Ciência fundamental https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br O que pensam os jovens cientistas no Brasil? Thu, 02 Dec 2021 15:29:05 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Ciência não é feita por indivíduos isolados https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/11/17/ciencia-nao-e-feita-por-individuos-isolados/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/11/17/ciencia-nao-e-feita-por-individuos-isolados/#respond Wed, 17 Nov 2021 10:13:28 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/serrapilheira_individuos_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=591 Por Kleber Neves

Como organizar o modo de fazer pesquisa?

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Diz a história que o físico Richard Feyman adotava uma estratégia para sua pesquisa: enumerava uma lista de problemas importantes e não resolvidos, e toda vez que ouvia a respeito de um novo método ou achado, verificava se aquela novidade colaborava para o avanço de um desses tópicos.

Só que ele era físico teórico, e seguir essa estratégia em biologia experimental é mais difícil. Ainda que um resultado recente indique um caminho novo, ou que uma técnica nova pareça útil, os equipamentos são caros e adquirir competência nas técnicas, estabelecer protocolos e aprender os macetes leva meses ou anos de prática.

Disso decorre uma especialização maior, que estreita o leque de técnicas e modelos disponíveis para cada cientista experimental. Como consequência, as linhas de pesquisa não são tão orientadas por uma pergunta fundamental quanto poderiam, mas sim pelas técnicas e modelos já disponíveis, que não são necessariamente os melhores para responder a pergunta. Guiar-se exclusivamente pela pergunta exige uma variedade de abordagens maior do que cabe em um único grupo de pesquisa.

Nessa mesma lógica, é difícil para um laboratório típico descrever sozinho algum achado científico por completo. Antes que a comunidade científica tome como robustos os achados iniciais, eles devem ser confirmados com outras técnicas, modelos, populações e abordagens que, de novo, vão além do que um laboratório consegue acomodar. De um laboratório que testa tratamentos em linhagens celulares, não se espera que ele também confirme os achados em modelos animais ou organize ensaios clínicos com humanos  –esse é o tema de um recente artigo que publicamos na revista Nature.

Se para responder a grandes perguntas ou obter resultados mais consistentes é preciso um esforço coletivo que ultrapassa os limites de um laboratório isolado, então precisamos de maneiras de facilitar a articulação de vários laboratórios em torno de um objetivo compartilhado. A biologia é cada vez mais colaborativa, mas essas colaborações tendem a ser pontuais, não se escoram num plano explícito e mais amplo que orquestre as atividades.

Ter um plano mais abrangente entre laboratórios requer a adoção de outros modelos de governança que não só podem aumentar a burocracia, como vão exigir um equilíbrio entre, de um lado, a missão comum, e, de outro, a autonomia dos grupos de pesquisa individuais. E essa é uma questão delicada: uma das razões que levam as pessoas a ser cientistas acadêmicas é exatamente a liberdade de conduzir uma linha de pesquisa própria.

De qualquer modo, “ciência grande” é um jeito cada vez mais comum de organizar a pesquisa. Exemplos como o Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN)  ou o Projeto Genoma Humano mostram que é possível executar projetos científicos de grande porte, coordenando vários grupos de pesquisa em torno de objetivos comuns. A própria Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade, da qual faço parte, é um exemplo desse tipo de projeto, assim como outras iniciativas recentes —Many Primates, Many Babies, Psychological Science Accelerator— focadas em realizar experimentos multicêntricos.

Um modelo particular é o da Defense Advanced Research Projects Agency, a DARPA, dos EUA, conhecida pelas apostas arriscadas que originaram grandes avanços como a Internet e o GPS, que serve de inspiração a várias outras agências norte-americanas.  A DARPA conta com diretores de programa, especialistas no tema da pesquisa, que não fazem a pesquisa em si: têm um papel executivo, coordenando e distribuindo fundos para pesquisa feita externamente, em diversas instituições.

É importante ressaltar que ciência “pequena”, financiada a partir de grupos de pesquisa individuais, e ciência “grande”, com projetos coordenados entre vários grupos,  não são os únicos formatos possíveis e nem são exclusivos. Pelo contrário, a ciência como um todo se beneficia de uma variedade de modelos de fomento e organização. Uma questão importante e não respondida na “ciência do financiamento da ciência” é em que casos e para quais perguntas científicas esses modelos “grandes” funcionam na biologia.

Se quisermos encontrar maneiras melhores de organizar a ciência, precisamos de dados sobre esses diferentes modelos. Ainda que uma iniciativa num novo formato de fomento venha a falhar, aprenderemos com isso talvez até mais do que se tivesse dado certo. Alguma experimentação institucional já existe nesse sentido: recentemente, o Wellcome Trust lançou o Wellcome Leap, cuja objetivo é ser a “DARPA da saúde”. Cada programa é coordenado por uma pessoa que recruta os esforços de uma dezena de laboratórios pelo mundo. Os ambiciosos desafios desses programas passam por psiquiatria personalizada, desenvolvimento de órgãos em laboratório e uma plataforma para antecipar a transição de células para um estado cancerígeno.

Ciência não é feita por indivíduos isolados. Uma forma de organizar a produção de conhecimento científico que reconheça isso pode contribuir não só para lidar com problemas de reprodutibilidade, mas também para que sejamos realmente guiados pelas grandes perguntas e problemas, e para que a ciência responda a mais perguntas que precisam ser respondidas em vez de simplesmente se limitar a perguntas que conseguimos responder.

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Kleber Neves é biomédico, neurocientista e metacientista. Faz parte da equipe coordenadora da Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade, na UFRJ.

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Epidemias e comportamentos: quem muda o quê? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/30/epidemias-e-comportamentos-quem-muda-o-que/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/10/30/epidemias-e-comportamentos-quem-muda-o-que/#respond Sat, 30 Oct 2021 10:14:01 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/manchuria-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=573 Por Mellanie Fontes-Dutra

O legado da pandemia da Covid-19

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Importantes vetores de nosso comportamento, os grandes desafios –como a pandemia da Covid-19– nos incitam a discutir o que provocou os cenários de conflagração e inspiram mudanças profundas, tanto em escala individual quanto social. Hoje, o que aplicamos na tentativa de contornar os impasses reflete um conjunto de conhecimentos e experiências de um tempo muitas vezes não tão remoto.

Resgatar medidas e enfrentamentos do passado pode favorecer estratégias mais eficazes no presente, daí a importância de relembrar crises sanitárias já enfrentadas –não só no Brasil, mas também no mundo.

Em 1910, um surto de uma doença misteriosa –que ficaria conhecida como praga da Manchúria – assolou o nordeste da China, somando 60 mil óbitos num período de quatro meses. Foi graças ao médico malaio Wu Lien-teh que uma ideia inovadora foi lançada, baseada em conclusões de que essa peste, causada pela bactéria Yersinia pestis (sim, você já ouviu falar dela na peste bubônica) poderia se transmitir de pessoa a pessoa, possivelmente por gotículas respiratórias. A partir de então, o médico aconselhou que se usassem máscaras para tratar pacientes infectados, protocolo que se estendeu a todos os profissionais de saúde, tivessem ou não às voltas com essa praga. E também recomendou a criação de centros de quarentena, bem como insistiu que as autoridades decretassem medidas de restrição da movimentação das pessoas. Lembra alguma coisa?

Logo depois, em 1918, o mundo conheceu a gripe espanhola, provocada pelo vírus influenza, responsável por cerca de 35 mil óbitos só no Brasil. Diante de todas as dificuldades e desafios para esse enfrentamento, a sociedade brasileira passou por uma transformação profunda e necessária envolvendo a saúde pública no país, uma vez que, em muitos lugares (no Brasil e no mundo), indivíduos de classe média ou alta detinham o privilégio de consultas médicas. Nossa história com os vírus influenza teve outros capítulos, um dos quais em 2009, com a tal “gripe suína” que deve estar na memória de muita gente. Foi então que se disseminou o uso do álcool gel, não mais um alien oferecido na entrada de um restaurante ou local público. Ao longo da epidemia dessa gripe, fechamos escolas e reduzimos a circulação das pessoas para enfrentar esse agente infeccioso. De novo, lembra alguma coisa?

Grandes pandemias apresentam um fator em comum: a transmissão alta e generalizada de um agente infeccioso que passa a infectar nossa espécie, e para o qual ainda não temos alternativa terapêutica. Mas experiências anteriores nos revelam que medidas não-farmacológicas, às quais podemos aderir tanto individual quanto socialmente, são críticas para conter a propagação. Por outro lado, modificações significativas na sociedade precisam ser um legado do pós-pandemia. Não devemos temê-las ou enxergá-las como uma tentativa de sequestro do que costumávamos entender como “normal” antes desse evento. São, antes, uma oportunidade de trilhar novos caminhos capazes de driblar situações futuras passíveis de se transformarem em grandes desafios, evitando assim incorrer em erros do passado. É possível ainda que muitas das mudanças daqui para frente, no comportamento da sociedade, já estivessem sendo preparadas, e acabaram sendo antecipadas como resposta à crise.

Nosso estilo de vida nos levou a grandes avanços tecnológicos, bem como a uma forte expansão territorial da nossa presença, todavia nos revelou o quanto precisamos amadurecer enquanto sociedade, entendendo nossa responsabilidade para com o planeta e todas as espécies que nele habitam. Mostrou-nos que talvez precisemos revisitar os conceitos de “viver em sociedade” e refletir como a evolução dessa sociedade está intrinsecamente relacionada às maneiras como o grupo trabalha de forma cooperativa, na saúde ou na doença.

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Mellanie Fontes-Dutra, biomédica, pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (RS) e coordenadora da Rede Análise Covid-19.

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O tortuoso caminho da ciência https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/08/17/o-tortuoso-caminho-da-ciencia/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/08/17/o-tortuoso-caminho-da-ciencia/#respond Tue, 17 Aug 2021 10:12:29 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/colesterol-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=510 Por Tarciso Velho

Pássaros canoros não têm “mau colesterol”, e descobrimos isso por acaso

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Cientistas costumam acreditar que tempo e dedicação resolvem tudo. Se o problema persiste, as habilidades técnicas do pesquisador ficam sob suspeita… Ele então busca ajuda e se aprofunda na literatura específica. Quando uma solução se oferece, ele respira aliviado. Em retrospectiva, a visão da ciência parece clara, mas o caminho de construção do conhecimento científico pode ser cheio de imprevistos, como experimentei em certa ocasião.

Há uns dez anos, no laboratório do prof. Carlos Lois, então no Massachusetts Institute of Technology, o MIT, tentamos produzir linhagens geneticamente modificadas de pássaros canoros a fim de entender quais genes estariam envolvidos no aprendizado do canto.

Começamos tentando replicar uma técnica bem estabelecida para roedores: utilizar vetores virais para infectar embriões. Gerados em laboratório e incapazes de se reproduzir, tais vetores entram na célula quando uma de suas proteínas se liga a uma outra presente na superfície da célula-alvo: a famosa relação de chave e fechadura entre um ligante e seu receptor. Nesse caso, a chave era a proteína VSVg, que se liga ao receptor de lipoproteínas de baixa densidade, o LDLR, responsável pela captação do colesterol da fração LDL, o tal colesterol ruim, associado a doenças cardiovasculares. O material genético viral entra no núcleo, insere-se no DNA da célula e passa a ser herdado por suas filhas. Algumas das células infectadas vão formar as células sexuais e gerar gametas, e, portanto, os filhotes gerados vão carregar o gene de interesse. Ou seja, serão animais geneticamente modificados ou transgênicos.

Como uma dessas bolas com efeito, a tarefa de gerar pássaros transgênicos nos reservou várias surpresas. Alguns milhares de ovos foram injetados, e nada de pássaros transgênicos. Enfim, usando um vírus altamente concentrado, fomos bem-sucedidos. Aquele mesmo vírus, porém, em concentrações bem mais baixas, podia infectar células de inúmeros organismos. Estaríamos usando a chave errada?

Junto com o prof. Claudio Mello, da Oregon Health & Sciences University, fomos espiar o genoma dos pássaros canoros e constatamos que o receptor da chave empregada pelo vírus estava bastante modificado. Este foi o primeiro resultado inesperado, porque o LDLR, a fechadura, era até então considerado comum a todos os vertebrados. Alterações nele diminuem a captação de colesterol, aumentando os níveis de colesterol no sangue. O famoso colesterol alto.

O LDLR de pássaros apresentava lacunas em relação ao de outros animais. Uma comparação mostrou que o vírus infectava muito bem as células de galinha e muito mal as dos pássaros. Quando colocamos um LDLR intacto nestas duas espécies, confirmamos que ele facilitava a entrada viral em células de pássaros e não fazia diferença nenhuma nas de galinha, que já tinham seu próprio receptor intacto. O receptor alterado dos pássaros parece oferecer proteção contra o vírus. O que é ótimo para o pássaro e péssimo para gerar animais transgênicos.

Bem, pássaros não voam por aí tendo ataques cardíacos por causa de colesterol alto… Então veio a segunda surpresa. Uma vez que alterações no LDLR aumentam o colesterol em humanos, roedores e peixes, precisávamos aferir essa taxa nos pássaros canoros. Medimos o colesterol das duas aves (passarinho e galinha) e o comparamos com o de humanos. O exame de sangue revelou que não havia LDL no passarinho, o tal colesterol ruim. Isso é surpreendente, porque partículas de LDL são consideradas o principal carreador de colesterol. Mas tinha muito colesterol de alta densidade (HDL), o dito do bem. Parece então que o receptor divergiu, mas o sistema de transporte do colesterol também mudou. Não necessariamente nesta ordem.

O interessante é que pássaros canoros parecem ter resolvido o problema do mau colesterol com um mecanismo de transporte diferente, muito saudável, com altos níveis de HDL e nenhum LDL. Como isso ocorreu ainda não sabemos, mas vamos continuar seguindo essa bola com efeito e ver até onde ela nos leva. A explicação pode trazer novas ideias sobre a relação do colesterol e doenças cardiovasculares, e como esta questão pode ter sido resolvida na natureza.

Esse é o processo de muitas descobertas científicas: cheio de surpresas e nem sempre seguem uma linha reta.

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Tarciso Velho é neurocientista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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Sobre os ombros dos nanicos https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/08/09/sobre-os-ombros-dos-nanicos/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/08/09/sobre-os-ombros-dos-nanicos/#respond Mon, 09 Aug 2021 10:07:11 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/blog_textodiversidade_mp-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=502 Por Luiz Augusto Campos

A desigualdade dentro da ciência

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“Se eu pude ver além foi porque estava sobre os ombros dos gigantes”. De mote da página inicial do Google Scholar a título de um best seller de Stephen Hawking, este adágio se tornou símbolo e síntese de como o avanço científico se daria. A história da frase é bem mais complexa, porém. Embora formulada séculos antes, sua versão mais famosa se origina de uma carta enviada por Isaac Newton em resposta a um de seus maiores desafetos, Robert Hooke, que reclamava da falta de reconhecimento de suas contribuições filosóficas às leis da gravidade.

À época, Newton não apenas reivindicava a autoria dessas leis como também discordava de Hooke quanto à importância do conhecimento especulativo para a ciência. Em sua perspectiva, as descobertas científicas seriam feitas em grande medida contra os gigantes, e não a partir deles. O que poucos sabem é que a menção ao gigantismo dos pensadores do passado era provavelmente uma referência irônica de Newton à baixa estatura de Hooke. Logo, mais do que sintetizar o avanço do conhecimento científico, a metáfora seria uma alfinetada sarcástica nas duvidosas teorias de seu interlocutor. Mais importante ainda, ele estava insinuando que Hooke estava longe de ser um desses titãs e que sua contribuição às teorias da gravidade era mínima.

Mas a menção recorrente dessa frase nos dias atuais não apenas contraria uma má interpretação de seu uso mais célebre. Embora sejamos seduzidos pelo heroísmo de precursores como Copérnico, Galileu, Einstein ou Pasteur, a lógica da descoberta científica hoje é muito distinta daquela de outrora. Nomes como Charles Darwin e Thomas Edison, por exemplo, trabalhavam solitários, com experimentos artesanais em laboratórios quase caseiros. Nada mais distante do trabalho coletivo, rotinizado e articulado em rede da ciência contemporânea. Nela, o papel de insights pessoais é importante, porém bem menor do que aquele desempenhado pelo acúmulo de conhecimento realizado por numerosos cientistas.

Não há demérito em deslocar a ênfase nos gigantes para os nanicos, ao contrário. Reconhecer o papel dos muitos em comparação aos poucos é lutar contra uma tendência intrínseca à ciência de distribuir financiamentos e prebendas acadêmicas para seletos indivíduos, invisibilizando o trabalho coletivo por detrás das grandes descobertas. Essa lógica reforça o que o sociólogo Robert Merton chamou de “efeito Mateus”: na ciência, como na parábola bíblica dos talentos, “a quem tem, mais será dado, e terá em grande quantidade, mas a quem não tem, até o que tem lhe será tirado”.

Não existe consenso sobre o que promove o reforço das desigualdades internas à ciência, mas os múltiplos filtros próprios da carreira acadêmica e a lógica altamente hierarquizada dos laboratórios parecem ser elementos centrais. O papel das lideranças na gestão de projetos complexos continua fundamental, mas elas próprias não ignoram as dificuldades em compartilhar as conquistas. Em entrevistas com laureados pelo Nobel na década 1970, Harriet Zuckerman já destacava o incômodo desses cientistas com o excessivo reconhecimento individual que recebiam. Muitos lamentavam que a atenção gerada pelo prêmio encobrisse o trabalho coletivo de numerosas equipes. Ao cunhar a noção de “efeito Matilda”, Margaret Rossiter ressaltou como essa invisibilização afetava as mulheres em particular, mas o mesmo parece se aplicar a cientistas de várias outras minorias políticas.

Afora os raros momentos de revolução paradigmática, a ciência não se faz sobre os ombros de gigantes, mas sobre as contribuições de nanicos. Mesmo as descobertas mais inovadoras costumam se valer do trabalho conjunto de numerosos cientistas que publicam centenas de artigos, trabalhando em laboratórios com equipes de assistentes em estruturas quase industriais, conectadas por redes globais de cooperação. Se as hierarquias acadêmicas têm seu papel na gestão, produção e reprodução da ciência, elas não podem redundar em uma acumulação sem fim de desigualdades e assimetrias. O desafio é, portanto, produzir uma estrutura de recompensas que premie grandes lideranças sem, contudo, ignorar o papel fundamental do trabalho coletivo, sobretudo daqueles e daquelas cientistas oriundos de grupos desfavorecidos e discriminados.

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Luiz Augusto Campos é professor de sociologia do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ, editor-chefe da revista acadêmica DADOS e pesquisador da diversidade no mundo acadêmico.

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La garantía soy yo https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/07/30/la-garantia-soy-yo/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/07/30/la-garantia-soy-yo/#respond Fri, 30 Jul 2021 13:00:01 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/final-la-garantia-soy-yo-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=491 Por Olavo Amaral

Como lidar com dados bons demais para serem verdade?

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O coro do tratamento precoce da Covid-19 sofreu um baque há duas semanas com a notícia de que um ensaio clínico egípcio demonstrando a eficácia da ivermectina contra a doença foi retirado da plataforma de preprints Research Square. O estudo mostrava uma redução de 90% na mortalidade de pacientes com doença severa em relação a um grupo que recebera hidroxicloroquina.

Muita gente não havia levado o trabalho a sério já de início, fosse por vir de pesquisadores obscuros, por estar escrito em um inglês macarrônico ou por apresentar um resultado espetacular demais para ser verdade.  Nada disso, porém, impediu que ele fosse incluído em diversas metanálises defendendo a ivermectina, sendo responsável por boa parte do efeito positivo observado nelas.

O artigo só foi retirado de circulação depois que o jornalista inglês Jack Lawrence resolveu investigá-lo ao perceber sinais de plágio. Uma das versões do artigo incluía um link para os dados originais —com acesso pago e protegido por senha. Num lance de sorte, Lawrence chutou um pouco criativo “1234” e viu a planilha do Excel com os dados brutos se materializar em sua tela.

Daí em diante, o trabalho do “policial de dados” Nick Brown mostrou não só inconsistências, mas evidências fortes de fraude: diversos pacientes aparentavam ser clones criados por copy-paste, com alguns dados modificados para disfarçar. Como resultado, a plataforma removeu o artigo e os autores ainda não se manifestaram.

A história é ilustrativa para analisar outro caso que vem ganhando espaço na mídia brasileira. Em março, uma equipe de pesquisadores liderada pelo endocrinologista Flávio Cadegiani divulgou em entrevista coletiva resultados espetaculares da proxalutamida, um medicamento antiandrogênico originalmente desenvolvido para tratar o câncer de próstata, que teria levado a uma redução de 92% na mortalidade de pacientes internados com Covid-19.

O grau de sucesso logo chamou a atenção de críticos, que o apontaram como improvável. Também contribuíram para as suspeitas a demora na publicação dos dados (que só foram surgir como preprint mais de três meses depois), a alta mortalidade no grupo placebo, o recrutamento meteórico de mais de seiscentos pacientes em menos de um mês e indícios de desvios em relação ao protocolo aprovado pelo comitê de ética.

Parte do ceticismo, porém, se deve a fatores não relacionados aos dados. Desde o início da pandemia, Cadegiani já havia alegado resultados positivos para o tratamento precoce com hidroxicloroquina, ivermectina, nitazoxanida e dutasterida, além da própria proxalutamida em pacientes ambulatoriais –uma sequência de sucessos no mínimo improvável. Seu colaborador Ricardo Zimerman foi convidado da bancada governista na CPI da pandemia e virou influenciador digital nas redes sociais e mídias de direita, marcando presença em canais como o de Osmar Terra. Vale ressaltar ainda que as repetidas menções do presidente à proxalutamida não chegam a funcionar como chancela acadêmica.

Seriam essas boas razões, porém, para fechar os olhos para um estudo que alega mais de 90% de eficácia para uma doença que causa milhões de mortes? O lema da Royal Society, afinal, é “nullius in verba” (“nas palavras de ninguém”): dados científicos deveriam ser mais importantes do que quem os apresenta.

A julgar pela recepção ao artigo, porém, a impessoalidade anda em baixa. Em matéria da revista Science, o cardiologista e guru da medicina digital Eric Topol afirma que os resultados são “bons demais pra serem verdade” e que “quase não há intervenções na história da medicina com benefícios dessa magnitude”. A mesma matéria menciona que o New England Journal of Medicine rejeitou o artigo com o argumento de que “os resultados são inesperadamente bons”, o que levaria à necessidade de revisão dos dados primários –que a revista alega não ter capacidade de fazer.

Após ter sua reputação exposta no escândalo da Surgisphere, é compreensível que o New England Journal não queira se arriscar com artigos que levantam suspeitas. Ainda assim, a heurística da decisão parece injustificável — bem como a afirmativa de que a maior revista médica do mundo não tem capacidade para checar os dados originais do estudo, que Cadegiani alega ter oferecido ao editor.

Dito isso, a oferta não parece valer para todo mundo. Ainda que o preprint informe que os dados estão disponíveis mediante solicitação justificada, meu pedido para recebê-los esbarrou na resposta de que “os autores preferem não compartilhá-los neste momento” –uma falsa disponibilidade que faz eco ao link protegido por senha do arquivo egípcio. Ao ser questionado no Twitter, Cadegiani justificou a negativa pela “não equidade de tratamento a diferentes estudos”, sugerindo que o fato de eu não ter solicitado dados de outros trabalhos colocava a minha imparcialidade em questão.

Por incrível que pareça, a recusa em disponibilizar dados originais de um estudo é uma realidade comum na ciência acadêmica. Na impossibilidade de acesso a eles, a crença nas afirmativas de um artigo quase sempre se baseia na palavra dos autores. As palavras podem parecer de ninguém, mas como dizia um comercial viral de algumas décadas atrás, “la garantía soy yo”. O que faz com que a reputação de quem fala conte, e muito, pra decidir no que acreditar.

Com isso, o debate acaba migrando para o jornalismo investigativo –ou para as redes sociais, onde virulentos argumentos “ad hominem” de ambos os lados tentam resolver uma questão insolúvel atacando as reputações de autores e críticos. E como em qualquer tema, cada grupo acabará encontrando a verdade que lhe convém, levando à polarização entre médicos e leigos.

O primeiro passo para a solução do problema é óbvio –os dados anonimizados de um estudo devem estar ao alcance de qualquer um que queira analisá-los. Ainda que estes dados sejam normalmente requisitados por agências reguladoras, e que boa parte dos artigos alegue que eles podem ser obtidos, eles raramente estão disponíveis de fato.

Mesmo com dados abertos, porém, fraudes mais bem feitas do que o tosco copy-paste do artigo egípcio podem ser difíceis de detectar. Com isso, é preciso evoluir para sistemas de auditoria que permitam checar se o que está escrito em um artigo reflete a realidade. Num mundo em que milhões de votos secretos são contados em horas, não deveria ser difícil verificar se pessoas que tomaram um medicamento num estudo estão vivas ou mortas. Estranhamente, porém, essa não parece ser uma prioridade na academia, que se satisfaz com um sistema baseado na confiança que acaba por semear a discórdia.

Eventualmente saberemos se as afirmações de Cadegiani e seus colegas são verdadeiras –a proxalutamida foi aprovada pela Anvisa para novos testes, e o governo paraguaio concedeu uma autorização de emergência para o uso do medicamento. Até lá, porém, passaremos vários meses prejudicando milhares de pessoas, seja por privá-las de um tratamento efetivo, seja por vender as falsas esperanças e os efeitos colaterais de um fármaco ineficaz e seus análogos comerciais, que já vêm sendo prescritos de modo “off-label” no Brasil.

Ambas as alternativas são inadmissíveis e atestam o fracasso da ciência acadêmica em exercer o grau mais básico de controle de qualidade –o de saber se um dado publicado é verdadeiro. Algo que deveria ser um direito de qualquer um, sem a necessidade de senhas, investigações ou súplicas aos autores.

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Olavo Amaral é professor do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis da UFRJ e coordenador da Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade.

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Revisão por pares: ruim com ela, pior sem ela https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/06/29/revisao-por-pares-ruim-com-ela-pior-sem-ela/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/06/29/revisao-por-pares-ruim-com-ela-pior-sem-ela/#respond Tue, 29 Jun 2021 15:44:21 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/newton_pares_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=459 Por Luiz Augusto Campos

O sistema não pode ser julgado como um todo pelos casos que ele deixa escapar

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O artigo abaixo é uma réplica ao texto “A roupa invisível da revisão por pares”, de Olavo Amaral, publicado no dia 19 de junho.

Outrora técnicas, expressões como “artigo revisado por pares” ou “trabalho disponível em preprint” hoje frequentam de discursos políticos a páginas de jornais. Nem a CPI da pandemia deixou de fora esses debates sobre os critérios de cientificidade de uma dada teoria. O texto de Olavo Amaral sobre o sistema de revisão anônima por pares, portanto, presta um excelente serviço à ciência e à divulgação científica.

Contudo, se suas críticas são quase todas pertinentes, o mesmo não pode ser dito de sua recusa veemente a esse mecanismo de avaliação, ainda hegemônico no mundo. Acredito que esse descompasso entre críticas e conclusões pode ser dirimido se levarmos em conta dois fatores: 1) embora os pareceres possam influir nas decisões das revistas científicas, eles não são a decisão em si, funcionando mais como subsídios a uma deliberação; 2) o texto toma o procedimento no varejo, destacando seus defeitos pontuais sem atentar para os efeitos gerais no atacado.

Há mais ou menos três séculos, a Sociedade Real de Londres decidiu que a publicação de artigos científicos em sua revista teria de ser aprovada por um comitê. Esse é considerado o marco inicial do sistema de revisão por pares, embora com o tempo ele tenha mudado drasticamente. Os primeiros textos da Sociedade Real eram avaliados em reuniões presenciais, nas quais associados da estirpe de Charles Darwin eram arguidos publicamente sobre suas descobertas.

No fim da Segunda Guerra Mundial, porém, o mundo científico havia adquirido magnitude industrial e global. Embora o princípio da avaliação tenha não apenas sobrevivido, mas se difundido globalmente, seus procedimentos mudaram. Na maioria das disciplinas, manuscritos submetidos a um periódico passaram a ser enviados a dois ou três especialistas cujo anonimato buscava garantir imparcialidade no julgamento e, ao mesmo tempo, proteger os pareceristas de eventuais retaliações.

Porém, menos do que juízos definitivos, os pareceres sempre foram vistos como subsídios a uma decisão editorial: seus limites e insuficiências podem e devem ser arbitrados por conselhos editoriais e pelo trabalho dos editores. É verdade que revisores não são treinados para a tarefa, que não costuma ser remunerada. Contudo, isso vale para muitas atividades da ciência, da requisição de financiamento a agências de fomento à gestão administrativa de um laboratório.

Sem dúvida, o segredo próprio a esse sistema de revisão abre margem para descaminhos perigosos. Na medida em que só editores sabem quem são autores e pareceristas, a margem de arbítrio é bastante ampla. Ainda assim, não é forçoso que a escolha de revisores seja aleatória ou que não haja controle do trabalho editorial. Periódicos acadêmicos são empreendimentos coletivos monitorados por conselhos e comitês. E parte importante, ainda que invisível, do trabalho de um editor científico é justamente estabelecer critérios de seleção de leitores adequados a determinadas áreas temáticas, privilegiando os melhores pareceristas.

Como pareceres apenas servem de subsídios à decisão editorial, baixas taxas de concordância entre pareceristas não são em si problemáticas. Para um editor em dúvida da qualidade de uma pesquisa, a multiplicidade de opiniões é francamente positiva. A depender da política editorial do periódico, artigos avaliados de modos distintos por vários revisores podem tanto ser vistos como ainda imaturos para publicação como importantes para fomentar certo debate.

Se artigos predatórios — sem sentido, equivocados ou escritos por má fé etc.– são “invariavelmente aceitos em algum lugar”, a rigor isso mostra que o sistema de revisão por pares serve para afastar das revistas mais prestigiadas as publicações mais duvidosas. Evidentemente o sistema não é infalível (como aliás quase nada no mundo real). Artigos equivocados ou mesmo criminosos já passaram pelo crivo de revistas importantes, do mesmo modo que já burlaram modelos de avaliação acadêmica alternativos. A cada artigo que lemos, revisado ou não, avaliamos a qualidade da pesquisa. Nada impede que textos já publicados sejam denunciados e retirados do ar, faz parte do jogo.

A coleção de artigos revisados que apresenta problemas sérios ou dados falsos é grande e continuará crescendo, infelizmente. Mas ela é infinitamente menor que a de bons artigos úteis ao avanço científico. O sistema não pode ser julgado como um todo pelos casos que ele deixa escapar, mas sim pela ciência que ele produz no agregado.

A revisão por pares não é exclusiva da ciência e plasma decisões em esferas as mais variadas. De fato, eu não entraria em um avião cuja qualidade foi aferida por dois pareceristas selecionados aleatoriamente, mas tal analogia não é adequada. Minha confiança em voar dentro de algo mais pesado que o ar vem da suposição, muitas vezes implícita, de que uma aeronave é fruto da soma de tecnologias e descobertas científicas cuja validade foi comprovada milhares de vezes em diferentes fases de seu processamento. Os próprios sistemas de auditagem, por exemplo, podem ser lidos como estratégias de revisão por pares, pois funcionam a partir da convocação de especialistas encarregados de avaliar uma teoria ou o funcionamento de uma tecnologia de modo imparcial.

Em seus três séculos de existência, a revisão científica se transformou profundamente: migrou dos julgamentos públicos e coletivos para os anônimos e secretos, moderados pelas editorias científicas. Hoje ela vive um momento de transformação com a difusão dos servidores preprints, que funcionam como redes sociais abertas nas quais qualquer cientista pode “curtir” ou comentar um manuscrito. Mas esses novos sistemas não parecem estar substituindo a boa e velha revisão anônima por pares, mas complementando-a. Para fazer um paralelo um tanto batido, tal revisão é como a democracia representativa: apesar de suas inúmeras falhas, as alternativas ainda demandam testes mais robustos (de preferência, revisados por pares).

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Luiz Augusto Campos é professor de sociologia do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ, editor-chefe da revista acadêmica DADOS e pesquisador da diversidade no mundo acadêmico.

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A roupa invisível da revisão por pares https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/06/19/a-roupa-invisivel-da-revisao-por-pares/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/06/19/a-roupa-invisivel-da-revisao-por-pares/#respond Sat, 19 Jun 2021 10:15:20 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/rei_nu-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=450 Por Olavo Amaral

Crivo de qualidade da ciência acadêmica emana autoridade, mas significa pouco

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Pode apostar: em qualquer discussão sobre dados científicos, cedo ou tarde alguém vai invocar o argumento do “artigo revisado por pares”, seja para dar crédito a uma afirmação, seja para desacreditá-la, caso a revisão não tenha acontecido.

O crivo da revisão por pares –a aprovação por pesquisadores independentes antes da publicação de um artigo– é tido como um bastião da pesquisa científica há décadas (ou mais de um século, dependendo da área), e para muitos delimita o que é considerado “ciência” e o que não é.

Em uma imagem icônica da Marcha pela Ciência em Washington, em 2017, vê-se em frente ao Capitólio um cartaz onde se lê “In peer review we trust”, numa alusão ao “In God we trust”. A substituição, porém, equivale a trocar uma crença dogmática por outra.

“Revisado por pares”, afinal, significa apenas que algumas pessoas –em geral duas ou três– analisaram um artigo e não viram razão para negar sua publicação. Como o processo costuma ocorrer a portas fechadas, não sabemos quem são essas pessoas, nem que opiniões emitiram, tampouco o que elas se deram ao trabalho de verificar.

Afora isso, os revisores não costumam ser treinados para a tarefa nem ter um direcionamento sobre o que revisar e não são pagos ou recompensados por seu trabalho, tendo assim pouco apoio ou estímulo para se dedicar ao parecer. Não surpreende que a concordância entre diferentes revisores seja mínima e por vezes beire o aleatório.

Como se não bastasse, eles atuam somente ao final do processo científico, quando problemas na coleta de dados já são irremediáveis. Pior ainda, trabalham com base no relato dos autores, e geralmente não têm acesso aos dados originais, o que os impede de detectar a maior parte dos erros e omissões que podem acontecer ao longo de um projeto.

Se nada disso faz você desconfiar de que algo está errado, imagine a aplicação da mesma lógica em outras áreas. Se uma companhia aérea lhe dissesse que delega seu controle de qualidade a dois ou três especialistas que examinam um relatório de algumas páginas sobre a construção de um avião já pronto, você embarcaria?

A confiança da comunidade científica na revisão por pares é ainda mais desconcertante dada a parca evidência sobre o impacto do processo na literatura científica. Comparações entre preprints –artigos postados antes da revisão por pares– e suas versões revisadas mostram que as diferenças de qualidade são pequenas, e que tanto o texto como as conclusões principais raramente mudam.

Quanto à função de filtro, o fracasso do sistema se revela ainda mais contundente. Artigos sem sentido, com erros crassos ou conclusões absurdas, elaborados com intenção jocosa, invariavelmente acabam aceitos em algum lugar. O problema é agravado pelos ditos “periódicos predatórios” –revistas que cobram por publicação e tem seus lucros maximizados pela ausência de rigor.

A pandemia de Covid-19 é fértil em exemplos da fragilidade do sistema. Revistas teoricamente revisadas por pares publicaram bizarrices como a de que a tecnologia 5G poderia produzir o SARS-CoV2. Enquanto isso, periódicos com editores ligados ao Institut Hospitalo-Universitaire Méditerranée Infection de Didier Raoult se transformaram numa vitrine enviesada de estudos defendendo o uso da hidroxicloroquina.

Seria fácil atribuir o problema a publicações de baixa qualidade, mas o escândalo mais notório da pandemia atingiu o Lancet e o New England Journal of Medicine, as revistas médicas mais respeitadas do mundo, que se viram obrigadas a retratar artigos com dados suspeitos de fabricação por parte da empresa Surgisphere.

O fato não surpreende: ainda que periódicos tradicionais costumem ser mais seletivos ao aceitar artigos, não há nada de tão diferente em seus processos de revisão. Além disso, a pressão para publicar nestas revistas pode estimular cientistas a dourar a pílula para tornar seus resultados mais atraentes. Com isso, usar a “publicação de impacto” como critério de qualidade não resolve o problema: visibilidade e confiabilidade, afinal, são coisas distintas.

No episódio da Surgisphere, críticos foram rápidos em apontar culpados, como o viés dos editores ou a pressa dos revisores. No fundo, porém, o responsável é o próprio sistema de revisão, que, sem acesso aos dados ou ao processo pelo qual foram obtidos, não tem capacidade de identificar fraudes bem feitas.

Se a revisão por pares não serve de régua, o que podemos chamar de “cientificamente comprovado”? A melhor resposta, um tanto tautológica, talvez seja “o consenso científico”. Mas identificá-lo nem sempre é óbvio. Posições de instituições e sociedades científicas são uma aproximação disso, mas elas têm seu lado político –que em casos como o das associações médicas brasileiras costuma flertar com o sindicalismo— e estão longe de ser isentas de viés.

A verdade é que não temos formas institucionais eficientes de demarcar o que é ciência confiável, o que faz uma falta enorme no debate público. Isso fica evidente no bater de cabeça de agências de checagem de fatos para lidar com as dezenas de artigos favoráveis e contrários ao tratamento precoce da Covid, uma questão complicada demais para ser resumida em “#fato” ou “#fake”.

Há muito a fazer, assim, para construir um selo de confiabilidade que vá além do “revisado por pares”. Isso só será alcançado, porém, se superarmos a crença de que dois ou três revisores examinando um PDF são o bastante para aferir a qualidade de um processo complexo como a pesquisa científica.

Exemplos de sucesso não faltam: auditorias, certificações e procedimentos- padrão são parte da rotina de aeroportos, construções civis e hospitais, e é de se perguntar por que são tão raros em instituições acadêmicas. E mesmo empreendimentos como a Wikipedia possuem processos de revisão e correção mais elaborados e robustos do que a anêmica e pouco transparente revisão por pares de artigos científicos.

Sem formas melhores de controle, a pesquisa acadêmica seguirá vulnerável a fraudes, erros e vieses, alimentando charlatanices com o carimbo de “cientificamente comprovado”. Essa é apenas a consequência natural de acreditar em um processo em que ninguém enxerga o que está sendo feito. Como na história infantil, o rei está nu sob a roupa invisível da revisão por pares, e às vezes é preciso uma criança, ou uma pandemia, para nos forçar a admiti-lo.

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Olavo Amaral é professor do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis da UFRJ e coordenador da Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade.

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Publicação científica: um mercado de luxo? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/04/30/publicacao-cientifica-um-mercado-de-luxo/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/04/30/publicacao-cientifica-um-mercado-de-luxo/#respond Fri, 30 Apr 2021 10:30:54 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/catarina_olavo_vitton_web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=391 Por Olavo Amaral

Quem gastaria muito mais para ter seu artigo na Nature? Quase todo mundo

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Uma das situações mais desafiadoras na carreira de um cientista é tentar explicar o sistema de publicação científica para as pessoas em geral. Como justificar que pesquisadores entreguem seu trabalho de graça a editoras estrangeiras, que lucram cobrando pelo acesso a ele? Ou que, além de não cobrar, eles às vezes paguem por isso?

Antes da internet, editoras comerciais eram necessárias para a divulgação de um trabalho científico: financiados por universidades ou governos, cientistas faziam pesquisa e atuavam como revisores de seus pares, delegando a tarefa de imprimir e distribuir artigos em papel a uma empresa que cobrava pelo produto de forma a manter o negócio viável.

A rápida migração online das revistas científicas na virada do século parecia anunciar mudanças: em 1995, a Forbes previu que a Elsevier, maior editora científica do mundo, seria a “primeira vítima da internet”. Passados 25 anos, o braço técnico-científico do grupo RELX, conglomerado multinacional no qual a editora se transformou, registra um faturamento anual de mais de 2,6 bilhões de libras, com margens de lucro entre 30 e 40%.

Tais custos são mantidos por bibliotecas universitárias e agências públicas ao redor do mundo, que pagam somas cada vez mais vultosas por artigos que suas próprias instituições produzem. No caso do Brasil, isso equivale a mais de 480 milhões de reais desembolsados pela CAPES nas assinaturas do Portal Periódicos em 2020.

O absurdo de um sistema que bloqueia o acesso a pesquisa feita com dinheiro público tem gerado apoio crescente ao modelo de acesso aberto, em que cientistas pagam uma taxa única para cobrir os custos de publicação do artigo e mantê-lo disponível. Recentemente, a União Europeia anunciou o Plan S, que determina que toda pesquisa financiada pelo bloco deve ser publicada nesse formato –política já adotada por outros financiadores, com graus variáveis de sucesso.

O resultado? Há alguns meses, a Nature, talvez a revista científica de maior prestígio no mundo, anunciou que seu preço para publicar um artigo em acesso aberto seria de 11.390 dólares.

O valor equivale no Brasil a cerca de dois anos e meio de uma bolsa de doutorado, ou à remuneração de dois mestrados inteiros. Ele é ainda mais estapafúrdio ao considerar-se que o custo médio dos serviços de uma revista científica tem sido estimado entre 200 e 1.000 dólares por publicação. Quem em sã consciência gastaria dezenas de vezes mais para ter seu artigo na Nature?

A resposta? Quase todo mundo. Não porque cientistas sejam pouco zelosos com seus orçamentos, mas precisamente pelo contrário: artigos em revistas de prestígio são o motor que garante reputação, empregos e recursos de pesquisa no mundo acadêmico. Como quem paga por uma bolsa Louis Vuitton, seus autores estão menos interessados no produto do que na marca.

A consequência é uma economia de prestígio que permite às grandes revistas cobrarem o que bem entendem, além de obterem mão-de-obra gratuita de cientistas ansiosos por associarem-se a suas marcas como revisores ou editores. Nesse mercado, não há espaço para renovação: mesmo concorrentes que ofereçam serviços melhores a um custo mais baixo levariam décadas para obter a reputação de uma Nature ou uma Science.

Com isso, pesquisadores de países como o Brasil se veem forçados a escolher entre duas alternativas eticamente questionáveis: deixar seus trabalhos serem bloqueados por paywalls para o lucro alheio, ou desperdiçar os escassos recursos de pesquisa do país com taxas de acesso aberto inflacionadas.

As saídas para o impasse existem, mas ainda são tímidas. Boicotes a editoras como a Elsevier ocorrem há mais de uma década, e corpos editoriais inteiros de revistas da editora têm renunciado para criar publicações independentes. O Sci-Hub, site pirata concebido por uma estudante do Cazaquistão, praticamente resolveu o problema da acessibilidade universal a artigos científicos. E o uso de preprints –versões não revisadas de artigos divulgados pelos autores– vem se tornando uma prática usual em cada vez mais áreas da ciência, com custo baixo o suficiente —cerca de 15 dólares por artigo submetido ao arXiv em 2020– para ser mantida por filantropia.

Todas essas notícias seriam positivas, se não fossem invisíveis para os processos de avaliação científica. Você não encontrará um campo para incluir preprints no Currículo Lattes do CNPq. E com o Qualis, que atrela a avaliação da produção científica das pós-graduações à revista de publicação, a CAPES obriga pesquisadores a se submeter às editoras –e a si mesma a gastar com suas assinaturas–, ainda que “não avaliar artigos por onde são publicados” seja a recomendação principal de manifestos sobre avaliação científica há uma década.

Ironicamente, o Brasil também criou o Scielo, talvez a mais bem-sucedida iniciativa de acesso aberto em grande escala no mundo, que por meio de uma infraestrutura mantida com verbas públicas garante que a maioria dos periódicos nacionais não cobre nem pelo acesso nem pela publicação. Dito isso, boa parte dos pesquisadores brasileiros não pode se dar ao luxo de usá-la, sob pena de rebaixar suas pós-graduações ao abdicar de revistas de maior renome.

Em resumo, temos um mercado em que o contribuinte paga para que a ciência seja produzida, paga para que ela seja publicada e paga para assinar as revistas que a publicam. O resultado disso tudo é que a maior parte da pesquisa produzida no mundo ainda é acessível a poucos, enquanto rios de dinheiro escoam dos cofres públicos para grandes corporações editoriais.

O mais triste é que o sistema poderia ser reformado com facilidade, não fossem os velhos cientistas que ditam suas regras tão apegados às publicações de alto impacto que os levaram à elite, e os novos tão obcecados por seguir o mesmo caminho dos velhos. E enquanto, por força do hábito e da inércia, eles entregam de graça conhecimento e recursos que sequer são seus, os acionistas da RELX riem à toa.

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Olavo Amaral é professor do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis da UFRJ e coordenador da Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade.

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O que fazer com os jovens que se inspiram nos cientistas de hoje? https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/04/22/o-que-fazer-com-os-jovens-que-se-inspiram-nos-cientistas-de-hoje/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/04/22/o-que-fazer-com-os-jovens-que-se-inspiram-nos-cientistas-de-hoje/#respond Thu, 22 Apr 2021 14:42:15 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/Faca-no-dente-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=382 Por Hugo Fernandes

Os holofotes jogados sobre nós na pandemia não podem ser em vão

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“Minha filha te acompanha e agora quer ser cientista!” A máscara esconde meu sorriso, mas creio que os olhos não. Saindo do elevador, peço entusiasmado que ele leve a menina a meu laboratório quando a pandemia tiver acabado.

A urgência da pandemia de covid-19 jogou holofotes em muitos de nós, cientistas. A angústia em explicar resultados complexos à população levou acadêmicos a programas de tevê, rádio, lives, revistas e jornais. Alguns saíram do anonimato para o status de celebridade, outros, já famosos na bolha científica, viraram figuras públicas, enquanto outros tantos aumentaram bem o volume do que já era algum barulhinho. Estou nesse último time, creio. Dezenas de entrevistas e milhares de seguidores fizeram com que a minha exposição, por consequência, trouxesse consigo a inspiração daquela garota.

Mas o que eu vou dizer para a filha do vizinho daqui a alguns anos, quando ela entrar na universidade e encontrar veteranos e pós-graduandos angustiados pela falta de perspectiva de mercado e carreira? Como vou explicar que, no mestrado, ela vai ter de se virar com uma bolsa equivalente aos 1500 reais de hoje, congelada há sete anos? E que vai exigir dedicação integral, pois é vetado ao bolsista exercer outra atividade? E que a opção de ter um emprego e cursar a pós ao mesmo tempo quase nunca combina com tempo hábil para desenvolver pesquisas de ponta?

Para explicar a situação, pensei numa analogia: “Vamos supor que seu pai ganhava 5 mil por mês e teve o salário cortado a cada ano até chegar a 1 mil reais, o que daria apenas para pagar o aluguel. Além disso, o valor mensal do vale-alimentação para toda a sua família passou a ser de meros cinco reais.”

A comparação seria proporcionalmente justa. Em 2014, o orçamento do principal órgão de fomento à pesquisa do país, o CNPq, era de mais de 13 bilhões de reais, corrigidos pela inflação. No ano passado, chegou a míseros 4 bilhões. Só que a maior parte desse dinheiro é destinada a pagamento de pessoal, sobretudo bolsistas de pós-graduação, que carregam a maior parte da produção científica brasileira nas costas. O valor reservado ao fomento à pesquisa, aquele usado para equipar laboratórios, comprar reagentes, pagar diárias e, de fato, alimentar a ciência brasileira, é de apenas 22 milhões para 2021. O fomento anual da maior agência do Brasil abasteceria não mais do que um único laboratório de alguma universidade mediana nos Estados Unidos.

Não, não vou frustrar a menina. Ao longo de sua vida, gostar de ciência lhe trará benefícios muito maiores do que as frustrações que ela possa sofrer ou não caso realmente queira seguir a carreira acadêmica. Porém, precisamos ter a responsabilidade moral de pressionar, pautar, espernear, se necessário, para que agentes políticos assumam a responsabilidade não só do sonho dessa garota, mas principalmente da única saída que temos para vencer a crise e trilhar um progresso justo: investir massivamente em pesquisa e desenvolvimento.

Espernear, porém, pouco adianta se quase nenhum daqueles que teoricamente nos representam enquanto cidadãos nos representam enquanto cientistas. Onde estão os cientistas no Congresso? Em meio à classe política, quem foi eleito sustentando essa pauta? Em meio aos pesquisadores, quem se dispõe a isso?

Muita gente não sabe, mas nem sempre foi assim. Não há como mencionar a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, por exemplo, sem ressaltar sua importância para o processo de redemocratização do país, graças à forte atuação política de diversos pesquisadores nacionais.

Que esses holofotes adquiridos em momento tão trágico possam iluminar um futuro espelhado nesse passado. Afinal, 2022 está logo aí. O brilho em nossos olhos que faz com que a juventude se apaixone pela ciência não pode vir desacompanhado da faca entre os dentes para evitar que ela seja sucateada.

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Hugo Fernandes é biólogo, professor da Universidade Estadual do Ceará e divulgador de ciência.

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Um herege na física https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/04/14/um-herege-na-fisica/ https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/04/14/um-herege-na-fisica/#respond Wed, 14 Apr 2021 12:03:07 +0000 https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/linoca-tsallis-web-300x215.jpg https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/?p=374 Por Murilo Bomfim

A controvérsia de Tsallis

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No século 16, Copérnico disse que a Terra girava em torno do Sol. No século seguinte Galileu Galilei confirmou e por isso acabou a vida em prisão domiciliar. Passados quase quatro séculos, outro físico desenvolveu ideias que não foram bem digeridas –dessa vez por seus pares, não pela Igreja.

Hoje professor emérito do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas e radicado no Rio de Janeiro, Constantino Tsallis nasceu na Grécia e migrou para a Argentina. Fez doutorado e lecionou na Universidade de Paris, fixando-se no Brasil em 1975. Talvez os deslocamentos já anunciassem o tema de sua vida, a entropia, ou o grau de desordem de um sistema.

Tsallis propôs uma generalização da entropia. Para explicar, é importante voltar uma casa. Na física contemporânea, primeiro se apresenta uma grande hipótese que, mais tarde, é confrontada por uma segunda teoria. Assim ocorreu com a teoria mecânica de Newton. Aplicável em diversas situações, ela não funciona bem quando se analisam objetos que se deslocam a velocidades próximas à da luz. A solução, neste caso, veio com a teoria da relatividade de Einstein. A este processo dá-se o nome de generalização: se, antes, a teoria tinha uma limitação, ela passa a ser generalizada e pode ser aplicada a mais situações.

A entropia, um dos pilares da física, ganhou forma com a teoria de Boltzmann-Gibbs, que na prática serve para analisar sistemas, medir sua desordem e fazer predições. As moléculas de um cubo de gelo, por exemplo, estão mais organizadas do que as moléculas de vapor, que se movimentam mais e ocupam um espaço maior –logo, têm mais entropia. Já um cubo de gelo é um sistema simples, só influenciado pela pressão e temperatura do entorno. Como medir a entropia de sistemas complexos, relacionados a fatores fortemente conectados?

Em 1988, Tsallis publicou um artigo no Journal of Statistical Physics propondo a generalização da entropia (que ficou conhecida como “entropia de Tsallis”), uma teoria que estaria apta a analisar sistemas complexos. A controvérsia não demoraria. “Fui acusado de rasgar uma fórmula da física que era crucial”, ele diz. “Era como se eu dissesse que E = mc2 não funciona para alguns casos.”

Uma renomada publicação chegou a aconselhá-lo a não se referir à teoria como “entropia generalizada”. “Entropia está para os físicos como Jesus está para os cristãos. Jesus não pode ser generalizado”, disse o editor, que era judeu. Como Galilei, Tsallis virou um herege.

A pesquisa foi um marco na carreira do físico –hoje ela soma quase dez mil citações, o que faz dele o cientista brasileiro (mesmo que naturalizado) mais citado no mundo, segundo a Universidade de Stanford. Mas, se os primeiros anos da teoria incitaram a curiosidade e a busca por testá-la, tempos depois a comunidade científica se dividiu: há quem chancele a ideia, mas não faltam críticos. Tsallis pode ter agradado a gregos, mas a física parece ser um campo com vários troianos.

Os opositores mais ferrenhos reconhecem a importância do pesquisador, sobretudo na formação de cientistas, mas alegam que sua teoria é uma simples alteração matemática da fórmula de Boltzmann-Gibbs. Ao adicionar um parâmetro na expressão original, ele teria elaborado apenas uma ferramenta. Com o tempo, outras soluções aplicadas na física estatística se mostrariam igualmente úteis.

Os questionadores ressaltam que Tsallis não teria criado um modelo físico que explicasse um fenômeno, como Einstein fez com a gravidade. Seria como se a equação ajudasse a definir a posição de Júpiter no sistema solar, mas, por falta de fundamento físico, não explicasse por que o planeta se situa aqui e não ali.

Por outro lado, em vários países há pesquisadores que trabalham com a entropia de Tsallis, buscando entender seu melhor nicho de aplicação. Um exemplo, comemorado pelo físico, ocorreu na Índia: a análise de mamografias ancorada em sua teoria praticamente suprimiu os resultados do tipo falso positivo em microcalcificações (que dão origem ao tumor).

No fim das contas, Tsallis rendeu à física uma controvérsia que deu pano para a manga –-algo considerado saudável e inerente ao fazer científico. Seus seguidores mais fiéis continuam fazendo uso de sua teoria, enquanto outros preferem ignorá-la. Se gregos ou troianos ganharão essa batalha, só o tempo dirá.

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Murilo Bomfim é jornalista.

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