita amputada. Em tempos de Paralimpíadas, a performance impressionante de atletas que perderam um membro chama mais atenção para esse tipo de deficiência. Para muitas pessoas, a experiência de amputação pode se desdobrar em situações que a ciência ainda busca compreender.

Em torno de 80% dos casos em que um membro ou órgão é retirado, seja de forma planejada ou em cirurgias de emergência, a pessoa continua sentindo como se ele existisse. Isso se chama sensação do membro fantasma: a presença daquela parte do corpo que se foi. Hoje, sabe-se que isso acontece devido a mudanças fisiológicas decorrentes da amputação.

A incidência dessa sensação é maior quando a experiência é traumática, explica Bárbara Pires, profissional de educação física e doutora em ciências médicas pelo Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino, Idor. Além disso, a literatura é mais rica em relatos que se referem a membros, como braços e pernas, a respeito dos quais os pacientes mencionam coceira, formigamento, pressão e até mesmo movimento –voluntário ou involuntário. Uma outra manifestação é a dor, que costuma ser crônica e pode durar anos.

Algumas hipóteses científicas buscam entender os mecanismos associados a ela e por que ocorre: as hipóteses ditas periféricas, as centrais e as contextuais. As periféricas tentam destrinchar o fenômeno do ponto de vista da periferia corporal. No coto da amputação, alguns pacientes desenvolvem neuromas, pequenos nódulos no nervo que podem desencadear a dor.

No entanto, segundo Pires, hoje essa sensação é mais bem explicada por mudanças que ocorrem no nível do sistema nervoso central. “Mesmo quando o coto regenera perfeitamente e não há nada na periferia corporal que possa justificá-la, é possível que a pessoa a sinta”, ela observa. Portanto, se as hipóteses periféricas não contemplam tudo, do cérebro derivam as chamadas hipóteses centrais. Afinal, um pedaço do corpo foi retirado, mas a área cerebral que o representa, não. Para a pesquisadora, é importante não descartar o terceiro grupo: o das hipóteses contextuais. Entram em cena condições psicológicas, como ansiedade e depressão, que não são descritas como a causa da dor, mas que podem afetar, por exemplo, a intensidade.

Se a resposta está no cérebro, analgésicos no local do coto ou por outras vias não apresentam bons resultados. As dores costumam retornar, e o paciente volta a ser medicado com doses cada vez maiores. Não há um tratamento certeiro, mas algumas terapias aliviam os sintomas, como a famosa terapia do espelho, criada pelo neurocientista indiano Vilayanur Ramachandran. Nela, o paciente posiciona o espelho de tal forma no meio do corpo que a parte espelhada fica de frente para o membro sadio. Ao realizar o movimento, a pessoa engana o cérebro, como se a perna ou o braço refletido fosse o membro amputado.

No doutorado, concluído em 2020, Pires se perguntou se conseguiria modular a atividade cerebral das regiões relacionadas à sensação e à dor fantasmas. Em conjunto com o grupo de especialistas do Idor, ela realizou um teste com pessoas amputadas de membro superior utilizando uma técnica de neuroimagem: o neurofeedback por ressonância magnética funcional. De forma secundária, analisou se a modulação da atividade cerebral afetava a dor.

Se é possível que a sensação ocorra por existir alguma alteração nas representações cerebrais do membro retirado, então vale a pena observar o cérebro ao vivo. Um dos pedidos da pesquisadora aos participantes do estudo era justamente que mexessem o membro fantasma dentro do aparelho de ressonância. Enquanto isso, uma equipe verificava a atividade cerebral. O trabalho contou com a orientação das cientistas Fernanda Tovar-Moll e Erika Rodrigues, além de ter sido realizado com o Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia, Into, referência no Sistema Único de Saúde.

“A partir do melhor entendimento dos mecanismos fisiológicos por trás desses fenômenos, podemos validar ou reforçar hipóteses e talvez desenvolver tratamentos mais eficazes futuramente”, afirma Pires. O artigo da tese está em fase de submissão, passando por avaliação, e em breve novas perspectivas ajudarão a construir o conhecimento científico acerca desses fantasmas.

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Renata Fontanetto é jornalista e mestra em divulgação científica pela Fiocruz.

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O tortuoso caminho da ciência https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/08/17/o-tortuoso-caminho-da-ciencia/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/08/17/o-tortuoso-caminho-da-ciencia/#respond Tue, 17 Aug 2021 10:12:29 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/colesterol-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=510 Por Tarciso Velho

Pássaros canoros não têm “mau colesterol”, e descobrimos isso por acaso

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Cientistas costumam acreditar que tempo e dedicação resolvem tudo. Se o problema persiste, as habilidades técnicas do pesquisador ficam sob suspeita… Ele então busca ajuda e se aprofunda na literatura específica. Quando uma solução se oferece, ele respira aliviado. Em retrospectiva, a visão da ciência parece clara, mas o caminho de construção do conhecimento científico pode ser cheio de imprevistos, como experimentei em certa ocasião.

Há uns dez anos, no laboratório do prof. Carlos Lois, então no Massachusetts Institute of Technology, o MIT, tentamos produzir linhagens geneticamente modificadas de pássaros canoros a fim de entender quais genes estariam envolvidos no aprendizado do canto.

Começamos tentando replicar uma técnica bem estabelecida para roedores: utilizar vetores virais para infectar embriões. Gerados em laboratório e incapazes de se reproduzir, tais vetores entram na célula quando uma de suas proteínas se liga a uma outra presente na superfície da célula-alvo: a famosa relação de chave e fechadura entre um ligante e seu receptor. Nesse caso, a chave era a proteína VSVg, que se liga ao receptor de lipoproteínas de baixa densidade, o LDLR, responsável pela captação do colesterol da fração LDL, o tal colesterol ruim, associado a doenças cardiovasculares. O material genético viral entra no núcleo, insere-se no DNA da célula e passa a ser herdado por suas filhas. Algumas das células infectadas vão formar as células sexuais e gerar gametas, e, portanto, os filhotes gerados vão carregar o gene de interesse. Ou seja, serão animais geneticamente modificados ou transgênicos.

Como uma dessas bolas com efeito, a tarefa de gerar pássaros transgênicos nos reservou várias surpresas. Alguns milhares de ovos foram injetados, e nada de pássaros transgênicos. Enfim, usando um vírus altamente concentrado, fomos bem-sucedidos. Aquele mesmo vírus, porém, em concentrações bem mais baixas, podia infectar células de inúmeros organismos. Estaríamos usando a chave errada?

Junto com o prof. Claudio Mello, da Oregon Health & Sciences University, fomos espiar o genoma dos pássaros canoros e constatamos que o receptor da chave empregada pelo vírus estava bastante modificado. Este foi o primeiro resultado inesperado, porque o LDLR, a fechadura, era até então considerado comum a todos os vertebrados. Alterações nele diminuem a captação de colesterol, aumentando os níveis de colesterol no sangue. O famoso colesterol alto.

O LDLR de pássaros apresentava lacunas em relação ao de outros animais. Uma comparação mostrou que o vírus infectava muito bem as células de galinha e muito mal as dos pássaros. Quando colocamos um LDLR intacto nestas duas espécies, confirmamos que ele facilitava a entrada viral em células de pássaros e não fazia diferença nenhuma nas de galinha, que já tinham seu próprio receptor intacto. O receptor alterado dos pássaros parece oferecer proteção contra o vírus. O que é ótimo para o pássaro e péssimo para gerar animais transgênicos.

Bem, pássaros não voam por aí tendo ataques cardíacos por causa de colesterol alto… Então veio a segunda surpresa. Uma vez que alterações no LDLR aumentam o colesterol em humanos, roedores e peixes, precisávamos aferir essa taxa nos pássaros canoros. Medimos o colesterol das duas aves (passarinho e galinha) e o comparamos com o de humanos. O exame de sangue revelou que não havia LDL no passarinho, o tal colesterol ruim. Isso é surpreendente, porque partículas de LDL são consideradas o principal carreador de colesterol. Mas tinha muito colesterol de alta densidade (HDL), o dito do bem. Parece então que o receptor divergiu, mas o sistema de transporte do colesterol também mudou. Não necessariamente nesta ordem.

O interessante é que pássaros canoros parecem ter resolvido o problema do mau colesterol com um mecanismo de transporte diferente, muito saudável, com altos níveis de HDL e nenhum LDL. Como isso ocorreu ainda não sabemos, mas vamos continuar seguindo essa bola com efeito e ver até onde ela nos leva. A explicação pode trazer novas ideias sobre a relação do colesterol e doenças cardiovasculares, e como esta questão pode ter sido resolvida na natureza.

Esse é o processo de muitas descobertas científicas: cheio de surpresas e nem sempre seguem uma linha reta.

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Tarciso Velho é neurocientista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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